Escatologia - 3a parte |
Parte III: Escatologia e a tradição da Igreja
Jesus
Cristo interpretou sua missão em favor do Reino de Deus - pelo que se
supõe hoje - eminentemente sob o signo duma chave escatológica. Sua
missão estava em favor do início da implantação do Reino de Deus, isto
é, do início do fim dos tempos, da implantação do reino definitivo. A
comunidade primitiva, especialmente sob o impacto do “evento Páscoa”,
entende-se mais forte ainda, como comunidade escatológica, isto é,
comunidade através da qual já se iniciou o final dos tempos (p. ex. a
imagem usada no apocalipse [21,9] da noiva, esposa do Cordeiro, é uma
típica imagem escatológica para a comunidade cristã mesma, que iria se
unir com Cristo [o esposo]). A comunidade primitiva esperava, pois para
logo a 2ª vinda do Cristo, a parusia. A demora da parusia começa a
causar inquietação nas comunidades cristãs e textos do Novo Testamento
já abordam a questão. Esta questão também ocupou os padres apostólicos.
As duas Cartas de Clemente (a primeira escrita no final do primeiro
século e a segunda na primeira metade do 2º século cristão) abordam o
assunto e Clemente exorta na segunda carta a que os cristãos mantenham a
esperança e sejam perseverantes na paciência (2Clem 11,5). Há, porém,
na segunda carta já uma mudança de acento na espera da parusia.
Passou-se de uma esperança de vinda próxima, para uma esperança
permanente de vinda de Cristo e seu Reino: “Esperamos pois em todo o
tempo o Reino de Deus..., pois não conhecemos o dia da vinda de Deus”
(2Clem 12,1). Já o Pastor de Hermas (sec. II) interpreta positivamente a
protelação da parusia: Deus está conscientemente protelando a parusia
para dar chance aos pecadores para a conversão[1].
Esta
argumentação era usada, porém em foro interno. Nas discussões
apologéticas com os não-cristãos, a questão da parusia (e com isso o fim
do mundo com o juízo final) tem um efeito quase que contrário. Com o
medo de que este fim poderia vir (a idéia de fim do mundo não é uma
“invenção” cristã) e julgar as pessoas, passou-se mais a temer a parusia
que esperá-la com alegria. Assim a oração pela vinda o mais breve
possível de Cristo (Ap 22,20) torna-se com o tempo uma oração de pedido
de protelação da vinda (e com isso de protelação do fim do mundo e do
juízo).
Com
o passar dos anos, porém, o tema da parusia (vinda do Cristo e com isso
do fim do mundo e do julgamento) passou para um segundo plano e a
discussão em torno da ressurreição vai tomando a centralidade nas
discussões sobre a escatologia. Com esta discussão há uma
individualização na reflexão em torno da escatologia: o indivíduo é que
ressuscita. A discussão sobre a escatologia universal não está mais no
primeiro plano.
Com
estes dois temas escatológicos (protelação da parusia e ressurreição
individual) discutidos já desde o início nas comunidades cristãs,
mostra-se presente duas tensões que acompanham toda a discussão
escatológica até hoje: A tensão entre presença e ausência de realização
(escatologia presente X escatologia futura) e a tensão entre a questão
do indivíduo e a da coletividade diante da escatologia (escatologia
individual X escatologia universal). Vejamos alguns pontos sobre estas
duas tensões:
1 – Tensão entre presença e ausência de realização
A
compreensão dinâmica de tempo e história que tinham os semitas foi
substituída na reflexão escatológica muitas vezes pela compreensão
estática da contraposição entre tempo e eternidade, entre aquém e além.
Esta compreensão estática tende a dividir claramente: ou há escatologia
agora ou ela é só futura; ou algo acontece agora no tempo ou acontecerá
na eternidade; ou uma coisa pertence ao aquém, ou pertence ao além. Há
uma cisão este os dois “lados” da qual nada escapa.
Claro
que a não vinda imediata do Cristo glorioso levou os cristãos a
reinterpretarem a esperança da manifestação imediata do fim da história.
E com isto esqueceu-se um pouco este aspecto da ligação íntima entre
Jesus Cristo e a esperança da realização final e começou-se, por vezes, a
tratar o céu, a realização final, sem vê-la em íntima conexão com Jesus
Cristo e o que com ele aconteceu. Ou seja, esqueceu-se que Jesus Cristo
não é só aquele que vem (parusia), mas também aquele que veio
(encarnação, vida, morte e ressurreição). E o Jesus Cristo que veio não é
apenas passado, mas presente em meio à sua comunidade: esta certeza da
presença de Cristo acompanha a comunidade cristã primitiva desde seu
nascimento.
Pelo
fato de termos a certeza da presença de Jesus Cristo na comunidade dos
fiéis - e com isso em nosso meio - e se em Jesus Cristo já realizou-se
ou manifestou-se plenamente a realização final, temos que dizer que a
realização final já está de alguma forma presente em nosso meio. Há pois
uma tensão histórica entre o fim já manifestado em Cristo (mas para nós
ainda esperança de futuro) e nossa condição de morte, de
não-realização, de caos, de falta de estrutura, de falta de comunidade
definitiva com o Cristo... Há uma tensão entre a compreensão de
escatologia já presente e escatologia somente futura.
A
história da discussão desta tensão tem um componente político muito
forte. A idéia de que há já em meio à situação atual escatologia
presente, de que há sinais de realização que ainda não abrangem toda a
realidade, esta forma de entender escatologia cresceu sobretudo na
oposição, na perseguição; seja ela externa ou interna. Nos tempos de
perseguição contra os cristãos nos primeiros séculos, a esperança de que
Cristo está presente, de que o Reino de Deus virá para transformar esta
ordem, esta esperança foi muito forte. Na Idade Média, quando muitos
movimentos de renovação da Igreja foram perseguidos com mão de ferro e
“fogo” pela própria Igreja, foi a esperança escatológica o ponto de
apoio e alento (Joaquim de Fiore é um exemplo típico). O mesmo se há de
dizer da situação em que nasceu a Teologia da Libertação (em oposição
política e eclesial), onde o anúncio de uma nova ordem, a ordem do Reino
de Deus (um conceito usado com conotação tipicamente escatológica), foi
e é alento e esperança dentro da situação de opressão, perseguição...
Nestas situações “a pressão do sofrimento concreto fez a esperança
escatológica ficar concreta e visível”[2].
Como porém perguntar-se pela presença da realização quando cristãos
dirigem a sociedade e têm a chance então (pelo menos teórica) de
organizar esta de tal forma que possa ser expressão de mais realização?
