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segunda-feira, abril 30

Escatologia - 3a parte PDF Imprimir E-mail

Parte III: Escatologia e a tradição da Igreja
 
Jesus Cristo interpretou sua missão em favor do Reino de Deus - pelo que se supõe hoje - eminentemente sob o signo duma chave escatológica. Sua missão estava em favor do início da implantação do Reino de Deus, isto é, do início do fim dos tempos, da implantação do reino definitivo. A comunidade primitiva, especialmente sob o impacto do “evento Páscoa”, entende-se mais forte ainda, como comunidade escatológica, isto é, comunidade através da qual já se iniciou o final dos tempos (p. ex. a imagem usada no apocalipse [21,9] da noiva, esposa do Cordeiro, é uma típica imagem escatológica para a comunidade cristã mesma, que iria se unir com Cristo [o esposo]). A comunidade primitiva esperava, pois para logo a 2ª vinda do Cristo, a parusia. A demora da parusia começa a causar inquietação nas comunidades cristãs e textos do Novo Testamento já abordam a questão. Esta questão também ocupou os padres apostólicos. As duas Cartas de Clemente (a primeira escrita no final do primeiro século e a segunda na primeira metade do 2º século cristão) abordam o assunto e Clemente exorta na segunda carta a que os cristãos mantenham a esperança e sejam perseverantes na paciência (2Clem 11,5). Há, porém, na segunda carta já uma mudança de acento na espera da parusia. Passou-se de uma esperança de vinda próxima, para uma esperança permanente de vinda de Cristo e seu Reino: “Esperamos pois em todo o tempo o Reino de Deus..., pois não conhecemos o dia da vinda de Deus” (2Clem 12,1). Já o Pastor de Hermas (sec. II) interpreta positivamente a protelação da parusia: Deus está conscientemente protelando a parusia para dar chance aos pecadores para a conversão[1].
Esta argumentação era usada, porém em foro interno. Nas discussões apologéticas com os não-cristãos, a questão da parusia (e com isso o fim do mundo com o juízo final) tem um efeito quase que contrário. Com o medo de que este fim poderia vir (a idéia de fim do mundo não é uma “invenção” cristã) e julgar as pessoas, passou-se mais a temer a parusia que esperá-la com alegria. Assim a oração pela vinda o mais breve possível de Cristo (Ap 22,20) torna-se com o tempo uma oração de pedido de protelação da vinda (e com isso de protelação do fim do mundo e do juízo).
Com o passar dos anos, porém, o tema da parusia (vinda do Cristo e com isso do fim do mundo e do julgamento) passou para um segundo plano e a discussão em torno da ressurreição vai tomando a centralidade nas discussões sobre a escatologia. Com esta discussão há uma individualização na reflexão em torno da escatologia: o indivíduo é que ressuscita. A discussão sobre a escatologia universal não está mais no primeiro plano.
Com estes dois temas escatológicos (protelação da parusia e ressurreição individual) discutidos já desde o início nas comunidades cristãs, mostra-se presente duas tensões que acompanham toda a discussão escatológica até hoje: A tensão entre presença e ausência de realização (escatologia presente X escatologia futura) e a tensão entre a questão do indivíduo e a da coletividade diante da escatologia (escatologia individual X escatologia universal). Vejamos alguns pontos sobre estas duas tensões:
 