Esta é no fundo uma pergunta crucial para o cristianismo que adveio com a
virada constantiniana e permanece até hoje. Com Constantino, um cristão
governa o império: não deveria ser este expressão da relações humanas
propostas por Jesus Cristo? Esta mesma pergunta faz hoje quanto à
“conquista” da América: como foi possível que cristãos instaurassem aqui
relações tão iníquas e exploradoras, que d mensagem de Jesus Cristo
pouco ou nada espelham? A tendência teológica em situações onde o
cristianismo esteve ou está no poder, foi porém um acento mais forte na
escatologia futura. A ligação entre Igreja e poder permaneceu na
história por tanto tempo, que se chegou a afirmar que escatologia diz
respeito apenas às realidades futuras[3].
Interessante
é observar algumas interpretações de passagem, de pessoas que
conheceram tanto a perseguição na oposição como a nova situação: Assim,
por exemplo, Eusébio de Cesaréia (+ 340), que experimentara pessoalmente
a perseguição do imperador Diocleciano contra os cristãos, saúda a
“virada constantiniana” em sua obra “Historia ecclesiae” como um tempo
em que o Espírito de Deus encheu novamente a história. Mundo, Estado,
Igreja e Reino de Deus são quase que sinônimos e não se pode deixar de
ver a ligação que Eusébio faz entre esperança escatológica e reinado de
Constantino. O próprio imperador Constantino recebe conotações
messiânicas ao ser chamado por Eusébio de “querido de Deus”, “escolhido
para ser senhor e líder” (Vita Constantini). Fazendo um grande pulo na
história, podemos ler a mesma expectativa escatológica em textos de
transição entre opressão e revolução, especialmente textos poéticos,
escritos por cristãos engajados politicamente quando da vitória da
revolução sandinista na Nicarágua[4].
Uma
interpretação também muito interessante faz Santo Agostinho (+430) em
sua obra “De civitate Dei”, no tempo em que a memória do tempo de
opressão ainda estava viva na comunidade cristã, mas já se começava a
ficar mais sóbrio quando à possibilidade de igualar Reino de Deus com
Igreja e com império romano cristão[5].
Nesta
situação Agostinho desenvolveu uma reflexão muito interessante sobre a
presença do sentido último já aqui em meio à nossa realidade, mas ao
mesmo tempo a presença da não-realização: Concepção da construção de
duas cidades, a cidade de Deus e a cidade terrestre. Para Agostinho, em
nossa realidade ocorre a construção de duas cidades. Uma é construída
pelo amor de Deus e a outra pelo amor de si. Estes dois amores se opõem.
Mas no concreto histórico, estas duas cidades se cruzam. Tanto se
constrói a cidade terrestre, como também a cidade de Deus. Sinais da
construção da Cidade de Deus nesta terra, para Agostinho: moralidade,
justiça, paz e fé. Mas tudo isso de forma provisória se comparada com a
com a eternidade nos céus. A linha divisória entre a cidade de Deus e a
cidade terrena não é para Agostinho uma questão política ou social, mas
aquilo pelo qual as pessoas se deixam guiar: ou pelo amor a Deus ou pelo
amor ao Eu. O conceito de “cidade de Deus” é um conceito claramente
escatológico e de escatologia presente, mas em lugar algum a “cidade de
Deus” é identificada plenamente com a Igreja, a comunidade ou o império.
Para Agostinho não se pode inclusive identificar quem pertence “ao
partido diabo e quem não”, e isto não ficará claro neste mundo[6].
Um
ponto importante a se notar nesta reflexão de Agostinho é que ele não
coloca a realização ou a construção - como ele diz - da cidade de Deus
apenas para depois da morte. Mas vê já nesta realidade o começo da
realidade celeste. Com isso valoriza ele a realidade em que se vive e
acentua assim uma concepção de escatologia presente. A concretização
definitiva da cidade de Deus ocorrerá porém somente com o juízo final,
com o qual todos os cidadãos da cidade de Deus irão ser plenamente
felizes na visão de Deus e experiência de seu amor. Com isso Agostinho
não resolve, mas mantém conscientemente a tensão entre presença e
ausência de realização.
Esta
tensão existente entre o agora da história onde há a presença de
realização, mas também da não-realização, do sentido, mas também da
falta de sentido, por isso a realização aqui experimentada não é
definitiva foi nomeada por uma expressão que talvez caracterize bem a
escatologia cristã a partir de Jesus Cristo: a dialética do „Já“ e do
„ainda não“ elaborada por O. Cullmann, que já tivemos a oportunidade de
ver[7]. Em Jesus já se manifestou a realidade última, mas ainda não se realizou na plenitude da história.
E
assim poderíamos citar mais exemplos na história da Teologia onde esta
tensão ficou clara, onde houve uma maior ou menor identificação entre
conceitos como Império, Igreja e Reino de Deus.
2 – Tensão entre escatologia individual e escatologia universal
Outra
questão que marcou toda a história da reflexão sobre a escatologia é a
tensão entre escatologia individual e a escatologia geral ou universal.
Até pelo século XII a reflexão sobre a escatologia universal e
individual privilegiava a universal como ponto de partida e a
escatologia individual era vista a partir da universal. O fim individual
era visto em unidade com o fim da comunidade. Mesmo tendo este ponto de
partida, colocava-se a questão: o ser humano, como indivíduo, tem seu
fim histórico na morte, mas este fim histórico não é o fim da
história. O que acontece neste meio tempo (status intermedius)? Dos
primeiros séculos do cristianismo até pelo século XII/XIII prevalecia a
idéia de que após a morte, a alma irá ter com Deus e será julgada. Neste
julgamento será selado seu destino para sempre: a recompensa pelo bem
ou o castigo pelo mal. Tendo já seu destino decidido, a alma permanece
no Xeol, aguardando o fim dos tempos e a ressurreição da carne, onde irá
então já com sua corporalidade assumir o destino já definido no juízo
após a morte. No Xeol, porém, fazia-se distinções de condições, de modo
que já se antecipava neste status intermedius a condição final de
felicidade ou frustração. O juízo final irá confirmar o juízo
individual, de modo que do ponto de vista soteriológico o juízo final e o
juízo individual são coincidentes.