 
1 – Tensão entre presença e ausência de realização
 
A compreensão dinâmica de tempo e história que tinham os semitas foi substituída na reflexão escatológica muitas vezes pela compreensão estática da contraposição entre tempo e eternidade, entre aquém e além. Esta compreensão estática tende a dividir claramente: ou há escatologia agora ou ela é só futura; ou algo acontece agora no tempo ou acontecerá na eternidade; ou uma coisa pertence ao aquém, ou pertence ao além. Há uma cisão este os dois “lados” da qual nada escapa.
Claro que a não vinda imediata do Cristo glorioso levou os cristãos a reinterpretarem a esperança da manifestação imediata do fim da história. E com isto esqueceu-se um pouco este aspecto da ligação íntima entre Jesus Cristo e a esperança da realização final e começou-se, por vezes, a tratar o céu, a realização final, sem vê-la em íntima conexão com Jesus Cristo e o que com ele aconteceu. Ou seja, esqueceu-se que Jesus Cristo não é só aquele que vem (parusia), mas também aquele que veio (encarnação, vida, morte e ressurreição). E o Jesus Cristo que veio não é apenas passado, mas presente em meio à sua comunidade: esta certeza da presença de Cristo acompanha a comunidade cristã primitiva desde seu nascimento.
Pelo fato de termos a certeza da presença de Jesus Cristo na comunidade dos fiéis - e com isso em nosso meio - e se em Jesus Cristo já realizou-se ou manifestou-se plenamente a realização final, temos que dizer que a realização final já está de alguma forma presente em nosso meio. Há pois uma tensão histórica entre o fim já manifestado em Cristo (mas para nós ainda esperança de futuro) e nossa condição de morte, de não-realização, de caos, de falta de estrutura, de falta de comunidade definitiva com o Cristo... Há uma tensão entre a compreensão de escatologia já presente e escatologia somente futura.
A história da discussão desta tensão tem um componente político muito forte. A idéia de que há já em meio à situação atual escatologia presente, de que há sinais de realização que ainda não abrangem toda a realidade, esta forma de entender escatologia cresceu sobretudo na oposição, na perseguição; seja ela externa ou interna. Nos tempos de perseguição contra os cristãos nos primeiros séculos, a esperança de que Cristo está presente, de que o Reino de Deus virá para transformar esta ordem, esta esperança foi muito forte. Na Idade Média, quando muitos movimentos de renovação da Igreja foram perseguidos com mão de ferro e “fogo” pela própria Igreja, foi a esperança escatológica o ponto de apoio e alento (Joaquim de Fiore é um exemplo típico). O mesmo se há de dizer da situação em que nasceu a Teologia da Libertação (em oposição política e eclesial), onde o anúncio de uma nova ordem, a ordem do Reino de Deus (um conceito usado com conotação tipicamente escatológica), foi e é alento e esperança dentro da situação de opressão, perseguição... Nestas situações “a pressão do sofrimento concreto fez a esperança escatológica ficar concreta e visível”[2]. Como porém perguntar-se pela presença da realização quando cristãos dirigem a sociedade e têm a chance então (pelo menos teórica) de organizar esta de tal forma que possa ser expressão de mais realização? Esta é no fundo uma pergunta crucial para o cristianismo que adveio com a virada constantiniana e permanece até hoje. Com Constantino, um cristão governa o império: não deveria ser este expressão da relações humanas propostas por Jesus Cristo? Esta mesma pergunta faz hoje quanto à “conquista” da América: como foi possível que cristãos instaurassem aqui relações tão iníquas e exploradoras, que d mensagem de Jesus Cristo pouco ou nada espelham? A tendência teológica em situações onde o cristianismo esteve ou está no poder, foi porém um acento mais forte na escatologia futura. A ligação entre Igreja e poder permaneceu na história por tanto tempo, que se chegou a afirmar que escatologia diz respeito apenas às realidades futuras[3].
Interessante é observar algumas interpretações de passagem, de pessoas que conheceram tanto a perseguição na oposição como a nova situação: Assim, por exemplo, Eusébio de Cesaréia (+ 340), que experimentara pessoalmente a perseguição do imperador Diocleciano contra os cristãos, saúda a “virada constantiniana” em sua obra “Historia ecclesiae” como um tempo em que o Espírito de Deus encheu novamente a história. Mundo, Estado, Igreja e Reino de Deus são quase que sinônimos e não se pode deixar de ver a ligação que Eusébio faz entre esperança escatológica e reinado de Constantino. O próprio imperador Constantino recebe conotações messiânicas ao ser chamado por Eusébio de “querido de Deus”, “escolhido para ser senhor e líder” (Vita Constantini). Fazendo um grande pulo na história, podemos ler a mesma expectativa escatológica em textos de transição entre opressão e revolução, especialmente textos poéticos, escritos por cristãos engajados politicamente quando da vitória da revolução sandinista na Nicarágua[4].
Uma interpretação também muito interessante faz Santo Agostinho (+430) em sua obra “De civitate Dei”, no tempo em que a memória do tempo de opressão ainda estava viva na comunidade cristã, mas já se começava a ficar mais sóbrio quando à possibilidade de igualar Reino de Deus com Igreja e com império romano cristão[5].
Nesta situação Agostinho desenvolveu uma reflexão muito interessante sobre a presença do sentido último já aqui em meio à nossa realidade, mas ao mesmo tempo a presença da não-realização: Concepção da construção de duas cidades, a cidade de Deus e a cidade terrestre. Para Agostinho, em nossa realidade ocorre a construção de duas cidades. Uma é construída pelo amor de Deus e a outra pelo amor de si. Estes dois amores se opõem. Mas no concreto histórico, estas duas cidades se cruzam. Tanto se constrói a cidade terrestre, como também a cidade de Deus. Sinais da construção da Cidade de Deus nesta terra, para Agostinho: moralidade, justiça, paz e fé. Mas tudo isso de forma provisória se comparada com a com a eternidade nos céus. A linha divisória entre a cidade de Deus e a cidade terrena não é para Agostinho uma questão política ou social, mas aquilo pelo qual as pessoas se deixam guiar: ou pelo amor a Deus ou pelo amor ao Eu. O conceito de “cidade de Deus” é um conceito claramente escatológico e de escatologia presente, mas em lugar algum a “cidade de Deus” é identificada plenamente com a Igreja, a comunidade ou o império. Para Agostinho não se pode inclusive identificar quem pertence “ao partido diabo e quem não”, e isto não ficará claro neste mundo[6].
Um ponto importante a se notar nesta reflexão de Agostinho é que ele não coloca a realização ou a construção - como ele diz - da cidade de Deus apenas para depois da morte. Mas vê já nesta realidade o começo da realidade celeste. Com isso valoriza ele a realidade em que se vive e acentua assim uma concepção de escatologia presente. A concretização definitiva da cidade de Deus ocorrerá porém somente com o juízo final, com o qual todos os cidadãos da cidade de Deus irão ser plenamente felizes na visão de Deus e experiência de seu amor. Com isso Agostinho não resolve, mas mantém conscientemente a tensão entre presença e ausência de realização.
Esta tensão existente entre o agora da história onde há a presença de realização, mas também da não-realização, do sentido, mas também da falta de sentido, por isso a realização aqui experimentada não é definitiva foi nomeada por uma expressão que talvez caracterize bem a escatologia cristã a partir de Jesus Cristo: a dialética do „Já“ e do „ainda não“ elaborada por O. Cullmann, que já tivemos a oportunidade de ver[7]. Em Jesus já se manifestou a realidade última, mas ainda não se realizou na plenitude da história.
E assim poderíamos citar mais exemplos na história da Teologia onde esta tensão ficou clara, onde houve uma maior ou menor identificação entre conceitos como Império, Igreja e Reino de Deus.
 
 
2 – Tensão entre escatologia individual e escatologia universal
 
Outra questão que marcou toda a história da reflexão sobre a escatologia é a tensão entre escatologia individual e a escatologia geral ou universal. Até pelo século XII a reflexão sobre a escatologia universal e individual privilegiava a universal como ponto de partida e a escatologia individual era vista a partir da universal. O fim individual era visto em unidade com o fim da comunidade. Mesmo tendo este ponto de partida, colocava-se a questão: o ser humano, como indivíduo, tem seu fim histórico na morte, mas este fim histórico não é o fim da história. O que acontece neste meio tempo (status intermedius)? Dos primeiros séculos do cristianismo até pelo século XII/XIII prevalecia a idéia de que após a morte, a alma irá ter com Deus e será julgada. Neste julgamento será selado seu destino para sempre: a recompensa pelo bem ou o castigo pelo mal. Tendo já seu destino decidido, a alma permanece no Xeol, aguardando o fim dos tempos e a ressurreição da carne, onde irá então já com sua corporalidade assumir o destino já definido no juízo após a morte. No Xeol, porém, fazia-se distinções de condições, de modo que já se antecipava neste status intermedius a condição final de felicidade ou frustração. O juízo final irá confirmar o juízo individual, de modo que do ponto de vista soteriológico o juízo final e o juízo individual são coincidentes.
O desenvolvimento da idéia do status intermedius esteve ligado diretamente com o desenvolvimento do conceito de “alma”. Este conceito de origem grega não foi aceito inicialmente pela teologia cristã, pois trazia consigo a idéia grega da imortalidade da alma, imortalidade esta que era consequência do fato de a alma ter algo da substancialidade divina. A ressurreição, do ponto de vista cristão, é um ato exclusivo de poder de Deus para com suas criaturas. Os dois conceitos - de imortalidade da alma e de ressurreição - eram pois incongruentes. Só após o conceito “alma” ter sido redefinido é que ele foi assumido plenamente pela teologia cristã. O conceito “alma” foi redefinido como “princípio (criado) de identidade” da criatura, deixando-se assim o conceito de alma como princípio da imortalidade como a entendiam os gregos[8].
A questão do status intermedius foi definida pelo magistério eclesial pelo Papa Bento XII, na constituição “Benedictus Deus” (29/01/1336 - DH 1000-1002)[9]: a alma daqueles que morreram em estado de graça (justificante) participam da felicidade celeste logo após a morte; a alma daqueles que morreram sem estar totalmente puros irão passar por uma purificação (purgatório) antes de participar da visão beatífica e a alma dos que morreram em pecado mortal irão para a perdição eterna, por eles mesmos escolhida; no juízo final haverá a ressurreição dos mortos, na qual todas as pessoas humanas serão recompostas também em sua corporalidade.
A discussão sobre a tensão entre o juízo individual e o universal ficou bastante presa à situação “do indivíduo” nestes julgamentos. Nesta questão há de se pensar, porém uma pergunta muito importante: há um juízo individual e outro comunitário? A fé nos leva a crer que o juízo não se dá separadamente sobre indivíduo e sobre comunidade, mas em conjunto, pois o ser humano não pode ser entendido se não incluirmos as duas coisas ao mesmo tempo: a sua individualidade e a sua integração comunitária. Na verdade cada ser humano é parte de uma rede da história, onde de forma alguma podemos separá-lo de seu contexto, nem eximir sua responsabilidade como indivíduo.
Até agora a questão da escatologia - seja a individual, seja a universal - tem sido entendida na história da Igreja quase que exclusivamente no nível do ser humano. Não deveríamos nos perguntar, porém, se só o humano é chamado à realização? Ou toda a criação, todo o universo também é chamado à realização final? É possível pensar o humano na teologia ainda como um departamento à parte e válido apenas para si mesmo?
Penso que a discussão principalmente em torno da ecologia fez tornar-se ponto pacífico que o humano é uma parte do todo. E como tal ele implica no todo e é implicado pelo todo. A ilusão de que o humano é algo espe­cial dentro da criação se desfaz, principalmente perante os problemas ecoló­gicos, onde fica claro que "tudo e todos estamos no mesmo barco" e que certamente não haverá uma segunda Arca de Noé, no qual alguns escolhi­dos poder-se-ão colocar em segurança, ou se houver uma tal Arca de Noé numa situação de catástrofe ecológica, a espécime humana não teria necessariamente um lugar reservado. Esta consciência de que pertencemos como membros da espécie humana a um todo, nos leva a perguntar pelo sentido teológico desta constatação. E é sem dúvida um novo desafio pensar a salvação, a realização final, a escatologia, não apenas para o humano, mas para toda a criação. Se temos a certeza que o humano foi criado para a liberda­de, é um desafio pensar a liberdade para toda a criação. Se temos a certeza de haver um sentido último, é um desafio pensar o sentido último para todo o universo. Se temos a esperança na fé de que caminhamos rumo à culminância onde Deus será tudo em todos, é um desafio pensar esta caminhada para a totalidade do universo. Ou será que o humano é uma exceção em termos de salvação, libertação e sentido último?
A história do cristianismo e sua teologia centraram suas reflexões quase que exclusivamente no humano, contribuindo, sem dúvida para uma menta­lidade e atitude de dominação/destruição do seu meio-ambiente. Tudo passou a ser pensado a partir do humano e tendo o bem do humano como objetivo. Necessariamente não precisaria ter sido assim. Há na tradição bíblica e cristã pontos que nos permitem pensar o chamado à realização não a partir apenas do humano, mas a partir do todo, do qual o humano é apenas uma parte. É necessário para isso repensar a teologia da criação e, sobretudo repensar e redimensionar uma teologia da vida, onde a vida tenha a centralidade e não entendida apenas como vida humana.
Este novo desafio da teologia não pode ser pensado apenas como sendo uma nova parte dentro da teologia, uma "teologia da natureza", mas teria implicância em todos os campos da teologia. Pensar que toda a criação é chamada à realização, ao sentido último, é mais do que se perguntar se no céu também haverá animais e plantas ou se a árvore ou o cavalo também têm alma.
Diante destes novos desafios, é preciso ampliar a frase de Ortega y Gasset: "Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo"[10]. Certamente teremos que reconhecer que eu sou eu, mas parte de um todo (seja ele entendido como planeta terra ou como universo) e se o todo não for salvo, se o todo não caminhar em direção ao sentido, estarei condenado com ele à per­dição e ao absurdo[11].
 
 
3 – Temas escatológicos
 
Esta visão unitária da escatologia é muito importante. Caminhamos todos para o sentido último que se nos advém como convite a ser aceito ou não. Só a partir desta unidade do Projeto de Deus é que podemos pensar os temas escatológicos, para não corrermos o perigo de vê-los cada um por si, como departamentos estanques e diferentes. A partir desta visão unitária e global é que podemos pensar alguns temas específicos da escatologia:
 
a) Morte
A morte corporal é um fato pelo qual todos nós iremos passar. Este fato tem muitos aspectos: a) Ela é um fato da natureza. Tanto vinda mais cedo ou mais tarde, ela mostra a fragilidade da natureza humana. Nossa natureza é limitada. Esta experiência a temos muitas vezes, já durante a vida. Pelo fato da morte, fica claro que somos parte da natureza; não somos como humanos algo à parte. b) A morte é um acontecimento pessoal. É uma experiência que só se pode fazer sozinho. É a experiência da individualidade. c) A morte é algo que diz respeito ao ser humano como membro duma comunidade. E a morte mostra muitas vezes muito desta comunidade. Pode-se ver muito sobre a sociedade observando como morrem as pessoas: há os que morrem assassinados, os que morrem de acidentes, os que morrem em guerra, os que morrem de fome, os que morrem aos 95 anos, rodeados de filhos e netos, na certeza de ter vivido bem, há os que provocaram a própria morte. A morte é por assim dizer, também uma espécie de atestado de bom ou mau funcionamento duma sociedade. Seja qual for a morte e sabendo todos que ela haverá de vir, socialmente, no entanto, agimos muitas vezes como se ela fosse um acidente de percurso: Morreu de quê? Como se a morte fosse exceção. d) Como pessoas de fé, vemos, porém a morte não apenas como um fato natural, pessoal e social, mas também um fato de significância teológica. A fé cristã nos ensina em primeiro lugar, que a morte está ligada à vida e que viver como se a morte não existisse é uma irresponsabilidade, é querer cortar nosso elo de passagem para a vida não mais dentro da condição de limitação. Esta vida é, pois uma preparação para a morte e pensar assim não é masoquismo, mas sim realismo. A morte, para o cristão, deve vir como coroamento da missão cumprida de criatura de Deus. Por isso a preparação para a morte e a luta contra os mecanismos que fazem com que as criaturas não possam cumprir seu papel, ocasionando a morte prematura. Em segundo lugar a fé nos ensina que a morte é a porta de entrada para a vida definitiva. Quer dizer, ela é a libertação da limitação e a abertura definitiva ao ilimitado, a Deus. Assim podemos entender a frase de Paulo na Carta aos Filipenses: “Para mim a morte é lucro“ (1,21). Ela é passagem sem volta para a realização ou não (não se pode deixar impressionar pelas narrativas dos que quase morreram: luz, paz, dissociação do corpo...). Por isso não há como não dizer que a morte é um juízo, um julgamento. (Temas afins, para ampliar a questão: comunhão com os mortos, comunicação com os mortos, reencarnação dos mortos).
 