O
desenvolvimento da idéia do status intermedius esteve ligado
diretamente com o desenvolvimento do conceito de “alma”. Este conceito
de origem grega não foi aceito inicialmente pela teologia cristã, pois
trazia consigo a idéia grega da imortalidade da alma, imortalidade esta
que era consequência do fato de a alma ter algo da substancialidade
divina. A ressurreição, do ponto de vista cristão, é um ato exclusivo de
poder de Deus para com suas criaturas. Os dois conceitos - de
imortalidade da alma e de ressurreição - eram pois incongruentes. Só
após o conceito “alma” ter sido redefinido é que ele foi assumido
plenamente pela teologia cristã. O conceito “alma” foi redefinido como
“princípio (criado) de identidade” da criatura, deixando-se assim o
conceito de alma como princípio da imortalidade como a entendiam os
gregos[8].
A
questão do status intermedius foi definida pelo magistério eclesial
pelo Papa Bento XII, na constituição “Benedictus Deus” (29/01/1336 - DH
1000-1002)[9]:
a alma daqueles que morreram em estado de graça (justificante)
participam da felicidade celeste logo após a morte; a alma daqueles que
morreram sem estar totalmente puros irão passar por uma purificação
(purgatório) antes de participar da visão beatífica e a alma dos que
morreram em pecado mortal irão para a perdição eterna, por eles mesmos
escolhida; no juízo final haverá a ressurreição dos mortos, na qual
todas as pessoas humanas serão recompostas também em sua corporalidade.
A
discussão sobre a tensão entre o juízo individual e o universal ficou
bastante presa à situação “do indivíduo” nestes julgamentos. Nesta
questão há de se pensar, porém uma pergunta muito importante: há um
juízo individual e outro comunitário? A fé nos leva a crer que o juízo
não se dá separadamente sobre indivíduo e sobre comunidade, mas em
conjunto, pois o ser humano não pode ser entendido se não incluirmos as
duas coisas ao mesmo tempo: a sua individualidade e a sua integração
comunitária. Na verdade cada ser humano é parte de uma rede da história,
onde de forma alguma podemos separá-lo de seu contexto, nem eximir sua
responsabilidade como indivíduo.
Até
agora a questão da escatologia - seja a individual, seja a universal -
tem sido entendida na história da Igreja quase que exclusivamente no
nível do ser humano. Não deveríamos nos perguntar, porém, se só o humano
é chamado à realização? Ou toda a criação, todo o universo também é
chamado à realização final? É possível pensar o humano na teologia ainda como um departamento à parte e válido apenas para si mesmo?
Penso
que a discussão principalmente em torno da ecologia fez tornar-se ponto
pacífico que o humano é uma parte do todo. E como tal ele implica no
todo e é implicado pelo todo. A ilusão de que o humano é algo especial
dentro da criação se desfaz, principalmente perante os problemas
ecológicos, onde fica claro que "tudo e todos estamos no mesmo barco" e
que certamente não haverá uma segunda Arca de Noé, no qual alguns
escolhidos poder-se-ão colocar em segurança, ou se houver uma tal Arca
de Noé numa situação de catástrofe ecológica, a espécime humana não
teria necessariamente um lugar reservado. Esta consciência de que
pertencemos como membros da espécie humana a um todo, nos leva a
perguntar pelo sentido teológico desta constatação. E é sem dúvida um
novo desafio pensar a salvação, a realização final, a escatologia, não
apenas para o humano, mas para toda a criação. Se temos a certeza que o
humano foi criado para a liberdade, é um desafio pensar a liberdade
para toda a criação. Se temos a certeza de haver um sentido último, é um
desafio pensar o sentido último para todo o universo. Se temos a
esperança na fé de que caminhamos rumo à culminância onde Deus será tudo
em todos, é um desafio pensar esta caminhada para a totalidade do
universo. Ou será que o humano é uma exceção em termos de salvação,
libertação e sentido último?
A
história do cristianismo e sua teologia centraram suas reflexões quase
que exclusivamente no humano, contribuindo, sem dúvida para uma
mentalidade e atitude de dominação/destruição do seu meio-ambiente.
Tudo passou a ser pensado a partir do humano e tendo o bem do humano
como objetivo. Necessariamente não precisaria ter sido assim. Há na
tradição bíblica e cristã pontos que nos permitem pensar o chamado à
realização não a partir apenas do humano, mas a partir do todo, do qual o
humano é apenas uma parte. É necessário para isso repensar a teologia
da criação e, sobretudo repensar e redimensionar uma teologia da vida,
onde a vida tenha a centralidade e não entendida apenas como vida
humana.
Este
novo desafio da teologia não pode ser pensado apenas como sendo uma
nova parte dentro da teologia, uma "teologia da natureza", mas teria
implicância em todos os campos da teologia. Pensar que toda a criação é
chamada à realização, ao sentido último, é mais do que se perguntar se
no céu também haverá animais e plantas ou se a árvore ou o cavalo também
têm alma.
Diante
destes novos desafios, é preciso ampliar a frase de Ortega y Gasset:
"Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo"[10].
Certamente teremos que reconhecer que eu sou eu, mas parte de um todo
(seja ele entendido como planeta terra ou como universo) e se o todo não
for salvo, se o todo não caminhar em direção ao sentido, estarei
condenado com ele à perdição e ao absurdo[11].
3 – Temas escatológicos
Esta
visão unitária da escatologia é muito importante. Caminhamos todos para
o sentido último que se nos advém como convite a ser aceito ou não. Só a
partir desta unidade do Projeto de Deus é que podemos pensar os temas
escatológicos, para não corrermos o perigo de vê-los cada um por si,
como departamentos estanques e diferentes. A partir desta visão unitária
e global é que podemos pensar alguns temas específicos da escatologia:
a) Morte
A
morte corporal é um fato pelo qual todos nós iremos passar. Este fato
tem muitos aspectos: a) Ela é um fato da natureza. Tanto vinda mais cedo
ou mais tarde, ela mostra a fragilidade da natureza humana. Nossa
natureza é limitada. Esta experiência a temos muitas vezes, já durante a
vida. Pelo fato da morte, fica claro que somos parte da natureza; não
somos como humanos algo à parte. b) A morte é um acontecimento pessoal. É
uma experiência que só se pode fazer sozinho. É a experiência da
individualidade. c) A morte é algo que diz respeito ao ser humano como
membro duma comunidade. E a morte mostra muitas vezes muito desta
comunidade. Pode-se ver muito sobre a sociedade observando como morrem
as pessoas: há os que morrem assassinados, os que morrem de acidentes,
os que morrem em guerra, os que morrem de fome, os que morrem aos 95
anos, rodeados de filhos e netos, na certeza de ter vivido bem, há os
que provocaram a própria morte. A morte é por assim dizer, também uma
espécie de atestado de bom ou mau funcionamento duma sociedade. Seja
qual for a morte e sabendo todos que ela haverá de vir, socialmente, no
entanto, agimos muitas vezes como se ela fosse um acidente de percurso:
Morreu de quê? Como se a morte fosse exceção. d) Como pessoas de fé,
vemos, porém a morte não apenas como um fato natural, pessoal e social,
mas também um fato de significância teológica. A fé cristã nos ensina em
primeiro lugar, que a morte está ligada à vida e que viver como se a
morte não existisse é uma irresponsabilidade, é querer cortar nosso elo
de passagem para a vida não mais dentro da condição de limitação. Esta
vida é, pois uma preparação para a morte e pensar assim não é
masoquismo, mas sim realismo. A morte, para o cristão, deve vir como
coroamento da missão cumprida de criatura de Deus. Por isso a preparação
para a morte e a luta contra os mecanismos que fazem com que as
criaturas não possam cumprir seu papel, ocasionando a morte prematura.