b) Juízo individual
A morte é então o momento do julgamento de nossa vida. Não imagino que seja um ato de julgamento, mas sim o fato de julgamento. Com a morte sela-se definitivamente nosso caminho. A morte é o ponto final do peregrinar, do tempo de decisões. Por isto, morte é decisão, é tribunal. Este julgamento não é feito de fora. Somos nós que o fazemos, a nossa vida é o critério, segundo o que nos ensinou Jesus mesmo. Com a morte dá-se o julgamento individual de cada pessoa, no sentido – para usar a mesma expressão de Santo Agostinho – da cidade de Deus ou da cidade terrena. Este julgamento nos mostra se a vida foi apta para a cidade de Deus, foi apta para a comunhão consigo e com os outros. Ou se negamos a possibilidade de comunhão. Nós somos o critério de juízo de nós mesmos e quem dá as medidas para o julgamento é o que Cristo chama de Reino de Deus (e no Reino de Deus os pobres são, segundo Jesus, a medida do julgamento). Na verdade este julgamento já existe desde a encarnação de Jesus Cristo, sua vida, morte e ressurreição. Desde Jesus já se mostrou a quê Deus nos chamou e então o juízo de Deus já está presente na história e com isso e nossa história, na história pessoal de cada um.
 
c) Purgatório
A tensão entre escatologia individual e escatologia geral levou a se pensar a questão: o que acontece entre uma e outra? O fato é que a história individual encontra na morte a sua escatologia, enquanto a história da humanidade não.
Quando falamos em julgamento com a morte, temos a certeza que nem todos são totalmente santos, isto é, conseguiram assumir em suas vidas 100% o projeto do Reino de Deus. O que acontece então? Os cristãos colocaram-se esta questão ao longo dos séculos.
Além disso, cremos e temos a certeza que Deus é misericórdia e consegue olhar com benevolência também o pecador. Irá condená-lo por ele ter feito não apenas o bem, mas também o mal?
O que está por detrás deste questionamento é a pergunta pela purificação após a morte, ou seja, se os que não são totalmente bons, mas tem também incoerência em si, serão condenados mesmo assim.
Destes questionamentos todos surge a idéia da escatologia intermediária: o purgatório. A idéia da existência de um purgatório não está na Bíblia, mas ocupou a reflexão de muitos cristãos, nas apenas por conta da fantasia, mas por uma séria preocupação de fé.
Esta preocupação e a fé dos crentes na existência duma escatologia intermediária levaram a Igreja a afirmar: sim, é possível uma purificação após a morte e os que ainda não morreram podem participar desta purificação através de preces e obras de caridade (1274, II Concílio de Lião). A Igreja não definiu que isto deveria ser crido, mas assumiu como parte de sua tradição de fé aquilo que já se acreditava. A tradição de rezar e de fazer sacrifício pelas “almas do purgatório“ é algo muito antigo na tradição cristã.
Na idéia do purgatório podemos ver hoje um profundo conhecimento sobre o ser humano: Ninguém termina sua caminhada nesta vida com clareza e santidade total. A maioria dos seres humanos termina sua história também carregada de contradições, marcada pela negatividade de muitas ações passadas, dividida por incoerências internas que não conseguiu superar ao longo da vida por meio de seu esforço. A psicologia vê a vida do ser humano como um processo onde há maior ou menor maturidade. Para cada época de vida há uma maturidade em si, uma maturidade que lhe seja adequada ou possível. Durante toda vida há um processo de encontrar a maturidade devida. Mais ou menos nesta linha interpretam alguns teólogos também o purgatório: ele seria um processo de superação das contradições, de negatividade, da incoerência, que já se dá em vida.
E como o ser humano não é apenas um ser pessoal, mas também social, há de se ver este processo de superação de contradições e incoerências, de negatividade, não apenas como um processo pessoal, mas como um processo também social. Não caminhamos para mais perto ou mais longe do Reino de Deus apenas como indivíduos, mas também como comunidade de criaturas.
O purgatório pode ser entendido somente quando o colocamos dentro desta perspectiva de purificação, de maturação tanto pessoal como comunitária ou social. Dentro desta perspectiva não corremos o risco de cair em ritos mágicos ou mecânicos em relação ao purgatório. Um pouco de magia e mecanicismo se mistura às vezes no imaginário popular quando pensa a relação entre nós e os que estão no purgatório.
 
d) Ressurreição
O tema purgatório mostra como não podemos ter a certeza do como irá acontecer o após morte. O que irá acontecer após a morte, ou a que somos chamados após a morte, isto, porém está muito claro a partir de Jesus Cristo: somos chamados à ressurreição. Em Jesus já se manifestou a quê o humano é chamado: à vida plena invencível. Como diz Paulo na Primeira Carta aos Coríntios: “Na verdade Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morrem... Assim como em Adão todos morrem, em Cristo todos reviverão“ (1Cor 15,20.22).
Paulo (1Cor 15,36ss) usa o exemplo do grão de trigo para dizer como será a ressurreição: o grão precisa morrer, para nascer. Quando se semeia, é apenas semente. Não se semeia a planta, mas o grão. Assim nossa vida é apenas o grão, que em sua trajetória, incluindo o pós-morte, irá irromper, desabrochar naquilo que deveremos ser definitivamente. Nesta imagem está presente de forma muito clara a dialética do “Já” e do “Ainda não” da escatologia em nosso meio: na semente já está presente o gérmen da planta, mas ainda não se desenvolveu plenamente.
 
e) Céu
Para ficar na mesma imagem da semente usada por Paulo, podemos dizer que o gérmen de vida presente dentro da semente pode tanto desabrochar e assim realizar-se como planta, como também pode morrer para sempre, ou seja, frustrar o projeto de planta que está dentro dele ou que já começara a se desenvolver. Esta comparação serve para descrever muito bem o ser humano e a criação toda em seu destino. Em nós está o gérmen da realização, da vida plena, da superação da limitação, da ressurreição. Fazer este gérmen desabrochar, chegar à sua vocação, àquilo que é chamado, é o que na teologia se denomina céu. Céu é a resposta à pergunta que fazíamos logo no começo: “O que Deus quer conosco?” O céu é, segundo a Bíblia, a morada de Deus. Quando dizemos que céu é a resposta à pergunta sobre nosso destino, dizemos pois que somos chamados a ser junto com Deus. E ser junto com Deus não é um determinado lugar, mas sim uma determinada situação, um ponto de chegada. Seria uma situação de superação de tudo o que limita a realização. Céu é a situação de realização sem limites, de felicidade completa. A Bíblia usa diversas metáforas para descrever esta situação: “banquete nupcial” (Mt 22,1-14; 8,11; Ap 19,7-9), visão da face de Deus (=ser santo) (Mt 5,8; 1Cor 13,12; 1Jo 3,2), vida plena, coroa da vitória (Tg 1,12), prêmio (1Cor 9,25), Jerusalém celeste (Ap 21,9-27), novo céu e nova terra (Ap 21,1-9). Por estas imagens usadas para descrever o céu, podemos perceber com clareza a dialética do “Já” e do “Ainda não”. Também em nosso meio já estão presentes pedacinhos do céu. E talvez pudéssemos acrescentar a estas imagens da Bíblia, muitas outras onde nós também vemos sementes do céu já presente, mesmo que incipiente.
Toda esta felicidade celeste é, porém, limitada, se a pensarmos apenas no nível individual: “eu vou me realizar”. O céu não é a plenitude pessoal, mas também a plenitude do amor, de abertura ao outro, de realização no relacionamento. O caminho para o céu, para a realização, não o faço só. Nem isto é possível. Minha circunstância caminha comigo para a realização e dentro dela caminho eu. “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”, para recordarmos novamente Ortega y Gasset. Uma lenda chinesa do céu e inferno como dois montes de arroz, deixa transparecer bem esta dimensão interpessoal de compreender o céu ou o inferno. Nesta lenda, o inferno é descrito como um lugar onde há uma montanha de arroz cozido, pronto para ser comido. E ao redor dela, estão pessoas com palitos para comer de 3 metros em suas mãos. E todos sofrem fome eterna, pois conseguem pegar o arroz com os palitos, mas não conseguem levá-lo à boca. Já o céu é descrito como a mesma situação, mas como não se consegue levar o arroz à própria boca, ali uns alimentam os outros e assim vivem eternamente satisfeitos.
 
f) Inferno
O inferno é então o oposto ao céu. O ser humano, tendo tudo em si para a realização, pode responder negativamente a este chamado, pode escolher o caminho da não realização. Inferno é a situação de não-realização, é o não ao céu. Como o humano pode chegar definitivamente à realização, ele também pode dizer não a esta realização e com isto fechar-se definitivamente a ela. O inferno não é, pois uma alternativa criada por Deus ao céu, mas a situação de negação do céu. Podemos invocar aqui o modo de pensar de Agostinho: o mal não existe, existe a ausência do bem. Ele é resultado da liberdade humana. A vontade de Deus é que todos sejam salvos, diz a Bíblia (1Tim 2,4). A Bíblia descreve esta situação de frustração eterna através de muitas imagens: fogo que não se apaga (Mt 5,22), choro e ranger de dentes (Mt 18,22; Lc 13,28), trevas exteriores (Mt 8,12), cárcere (1Pd 3,19), segunda morte (Ap 2,11) etc.
Tanto como podemos perceber sinais do céu, de realização já entre nós, também o inferno se faz presente, ou seja, sinais de não realização. Também já agora há sinais de frustração, de não comunhão, de fechamento ao amor, de impedimento à justiça...
 
g) Fim do mundo e Juízo Final
O tema escatológico que sem dúvida deu mais margem ao imaginário popular durante os séculos foi o tema do “fim do mundo”. Em quase todas as culturas há idéias de um fim do mundo catastrófico, seja por água, por fogo, por raios ou explosões. No imaginário há sempre elementos de fora, que não pertencem ao nosso dia-a-dia, irrompendo em nosso mundo e arrebatando toda a vida. Em muitos episódios de acidentes ou catástrofes é comum que se ouça dizer: “Parecia o fim do mundo“. Haverá um fim do mundo desta forma violenta? Se entendermos “fim do mundo” como fim da vida no planeta terra, temos a certeza que haverá um fim do mundo. Quem nos diz isto não é tanto a teologia, mas mais a astronomia. A vida depende do calor do sol e este um dia acabará (segundo os cálculos astronômicos, o sol tornar-se-á um pulsar daqui a ca. de 5 bilhões de anos). Hoje fala-se muito na possibilidade de um fim do mundo provocado pelo próprio ser humano: seja por armas, por colapso ecológico ou climático. A nós é muito mais claro do que em outras épocas, que existe a possibilidade real de um tal fim do mundo (catastrófico).
A escatologia não se ocupa, porém, tanto com o fim do mundo histórico. A pergunta com a qual se ocupa a escatologia cristã é mais “qual é o fim do mundo?”, no sentido, para que finalidade foi criado o mundo? A que ele se destina? A esta pergunta a Bíblia é toda uma resposta muito clara: o ser humano, bem como toda a criação é destinada à vida, à eternidade, a Deus. Paulo resume muito bem esta certeza de fé na Carta aos Romanos: “Com efeito, o mundo criado aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. Pois as criaturas foram sujeitas à vaidade, não voluntariamente mas pela vontade daquele que as sujeitou, na esperança de serem também elas libertadas do cativeiro da corrupção para participarem da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (8,19-21).
E como a morte é o juízo individual para cada um, o fim do mundo é o juízo final, ou seja, o plano de Deus, o Reino de Deus manifestado já em Jesus Cristo é que irá julgar cada um, toda a humanidade e toda a criatura. É isso que rezamos: Cremos que Jesus há de “vir a julgar os vivos e os mortos”. E se a morte individual é o fim do peregrinar, há a esperança na fé de que a totalidade irá também encontrar o seu ponto de chegada.
 