Em segundo lugar a fé nos ensina que a morte é a porta de entrada para a
vida definitiva. Quer dizer, ela é a libertação da limitação e a
abertura definitiva ao ilimitado, a Deus. Assim podemos entender a frase
de Paulo na Carta aos Filipenses: “Para mim a morte é lucro“ (1,21).
Ela é passagem sem volta para a realização ou não (não se pode deixar
impressionar pelas narrativas dos que quase morreram: luz, paz,
dissociação do corpo...). Por isso não há como não dizer que a morte é
um juízo, um julgamento. (Temas afins, para ampliar a questão: comunhão
com os mortos, comunicação com os mortos, reencarnação dos mortos).
b) Juízo individual
A morte é então o momento do julgamento de nossa vida. Não imagino que seja um ato de julgamento, mas sim o fato de julgamento.
Com a morte sela-se definitivamente nosso caminho. A morte é o ponto
final do peregrinar, do tempo de decisões. Por isto, morte é decisão, é
tribunal. Este julgamento não é feito de fora. Somos nós que o fazemos, a
nossa vida é o critério, segundo o que nos ensinou Jesus mesmo. Com a
morte dá-se o julgamento individual de cada pessoa, no sentido – para
usar a mesma expressão de Santo Agostinho – da cidade de Deus ou da
cidade terrena. Este julgamento nos mostra se a vida foi apta para a
cidade de Deus, foi apta para a comunhão consigo e com os outros. Ou se
negamos a possibilidade de comunhão. Nós somos o critério de juízo de
nós mesmos e quem dá as medidas para o julgamento é o que Cristo chama
de Reino de Deus (e no Reino de Deus os pobres são, segundo Jesus, a
medida do julgamento). Na verdade este julgamento já existe desde a
encarnação de Jesus Cristo, sua vida, morte e ressurreição. Desde Jesus
já se mostrou a quê Deus nos chamou e então o juízo de Deus já está
presente na história e com isso e nossa história, na história pessoal de
cada um.
c) Purgatório
A
tensão entre escatologia individual e escatologia geral levou a se
pensar a questão: o que acontece entre uma e outra? O fato é que a
história individual encontra na morte a sua escatologia, enquanto a
história da humanidade não.
Quando
falamos em julgamento com a morte, temos a certeza que nem todos são
totalmente santos, isto é, conseguiram assumir em suas vidas 100% o
projeto do Reino de Deus. O que acontece então? Os cristãos colocaram-se
esta questão ao longo dos séculos.
Além
disso, cremos e temos a certeza que Deus é misericórdia e consegue
olhar com benevolência também o pecador. Irá condená-lo por ele ter
feito não apenas o bem, mas também o mal?
O
que está por detrás deste questionamento é a pergunta pela purificação
após a morte, ou seja, se os que não são totalmente bons, mas tem também
incoerência em si, serão condenados mesmo assim.
Destes
questionamentos todos surge a idéia da escatologia intermediária: o
purgatório. A idéia da existência de um purgatório não está na Bíblia,
mas ocupou a reflexão de muitos cristãos, nas apenas por conta da
fantasia, mas por uma séria preocupação de fé.
Esta
preocupação e a fé dos crentes na existência duma escatologia
intermediária levaram a Igreja a afirmar: sim, é possível uma
purificação após a morte e os que ainda não morreram podem participar
desta purificação através de preces e obras de caridade (1274, II
Concílio de Lião). A Igreja não definiu que isto deveria ser crido, mas
assumiu como parte de sua tradição de fé aquilo que já se acreditava. A
tradição de rezar e de fazer sacrifício pelas “almas do purgatório“ é
algo muito antigo na tradição cristã.
Na
idéia do purgatório podemos ver hoje um profundo conhecimento sobre o
ser humano: Ninguém termina sua caminhada nesta vida com clareza e
santidade total. A maioria dos seres humanos termina sua história também
carregada de contradições, marcada pela negatividade de muitas ações
passadas, dividida por incoerências internas que não conseguiu superar
ao longo da vida por meio de seu esforço. A psicologia vê a vida do ser
humano como um processo onde há maior ou menor maturidade. Para cada
época de vida há uma maturidade em si, uma maturidade que lhe seja
adequada ou possível. Durante toda vida há um processo de encontrar a
maturidade devida. Mais ou menos nesta linha interpretam alguns teólogos
também o purgatório: ele seria um processo de superação das
contradições, de negatividade, da incoerência, que já se dá em vida.
E
como o ser humano não é apenas um ser pessoal, mas também social, há de
se ver este processo de superação de contradições e incoerências, de
negatividade, não apenas como um processo pessoal, mas como um processo
também social. Não caminhamos para mais perto ou mais longe do Reino de
Deus apenas como indivíduos, mas também como comunidade de criaturas.
O
purgatório pode ser entendido somente quando o colocamos dentro desta
perspectiva de purificação, de maturação tanto pessoal como comunitária
ou social. Dentro desta perspectiva não corremos o risco de cair em
ritos mágicos ou mecânicos em relação ao purgatório. Um pouco de magia e
mecanicismo se mistura às vezes no imaginário popular quando pensa a
relação entre nós e os que estão no purgatório.
d) Ressurreição
O
tema purgatório mostra como não podemos ter a certeza do como irá
acontecer o após morte. O que irá acontecer após a morte, ou a que somos
chamados após a morte, isto, porém está muito claro a partir de Jesus
Cristo: somos chamados à ressurreição. Em Jesus já se manifestou a quê o
humano é chamado: à vida plena invencível. Como diz Paulo na Primeira
Carta aos Coríntios: “Na verdade Cristo ressuscitou dos mortos como
primícias dos que morrem... Assim como em Adão todos morrem, em Cristo
todos reviverão“ (1Cor 15,20.22).