4 – Declarações doutrinais mais importantes da Igreja sobre temas escatológicos[12]
 
As questões relativas aos chamados “temas escatológicos” receberam ao longo da história da Igreja muitas “declarações doutrinais”, feitas por documentos papais ou por documentos conciliares. Não há, nestas declarações, uma linha única de raciocínio, dado que foram feitas em sua grande maioria em momentos específicos e para responder a alguma demanda determinada. Assim sendo, há também muitas coisas contraditórias nestas declarações. A seguir é colocada uma espécie de “listagem” de declarações que mais marcaram a posição da igreja diante destes temas.
 
            a) Sobre o destino individual
 
1. A morte é uma consequência do pecado (Decreto sobre o pecado original do Concílio de Trento [1546][13], DH 1512, apoiando-se em Rm 5,12 - reafirmado pelo Concílio Vaticano II em GS 18)[14].
2. A morte é o fim da situação de peregrino (estar a caminho). Depois da morte a pessoa não pode mais por merecimento próprio exercer influência sobre seu destino final (Bula “Exsurge Domine”, propositio 38, Leão X [1520], contra os erros de Martinho Lutero, DH 1488).
3. O poder da morte, enquanto expressão da falta da graça (pecado), foi quebrado definitivamente pela morte de Cristo (afirmação comum dos credos).
4. O juízo individual ocorre imediatamente após a morte e este juízo decide o destino ou de santidade (no céu) ou de purificação no purgatório ou de condenação no inferno (ainda antes da ressurreição do corpo e da parusia); a condição definitiva da pessoa não se inicia pois apenas com o último juízo, depois de uma passagem intermediária no Xeol (Bula “Benedictus Deus”, Bento XII [1336], DH 1000-1002 e Bula “Laetentur caeli”, Concílio de Florença [1439], DH 1304-1306). Após a morte permanece a existência de um elemento espiritual, dotado de consciência e vontade, de modo que o “eu humano” existe também neste tempo intermediário, sem contudo ter um corpo. Este elemento que permanece é chamado pela Igreja de alma (Escrito da Sagrada Congregação para a Defesa da Fé “Recentiores episcoporum synodi” [1979], DH 4653.)
5. Sobre a situação na glória celeste é ensinado que ela consiste no desfrutar, na visão e na dileção da essência divina (fruitio, visio et dilectio essentiae divinae). Outros nomes usados para glória celeste são céu, paraíso do céu, pátria eterna (DH 839, 1000). Deus será reconhecido em sua unidade e trindade e no existir das três pessoas de forma clara, aberta e imediata, sem mediação de criatura qualquer; isto não quer dizer porém que teremos a visão beatífica em uma forma que não seja própria de nossa forma de criatura (modo creaturae), mediada pelo Logos, que assumiu a natureza humana. Também as almas separadas do corpo (quer dizer, das pessoas que não mais estão ligadas com a antiga condição mundana e não mais se encontram “a caminho” {statu viae}) vêem Deus como ele é, da forma que seu status permite, pois ainda está por vir a realização final na comunhão dos santos, na qual será assumida a nova condição. Na ressurreição corporal, também o corpo participará então da visão beatífica (Bula “Benedictus Deus” [1336], DH 1000-1002).
A visão beatífica é sobrenatural. Somente através da luz da glória (lumen gloriae), que é derramada pela graça e que substitui a luz da fé (lumen fidei) é que o espírito e a vontade podem chegar à visão de Deus em sua essência (Constituição “Ad nostrum qui”, Concílio de Viena [1312], DH 895).
A visão beatífica dá-se para as pessoas em diferentes graus, dependendo dos merecimentos. Quem é santo a tem com segurança e ela é eterna e não pode ser perdida (Bula “Benedictus Deus” [1336], DH 1000-1002).
Somente quem morre em estado de graça justificante, no amor de Deus e totalmente livre tanto da culpa dos pecados como das penas dos pecados, consegue obter a visão beatífica imediatamente após a morte (Decreto sobre Justificação, Concílio de Trento [1547], DH 1546, 1582).
6. Sobre o purgatório é ensinado que ele existe e é um lugar (condição) de purificação das penas remanescentes dos pecados. Refere-se somente a cristãos que morreram na graça justificante, nos quais ainda há resquícios de pecado, que os impede de unir-se totalmente em amor com Deus (Lyon I [1254], DH 838; Lyon II [1274] {Profissão de Fé do imperador Miguel Palaiologos}, DH 856-885, Bula “Benedictus Deus” [1336], DH 1000-1002, Concílio de Florença [1439], “Laetentur caeli”, DH 1304-1306, Concílio de Trento, Decretum de purgatorio [1563], DH 1820). As almas no purgatório estão certas de sua salvação (contra Lutero, prop. 38, DH 1488). Seguindo a imagem bíblica, usa-se a imagem do fogo para falar da purificação no purgatório (ignis transitorius; DH 838).
7. A pena do pecado original é a perda da visão beatífica. Quem morre sem ter recebido a graça justificante do batismo, sofre apenas a poena damni, - ou seja, a privação da visão beatífica, que no caso de um não-batizado sem pecado pode ser comparado com uma situação de felicidade natural - e não a poena sensus, - ou seja, um castigo depois da ressurreição do corpo (discussão em torno do destino das crianças que morrem sem terem sido batizadas {limbus infantium}: carta do papa Inocêncio III [1201], DH 780; Concílio de Florença, DH 1306).
As afirmações de caráter não-obrigatório feitas sobre o limbo podem ser consideradas superadas pelas afirmações do Concílio Vaticano II sobre a possibilidade de salvação para os não-batizados.
8. Sobre o inferno se afirma que para lá se destinam os que permaneceram em pecado mortal até a morte (“Benecitus Deus”, DH 1002; Concílio de Florença DH 1306).
A doutrina afirma que a pena do inferno é eterna. O Sínodo de Constantinopla [543] aceitou a proposição de anátema do Imperador Justiniano contra Orígenes, que em sua teoria da “Apokatastasis” afirmava a possibilidade de volta ainda para os condenados e mesmo demônios (DH 409; 411).
O motivo da condenação eterna é a própria e livre vontade (“Fides Pelagii papae” [557], DH 443), que através de fatos capitais (facta capitalia) (Sínodo de Arles [473], DH 342) leva à rejeição por Deus, pois ela leva a permanecer até a morte sem arrependimento e sem perdão em situação de pecado mortal (Sínodo de Valença [855], DH 627; Lyon I [1245], DH 838; Bula “Benedictus Deus”, DH 1002; Florença [1439], DH 1306).
 
            b) Sobre a comunhão em Cristo dos vivos e mortos
 
1. Existe uma comunhão na salvação entre todos os que pertencem a Cristo, tanto os santos do céu, como os que estão a caminho (Igreja peregrina) e aqueles cujas almas foram entregues à purificação no purgatório (Papa Leão XIII, Encíclica “Mirae caritatis” [1902], DH 3360-64; Concílio Vaticano II, Lumen Gentium cap. 7 e 8.).
2. Os santos nos céus intercedem pelas pessoas (Concílio de Trento, DH 1821; 1867). O culto aos santos tem como objetivo final o culto ao Deus trino, que se vê glorificado através daqueles que por ele foram santificados (Nicéia II, DH 601; Trento, DH 1821-1825).
3. As almas do purgatório tomam parte na comunhão dos santos. Elas, porém, não podem fazer nada para modificar sua situação. Os vivos podem, porém, interceder por elas através de: celebração do sacrifício da missa, oração, obras de caridade e outras obras de piedade (Trento, Decreto sobre o sacrifício da missa, DH 1753, decreto sobre o purgatório, DH 1820). A eles podem ser aplicadas também indulgências “per modum suffragii” (Sixto IV, Bula “Salvator noster” [1476], DH 1398 e Encíclica (explicativa) “Romani Pontificis provida” [1477], DH 1405-07; Leão X, decreto “Cum postquam” [1518], DH 1447-1449). O escrito da Sagrada Congregação para a Defesa da Fé a todos os bispos (17/05/1979, DH 4654) acentua neste contexto que a oração da Igreja tanto nos ritos fúnebres quanto a veneração aos mortos representam “loci theologici” e rejeita as teorias que não vêem sentido nestas orações.
 
            c) Sobre a escatologia universal
 
1. No fim dos tempos Cristo virá pela segunda vez novamente em sua natureza humana por ele assumida (ponto comum dos credos). É rejeitada a teoria do quiliasmo ou milenarismo, segundo a qual Cristo, antes do juízo final, instalaria neste mundo e tempo um reino visível que duraria mil anos (Decreto do Santo Ofício [1944], DH 3839).
2. Todas as pessoas, também as condenadas, participarão da ressurreição dos mortos, para a vida eterna ou para a condenação eterna da pessoa em alma e corpo (“Fides palagii papae” [557], DH 443; Toledo VI [638], DH 493; Toledo XI [675], DH 540; IV Latrão [1215], DH 801; Lyon II [1274], DH 859; Bula “Benedictus Deus” [1336], DH 1002).
Todos ressuscitam na própria carne (‘in propria carne, cum suis propriis corporibus”, DH 801), não com um corpo etéreo ou fantástico.
Cristo mesmo e só ele ressuscitará os mortos (ponto comum dos credos) e a graça de Cristo, que é cabeça cujo corpo é a Igreja, passará a todos os seus membros (Papa Vigílio, Carta “Dum in sanctae” [552], DH 414).
3. Depois da ressurreição dos mortos haverá o juízo universal sobre toda a humanidade e sua história (ensinamento comum dos credos e documentos).
Este dia é desconhecido a anjos e pessoas humanas. Cristo conhece este dia em sua natureza humana, mas não a partir de sua natureza humana, mas sim somente a partir de sua natureza divina (Papa Gregório I, Carta “Sicut aqua” [600], DH 474).
Seguirá então o fim material do mundo. Uma teoria sobre o “como” acontecerá este fim do mundo é expressamente rejeitada (Papa Pio II, Propositio I sobre os erros de Zaninus de Solcia [1459], DH 1361).
No final haverá o Reino de Deus e Cristo. Os santos viverão para sempre na vida eterna. Ela é fruto da justificação, da graça e dos merecimentos por boas obras (Trento, Decreto sobre a Justificação, DH 1545-1547).
A Igreja passará ao reino celeste. Como mediadora de salvação ela terá um fim, como fruto de salvação ela permanecerá (VI Sínodo de Toledo [638], DH 493). Todos os santos reinarão com Cristo eternamente (= unidos à vontade de Deus, isto é, segundo o amor; XI Sínodo de Toledo [675], DH 540; XVI Sínodo de Toledo [693], DH 575; Trento, DH 1821, Vaticano II, LG 7 e 8).
“... seu Reino não terá fim” (cuius regni non erit finis; todos os credos, especialmente o niceno-constantinopolitano [381], DH 150).
 
            d) Diferenças de interpretação nas Igrejas ortodoxas e protestantes
 
As afirmações doutrinais feitas pela Igreja católica a respeito de temas escatológicos, principalmente as afirmações que são comuns nos credos, são afirmações pacíficas para todas as igrejas cristãs, mesmo porque a maioria delas foi feita antes de uma divisão entre as confissões. Com a divisão de confissões há alguma diferença de interpretação entre as Igrejas ortodoxas, a católica e as nascidas da Reforma (com Lutero e Calvino)[15]. As diferenças de interpretação da Igreja católica para as ortodoxas ou da reforma referem-se, porém, apenas ao tema do purgatório.
Nas Igrejas ortodoxas orientais o conceito de escatologia individual não teve o mesmo desenvolvimento que no mundo ocidental. A visão beatífica ou a perda dela ocorre somente com o último dia (fim do mundo). A escatologia intermediária ficou no conceito semítico de Xeol, onde as almas dos mortos ficam. Há, porém, dentro do Xeol diferentes graus. Como na interpretação católica, para as igrejas ortodoxas, a oração aos falecidos pode ajudá-los em sua sorte (fazendo-os sofrer menos penas no Xeol, ou passar para outro nível)[16]. A diferença de interpretação da escatologia intermediária entre católicos-romanos e ortodoxos é, como se vê, bastante pequena.
A diferença da interpretação romano-católica para a interpretação da Reforma (Lutero e Calvino) já é bem mais sensível, pelo fato destes negarem a existência de um purgatório. Segundo estes, a doutrina da justificação está em contradição com a doutrina de que orações e indulgências possam ajudar os mortos. Também, a doutrina de que o sacrifício de Cristo é expiatório para todo o pecado está em contradição com o ensinamento de que se podem rezar missas em favor dos vivos e mortos. Lutero e Calvino interpretam o ensinamento católico-romano de se poder fazer missas, orações e indulgências em favor de alguma pessoa como um ato humano de querer interferir na ação de Deus. Para a sua interpretação a reconciliação com Deus é uma graça de Deus mesmo e não pode ser “ajudada” por atos de fé de outros seres humanos.
Em nome pois da doutrina da justificação e do sacrifício expiatório definitivo de Cristo, Lutero e Calvino negam a existência de uma escatologia intermediária, onde haveria ainda uma purificação e da qual os vivos podem participar intercedendo pelos mortos.
 