Paulo
(1Cor 15,36ss) usa o exemplo do grão de trigo para dizer como será a
ressurreição: o grão precisa morrer, para nascer. Quando se semeia, é
apenas semente. Não se semeia a planta, mas o grão. Assim nossa vida é
apenas o grão, que em sua trajetória, incluindo o pós-morte, irá
irromper, desabrochar naquilo que deveremos ser definitivamente. Nesta
imagem está presente de forma muito clara a dialética do “Já” e do
“Ainda não” da escatologia em nosso meio: na semente já está presente o
gérmen da planta, mas ainda não se desenvolveu plenamente.
e) Céu
Para
ficar na mesma imagem da semente usada por Paulo, podemos dizer que o
gérmen de vida presente dentro da semente pode tanto desabrochar e assim
realizar-se como planta, como também pode morrer para sempre, ou seja,
frustrar o projeto de planta que está dentro dele ou que já começara a
se desenvolver. Esta comparação serve para descrever muito bem o ser
humano e a criação toda em seu destino. Em nós está o gérmen da
realização, da vida plena, da superação da limitação, da ressurreição.
Fazer este gérmen desabrochar, chegar à sua vocação, àquilo que é
chamado, é o que na teologia se denomina céu. Céu é a resposta à
pergunta que fazíamos logo no começo: “O que Deus quer conosco?” O céu
é, segundo a Bíblia, a morada de Deus. Quando dizemos que céu é a
resposta à pergunta sobre nosso destino, dizemos pois que somos chamados
a ser junto com Deus. E ser junto com Deus não é um determinado lugar,
mas sim uma determinada situação, um ponto de chegada. Seria uma
situação de superação de tudo o que limita a realização. Céu é a
situação de realização sem limites, de felicidade completa. A Bíblia usa
diversas metáforas para descrever esta situação: “banquete nupcial” (Mt
22,1-14; 8,11; Ap 19,7-9), visão da face de Deus (=ser santo) (Mt 5,8;
1Cor 13,12; 1Jo 3,2), vida plena, coroa da vitória (Tg 1,12), prêmio
(1Cor 9,25), Jerusalém celeste (Ap 21,9-27), novo céu e nova terra (Ap
21,1-9). Por estas imagens usadas para descrever o céu, podemos perceber
com clareza a dialética do “Já” e do “Ainda não”. Também em nosso meio
já estão presentes pedacinhos do céu. E talvez pudéssemos acrescentar a
estas imagens da Bíblia, muitas outras onde nós também vemos sementes do
céu já presente, mesmo que incipiente.
Toda
esta felicidade celeste é, porém, limitada, se a pensarmos apenas no
nível individual: “eu vou me realizar”. O céu não é a plenitude pessoal,
mas também a plenitude do amor, de abertura ao outro, de realização no
relacionamento. O caminho para o céu, para a realização, não o faço só.
Nem isto é possível. Minha circunstância caminha comigo para a
realização e dentro dela caminho eu. “Yo soy yo y mi circunstancia, y si
no la salvo a ella no me salvo yo”, para recordarmos novamente Ortega y
Gasset. Uma lenda chinesa do céu e inferno como dois montes de arroz,
deixa transparecer bem esta dimensão interpessoal de compreender o céu
ou o inferno. Nesta lenda, o inferno é descrito como um lugar onde há
uma montanha de arroz cozido, pronto para ser comido. E ao redor dela,
estão pessoas com palitos para comer de 3 metros em suas mãos. E todos
sofrem fome eterna, pois conseguem pegar o arroz com os palitos, mas não
conseguem levá-lo à boca. Já o céu é descrito como a mesma situação,
mas como não se consegue levar o arroz à própria boca, ali uns alimentam
os outros e assim vivem eternamente satisfeitos.
f) Inferno
O
inferno é então o oposto ao céu. O ser humano, tendo tudo em si para a
realização, pode responder negativamente a este chamado, pode escolher o
caminho da não realização. Inferno é a situação de não-realização, é o
não ao céu. Como o humano pode chegar definitivamente à realização, ele
também pode dizer não a esta realização e com isto fechar-se
definitivamente a ela. O inferno não é, pois uma alternativa criada por
Deus ao céu, mas a situação de negação do céu. Podemos invocar aqui o
modo de pensar de Agostinho: o mal não existe, existe a ausência do bem.
Ele é resultado da liberdade humana. A vontade de Deus é que todos
sejam salvos, diz a Bíblia (1Tim 2,4). A Bíblia descreve esta situação
de frustração eterna através de muitas imagens: fogo que não se apaga
(Mt 5,22), choro e ranger de dentes (Mt 18,22; Lc 13,28), trevas
exteriores (Mt 8,12), cárcere (1Pd 3,19), segunda morte (Ap 2,11) etc.
Tanto
como podemos perceber sinais do céu, de realização já entre nós, também
o inferno se faz presente, ou seja, sinais de não realização. Também já
agora há sinais de frustração, de não comunhão, de fechamento ao amor,
de impedimento à justiça...
g) Fim do mundo e Juízo Final
O
tema escatológico que sem dúvida deu mais margem ao imaginário popular
durante os séculos foi o tema do “fim do mundo”. Em quase todas as
culturas há idéias de um fim do mundo catastrófico, seja por água, por
fogo, por raios ou explosões. No imaginário há sempre elementos de fora,
que não pertencem ao nosso dia-a-dia, irrompendo em nosso mundo e
arrebatando toda a vida. Em muitos episódios de acidentes ou catástrofes
é comum que se ouça dizer: “Parecia o fim do mundo“. Haverá um fim do
mundo desta forma violenta? Se entendermos “fim do mundo” como fim da
vida no planeta terra, temos a certeza que haverá um fim do mundo. Quem
nos diz isto não é tanto a teologia, mas mais a astronomia. A vida
depende do calor do sol e este um dia acabará (segundo os cálculos
astronômicos, o sol tornar-se-á um pulsar daqui a ca. de 5 bilhões de
anos). Hoje fala-se muito na possibilidade de um fim do mundo provocado
pelo próprio ser humano: seja por armas, por colapso ecológico ou
climático. A nós é muito mais claro do que em outras épocas, que existe a
possibilidade real de um tal fim do mundo (catastrófico).
A
escatologia não se ocupa, porém, tanto com o fim do mundo histórico. A
pergunta com a qual se ocupa a escatologia cristã é mais “qual é o fim
do mundo?”, no sentido, para que finalidade foi criado o mundo? A que
ele se destina? A esta pergunta a Bíblia é toda uma resposta muito
clara: o ser humano, bem como toda a criação é destinada à vida, à
eternidade, a Deus. Paulo resume muito bem esta certeza de fé na Carta
aos Romanos: “Com efeito, o mundo criado aguarda ansiosamente a
manifestação dos filhos de Deus. Pois as criaturas foram sujeitas à
vaidade, não voluntariamente mas pela vontade daquele que as sujeitou,
na esperança de serem também elas libertadas do cativeiro da corrupção
para participarem da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (8,19-21).
E
como a morte é o juízo individual para cada um, o fim do mundo é o
juízo final, ou seja, o plano de Deus, o Reino de Deus manifestado já em
Jesus Cristo é que irá julgar cada um, toda a humanidade e toda a
criatura. É isso que rezamos: Cremos que Jesus há de “vir a julgar os
vivos e os mortos”. E se a morte individual é o fim do peregrinar, há a
esperança na fé de que a totalidade irá também encontrar o seu ponto de
chegada.
4 – Declarações doutrinais mais importantes da Igreja sobre temas escatológicos[12]
As
questões relativas aos chamados “temas escatológicos” receberam ao
longo da história da Igreja muitas “declarações doutrinais”, feitas por
documentos papais ou por documentos conciliares. Não há, nestas
declarações, uma linha única de raciocínio, dado que foram feitas em sua
grande maioria em momentos específicos e para responder a alguma
demanda determinada. Assim sendo, há também muitas coisas contraditórias
nestas declarações. A seguir é colocada uma espécie de “listagem” de
declarações que mais marcaram a posição da igreja diante destes temas.
a) Sobre o destino individual
1. A morte é uma consequência do pecado (Decreto sobre o pecado original do Concílio de Trento [1546][13], DH 1512, apoiando-se em Rm 5,12 - reafirmado pelo Concílio Vaticano II em GS 18)[14].
2.
A morte é o fim da situação de peregrino (estar a caminho). Depois da
morte a pessoa não pode mais por merecimento próprio exercer influência
sobre seu destino final (Bula “Exsurge Domine”, propositio 38, Leão X
[1520], contra os erros de Martinho Lutero, DH 1488).
3.
O poder da morte, enquanto expressão da falta da graça (pecado), foi
quebrado definitivamente pela morte de Cristo (afirmação comum dos
credos).
4.
O juízo individual ocorre imediatamente após a morte e este juízo
decide o destino ou de santidade (no céu) ou de purificação no
purgatório ou de condenação no inferno (ainda antes da ressurreição do
corpo e da parusia); a condição definitiva da pessoa não se inicia pois
apenas com o último juízo, depois de uma passagem intermediária no Xeol
(Bula “Benedictus Deus”, Bento XII [1336], DH 1000-1002 e Bula
“Laetentur caeli”, Concílio de Florença [1439], DH 1304-1306). Após a
morte permanece a existência de um elemento espiritual, dotado de
consciência e vontade, de modo que o “eu humano” existe também neste
tempo intermediário, sem contudo ter um corpo. Este elemento que
permanece é chamado pela Igreja de alma (Escrito da Sagrada Congregação
para a Defesa da Fé “Recentiores episcoporum synodi” [1979], DH 4653.)
5.
Sobre a situação na glória celeste é ensinado que ela consiste no
desfrutar, na visão e na dileção da essência divina (fruitio, visio et
dilectio essentiae divinae). Outros nomes usados para glória celeste são
céu, paraíso do céu, pátria eterna (DH 839, 1000). Deus será
reconhecido em sua unidade e trindade e no existir das três pessoas de
forma clara, aberta e imediata, sem mediação de criatura qualquer; isto
não quer dizer porém que teremos a visão beatífica em uma forma que não
seja própria de nossa forma de criatura (modo creaturae), mediada pelo
Logos, que assumiu a natureza humana. Também as almas separadas do corpo
(quer dizer, das pessoas que não mais estão ligadas com a antiga
condição mundana e não mais se encontram “a caminho” {statu viae}) vêem
Deus como ele é, da forma que seu status permite, pois ainda está por
vir a realização final na comunhão dos santos, na qual será assumida a
nova condição. Na ressurreição corporal, também o corpo participará
então da visão beatífica (Bula “Benedictus Deus” [1336], DH 1000-1002).
A
visão beatífica é sobrenatural. Somente através da luz da glória (lumen
gloriae), que é derramada pela graça e que substitui a luz da fé (lumen
fidei) é que o espírito e a vontade podem chegar à visão de Deus em sua
essência (Constituição “Ad nostrum qui”, Concílio de Viena [1312], DH
895).
A
visão beatífica dá-se para as pessoas em diferentes graus, dependendo
dos merecimentos. Quem é santo a tem com segurança e ela é eterna e não
pode ser perdida (Bula “Benedictus Deus” [1336], DH 1000-1002).
Somente
quem morre em estado de graça justificante, no amor de Deus e
totalmente livre tanto da culpa dos pecados como das penas dos pecados,
consegue obter a visão beatífica imediatamente após a morte (Decreto
sobre Justificação, Concílio de Trento [1547], DH 1546, 1582).
6.
Sobre o purgatório é ensinado que ele existe e é um lugar (condição) de
purificação das penas remanescentes dos pecados. Refere-se somente a
cristãos que morreram na graça justificante, nos quais ainda há
resquícios de pecado, que os impede de unir-se totalmente em amor com
Deus (Lyon I [1254], DH 838; Lyon II [1274] {Profissão de Fé do
imperador Miguel Palaiologos}, DH 856-885, Bula “Benedictus Deus”
[1336], DH 1000-1002, Concílio de Florença [1439], “Laetentur caeli”, DH
1304-1306, Concílio de Trento, Decretum de purgatorio [1563], DH 1820).
As almas no purgatório estão certas de sua salvação (contra Lutero,
prop. 38, DH 1488). Seguindo a imagem bíblica, usa-se a imagem do fogo
para falar da purificação no purgatório (ignis transitorius; DH 838).
7.
A pena do pecado original é a perda da visão beatífica. Quem morre sem
ter recebido a graça justificante do batismo, sofre apenas a poena
damni, - ou seja, a privação da visão beatífica, que no caso de um
não-batizado sem pecado pode ser comparado com uma situação de
felicidade natural - e não a poena sensus, - ou seja, um castigo depois
da ressurreição do corpo (discussão em torno do destino das crianças que
morrem sem terem sido batizadas {limbus infantium}: carta do papa
Inocêncio III [1201], DH 780; Concílio de Florença, DH 1306).
As
afirmações de caráter não-obrigatório feitas sobre o limbo podem ser
consideradas superadas pelas afirmações do Concílio Vaticano II sobre a
possibilidade de salvação para os não-batizados.
8.
Sobre o inferno se afirma que para lá se destinam os que permaneceram
em pecado mortal até a morte (“Benecitus Deus”, DH 1002; Concílio de
Florença DH 1306).
A
doutrina afirma que a pena do inferno é eterna. O Sínodo de
Constantinopla [543] aceitou a proposição de anátema do Imperador
Justiniano contra Orígenes, que em sua teoria da “Apokatastasis”
afirmava a possibilidade de volta ainda para os condenados e mesmo
demônios (DH 409; 411).
O
motivo da condenação eterna é a própria e livre vontade (“Fides Pelagii
papae” [557], DH 443), que através de fatos capitais (facta capitalia)
(Sínodo de Arles [473], DH 342) leva à rejeição por Deus, pois ela leva a
permanecer até a morte sem arrependimento e sem perdão em situação de
pecado mortal (Sínodo de Valença [855], DH 627; Lyon I [1245], DH 838;
Bula “Benedictus Deus”, DH 1002; Florença [1439], DH 1306).
b) Sobre a comunhão em Cristo dos vivos e mortos
1.
Existe uma comunhão na salvação entre todos os que pertencem a Cristo,
tanto os santos do céu, como os que estão a caminho (Igreja peregrina) e
aqueles cujas almas foram entregues à purificação no purgatório (Papa
Leão XIII, Encíclica “Mirae caritatis” [1902], DH 3360-64; Concílio
Vaticano II, Lumen Gentium cap. 7 e 8.).
2.
Os santos nos céus intercedem pelas pessoas (Concílio de Trento, DH
1821; 1867). O culto aos santos tem como objetivo final o culto ao Deus
trino, que se vê glorificado através daqueles que por ele foram
santificados (Nicéia II, DH 601; Trento, DH 1821-1825).
3.
As almas do purgatório tomam parte na comunhão dos santos. Elas, porém,
não podem fazer nada para modificar sua situação. Os vivos podem,
porém, interceder por elas através de: celebração do sacrifício da
missa, oração, obras de caridade e outras obras de piedade (Trento,
Decreto sobre o sacrifício da missa, DH 1753, decreto sobre o
purgatório, DH 1820). A eles podem ser aplicadas também indulgências
“per modum suffragii” (Sixto IV, Bula “Salvator noster” [1476], DH 1398 e
Encíclica (explicativa) “Romani Pontificis provida” [1477], DH 1405-07;
Leão X, decreto “Cum postquam” [1518], DH 1447-1449). O escrito da
Sagrada Congregação para a Defesa da Fé a todos os bispos (17/05/1979,
DH 4654) acentua neste contexto que a oração da Igreja tanto nos ritos
fúnebres quanto a veneração aos mortos representam “loci theologici” e
rejeita as teorias que não vêem sentido nestas orações.
c) Sobre a escatologia universal
1.
No fim dos tempos Cristo virá pela segunda vez novamente em sua
natureza humana por ele assumida (ponto comum dos credos). É rejeitada a
teoria do quiliasmo ou milenarismo, segundo a qual Cristo, antes do
juízo final, instalaria neste mundo e tempo um reino visível que duraria
mil anos (Decreto do Santo Ofício [1944], DH 3839).
2.
Todas as pessoas, também as condenadas, participarão da ressurreição
dos mortos, para a vida eterna ou para a condenação eterna da pessoa em
alma e corpo (“Fides palagii papae” [557], DH 443; Toledo VI [638], DH
493; Toledo XI [675], DH 540; IV Latrão [1215], DH 801; Lyon II [1274],
DH 859; Bula “Benedictus Deus” [1336], DH 1002).
Todos
ressuscitam na própria carne (‘in propria carne, cum suis propriis
corporibus”, DH 801), não com um corpo etéreo ou fantástico.
Cristo
mesmo e só ele ressuscitará os mortos (ponto comum dos credos) e a
graça de Cristo, que é cabeça cujo corpo é a Igreja, passará a todos os
seus membros (Papa Vigílio, Carta “Dum in sanctae” [552], DH 414).
3.
Depois da ressurreição dos mortos haverá o juízo universal sobre toda a
humanidade e sua história (ensinamento comum dos credos e documentos).
Este
dia é desconhecido a anjos e pessoas humanas. Cristo conhece este dia
em sua natureza humana, mas não a partir de sua natureza humana, mas sim
somente a partir de sua natureza divina (Papa Gregório I, Carta “Sicut
aqua” [600], DH 474).
Seguirá
então o fim material do mundo. Uma teoria sobre o “como” acontecerá
este fim do mundo é expressamente rejeitada (Papa Pio II, Propositio I
sobre os erros de Zaninus de Solcia [1459], DH 1361).
No
final haverá o Reino de Deus e Cristo. Os santos viverão para sempre na
vida eterna. Ela é fruto da justificação, da graça e dos merecimentos
por boas obras (Trento, Decreto sobre a Justificação, DH 1545-1547).
A
Igreja passará ao reino celeste. Como mediadora de salvação ela terá um
fim, como fruto de salvação ela permanecerá (VI Sínodo de Toledo [638],
DH 493). Todos os santos reinarão com Cristo eternamente (= unidos à
vontade de Deus, isto é, segundo o amor; XI Sínodo de Toledo [675], DH
540; XVI Sínodo de Toledo [693], DH 575; Trento, DH 1821, Vaticano II,
LG 7 e 8).
“...
seu Reino não terá fim” (cuius regni non erit finis; todos os credos,
especialmente o niceno-constantinopolitano [381], DH 150).
d) Diferenças de interpretação nas Igrejas ortodoxas e protestantes
As
afirmações doutrinais feitas pela Igreja católica a respeito de temas
escatológicos, principalmente as afirmações que são comuns nos credos,
são afirmações pacíficas para todas as igrejas cristãs, mesmo porque a
maioria delas foi feita antes de uma divisão entre as confissões. Com a
divisão de confissões há alguma diferença de interpretação entre as
Igrejas ortodoxas, a católica e as nascidas da Reforma (com Lutero e
Calvino)[15].
As diferenças de interpretação da Igreja católica para as ortodoxas ou
da reforma referem-se, porém, apenas ao tema do purgatório.
Nas
Igrejas ortodoxas orientais o conceito de escatologia individual não
teve o mesmo desenvolvimento que no mundo ocidental. A visão beatífica
ou a perda dela ocorre somente com o último dia (fim do mundo). A
escatologia intermediária ficou no conceito semítico de Xeol, onde as
almas dos mortos ficam. Há, porém, dentro do Xeol diferentes graus. Como
na interpretação católica, para as igrejas ortodoxas, a oração aos
falecidos pode ajudá-los em sua sorte (fazendo-os sofrer menos penas no
Xeol, ou passar para outro nível)[16]. A diferença de interpretação da escatologia intermediária entre católicos-romanos e ortodoxos é, como se vê, bastante pequena.
A
diferença da interpretação romano-católica para a interpretação da
Reforma (Lutero e Calvino) já é bem mais sensível, pelo fato destes
negarem a existência de um purgatório. Segundo estes, a doutrina da
justificação está em contradição com a doutrina de que orações e
indulgências possam ajudar os mortos. Também, a doutrina de que o
sacrifício de Cristo é expiatório para todo o pecado está em contradição
com o ensinamento de que se podem rezar missas em favor dos vivos e
mortos. Lutero e Calvino interpretam o ensinamento católico-romano de se
poder fazer missas, orações e indulgências em favor de alguma pessoa
como um ato humano de querer interferir na ação de Deus. Para a sua
interpretação a reconciliação com Deus é uma graça de Deus mesmo e não
pode ser “ajudada” por atos de fé de outros seres humanos.
Em
nome pois da doutrina da justificação e do sacrifício expiatório
definitivo de Cristo, Lutero e Calvino negam a existência de uma
escatologia intermediária, onde haveria ainda uma purificação e da qual
os vivos podem participar intercedendo pelos mortos.
[1] Cf. F.-J. Nocke, Eschatologie. In: Handbuch der Dogmatik, Vol. 2, 390.
[2] F.-J. Nocke, Eschatologie. In: Handbuch der Dogmatik, Vol. 2, 395.
[3]
“O objeto da escatologia para nós se situa inteiramente no futuro”,
citado por J. Feiner / M. Loehrer (org.), Mysterium Salutis, Vol. V/3,
Do tempo para a eternidade, 66.
[4]
Há muitos textos especialmente de P. Casaldáliga e E. Cardenal que
demonstram claramente o que digo. Apenas dois exemplos de P.
Casaldáliga: “E tu, pequena Nica, / não és a menor de minhas cidades, /
diz o Senhor; / porque de ti nasceu / minha filha, Liberdade, / meu
filho, o Homen Novo. / Guerrilheira bordada de ternura, / flor de
libertação, porta-estandarte, / sacramento-guerrilha da América Nova, /
Nicarágua!” (Do poema “Quena de Vento e Povo”) e “Para que a Liberdade
da Nova Nicarágua, / que Sandino sonhou na montanha, / chegue a ser
inteira liberdade: / aquela Liberdade com a qual Cristo nos libertou. /
Para que a Liberdade da Nova Nicarágua / fermente a inteira Libertação /
da Nova América que sonhamos”. P. Casaldáliga, Na procura do Reino, São
Paulo, Editora FDT, 1988, 136.
[5]
Além de um certo realismo quanto à possibilidade do império romano ser
igualado ao Reino de Deus, a obra de Agostinho “De civitate Dei” é
escrita sob o impacto da queda de Roma através dos visigodos (410).
[6] De civitate Dei, XX 7.
[7]
Veja para isso a 5ª tendência das teologias escatológicas (Escatologia
na tensão entre o ‘já’ e o ‘ainda não’), na Parte I desta apostila.
[8] Cf. G. L. Müller, Katholische Dogmatik, 547s.
[9]
Isto após o Concílio de Lyon I [1245] ter definido o nome do lugar da
purificação após a morte como “Purgatorium” (DH 838) e o Concílio de
Lyon II [1274] ter confirmado a doutrina do purgatório e ter definido
como correto acreditar na possibilidade de através de intercessão dos
vivos ajudar a purificação das almas no purgatório (DH 856).
[10] Citado por L. Boff, A graça libertadora no mundo, Petrópolis, Vozes, 1977, 155.
[11]
L.Boff em seu livro “Ecologia: grito da terra, grito dos pobres” nos
cap. VII-X inicia um reflexão neste sentido de ver não mais apenas a
salvação em termos do ser humano, mas de um todo do universo. L. Boff,
Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, São Paulo, Editora Ática,
1995, 217-307. Cf. também L. C. Susin, Assim na Terra como no Céu,
Petrópolis, Vozes, 1995, 141s. e 189s.
[12] Cf. G. L. Müller, Katholische Dogmatik, 519-522.
[13] Os números citados entre colchetes [ ] referem-se ao ano do documento em questão.
[14]
DH = H. Denzinger / P. Hünermann (org.), Enchiridion symbolorum
definitionum et declarationum de rebus et morum / Kompendium der
Glaubensbekentnisse und kirchlichen Lehrentscheidungen, Freiburg, 371991.
Obs.: Heinrich Denzinger [1819-1883] publicou pela primeira vez em 1854
um compêndio de documentos com decisões e declarações eclesiásticas
sobre fé e moral. Desde então este compêndio tem conhecido novas edições
revistas e ampliadas. Na 32ª edição foi feita uma grande revisão e
ampliação, aos cuidados do teólogo Adolf Schönmetzer, que foi também o
responsável até a 36ª edição. Daí esta obra passou a ser citada sob a
abreviação DS (Denzinger/Schönmetzer). A partir da 37ª edição (1991), o
compêndio está sob os cuidados de Peter Hünermann e por isso passou-se a
utilizar a abreviação DH (Denzinger/Hünermann). A numeração dos
decretos porém foi conservada a mesma. Por isso, em obras onde se lê DS,
saiba-se que o número é o mesmo de DH.
[15]
Quanto a diferenças de interpretação a respeito de temas escatológicos
da Igreja Católica para as “novas” Igrejas, principalmente as igrejas
pentecostais, quase nada se pode dizer, pois a maioria delas não possui
um corpo dogmático.
[16]
Os Concílios unidos de Lyon II (1274) e Florença (1439) discutiram
especialmente estas controvérsias entre a interpretação católico-romana e
ortodoxa.