[1] Cf. F.-J. Nocke, Eschatologie. In: Handbuch der Dogmatik, Vol. 2, 390.
[2] F.-J. Nocke, Eschatologie. In: Handbuch der Dogmatik, Vol. 2, 395.
[3] “O objeto da escatologia para nós se situa inteiramente no futuro”, citado por J. Feiner / M. Loehrer (org.), Mysterium Salutis, Vol. V/3, Do tempo para a eternidade, 66.
[4] Há muitos textos especialmente de P. Casaldáliga e E. Cardenal que demonstram claramente o que digo. Apenas dois exemplos de P. Casaldáliga: “E tu, pequena Nica, / não és a menor de minhas cidades, / diz o Senhor; / porque de ti nasceu / minha filha, Liberdade, / meu filho, o Homen Novo. / Guerrilheira bordada de ternura, / flor de libertação, porta-estandarte, / sacramento-guerrilha da América Nova, / Nicarágua!” (Do poema “Quena de Vento e Povo”) e “Para que a Liberdade da Nova Nicarágua, / que Sandino sonhou na montanha, / chegue a ser inteira liberdade: / aquela Liberdade com a qual Cristo nos libertou. / Para que a Liberdade da Nova Nicarágua / fermente a inteira Libertação / da Nova América que sonhamos”. P. Casaldáliga, Na procura do Reino, São Paulo, Editora FDT, 1988, 136.
[5] Além de um certo realismo quanto à possibilidade do império romano ser igualado ao Reino de Deus, a obra de Agostinho “De civitate Dei” é escrita sob o impacto da queda de Roma através dos visigodos (410).
[6] De civitate Dei, XX 7.
[7] Veja para isso a 5ª tendência das teologias escatológicas (Escatologia na tensão entre o ‘já’ e o ‘ainda não’), na Parte I desta apostila.
[8] Cf. G. L. Müller, Katholische Dogmatik, 547s.
[9] Isto após o Concílio de Lyon I [1245] ter definido o nome do lugar da purificação após a morte como “Purgatorium” (DH 838) e o Concílio de Lyon II [1274] ter confirmado a doutrina do purgatório e ter definido como correto acreditar na possibilidade de através de intercessão dos vivos ajudar a purificação das almas no purgatório (DH 856).
[10] Citado por L. Boff, A graça libertadora no mundo, Petrópolis, Vozes, 1977, 155.
[11] L.Boff em seu livro “Ecologia: grito da terra, grito dos pobres” nos cap. VII-X inicia um reflexão neste sentido de ver não mais apenas a salvação em termos do ser humano, mas de um todo do universo. L. Boff, Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, São Paulo, Editora Ática, 1995, 217-307. Cf. também L. C. Susin, Assim na Terra como no Céu, Petrópolis, Vozes, 1995, 141s. e 189s.
[12] Cf. G. L. Müller, Katholische Dogmatik, 519-522.
[13] Os números citados entre colchetes [ ] referem-se ao ano do documento em questão.
[14] DH = H. Denzinger / P. Hünermann (org.), Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus et morum / Kompendium der Glaubensbekentnisse und kirchlichen Lehrentscheidungen, Freiburg, 371991. Obs.: Heinrich Denzinger [1819-1883] publicou pela primeira vez em 1854 um compêndio de documentos com decisões e declarações eclesiásticas sobre fé e moral. Desde então este compêndio tem conhecido novas edições revistas e ampliadas. Na 32ª edição foi feita uma grande revisão e ampliação, aos cuidados do teólogo Adolf Schönmetzer, que foi também o responsável até a 36ª edição. Daí esta obra passou a ser citada sob a abreviação DS (Denzinger/Schönmetzer). A partir da 37ª edição (1991), o compêndio está sob os cuidados de Peter Hünermann e por isso passou-se a utilizar a abreviação DH (Denzinger/Hünermann). A numeração dos decretos porém foi conservada a mesma. Por isso, em obras onde se lê DS, saiba-se que o número é o mesmo de DH.
[15] Quanto a diferenças de interpretação a respeito de temas escatológicos da Igreja Católica para as “novas” Igrejas, principalmente as igrejas pentecostais, quase nada se pode dizer, pois a maioria delas não possui um corpo dogmático.
[16] Os Concílios unidos de Lyon II (1274) e Florença (1439) discutiram especialmente estas controvérsias entre a interpretação católico-romana e ortodoxa.

O Ladrão não foi para o paraiso (Lutero)


Martinho Lutero: defensor do princípio da mortalidade da alma



Um defensor do princípio da mortalidade da alma foi Martinho Lutero:

"Differunt tamen somnus sive quies hujus vitae et futurae. Homon enim in hac vita defatigatus diurno labore, sub noctem intrat in cubiculum suum tanquam in pace, ut ibi dormiat, et ea nocte fruitur quiete, neque quicquam scit de ullo malo sive incendii, sive caedis. Anima autem non sic dormit, sed vigilat, et patitur visiones loquelas Angelorum et Dei. Ideo somnus in futura vita profundior est quam in hac vita et tamen anima coram Deo vivit. Hac similitudine, quam habeo a somno viventia." [1][2]
Como conseqüência da sua crença, Lutero rejeitou a interpretação de que o ladrão na cruz, foi diretamente para o paraíso, e qualquer interpretação literal da história do homem rico e Lázaro. Seu principal adversário neste assunto foi João Calvino, que chamou a crença de Lutero "sono da alma" em contraste com sua própria crença: "Psychopannychia" - "a vigília da alma".[3][4][5] Nos anos seguintes, o título grego do livro de Calvino, "Psychopannychia" (psyche "alma", pan-nychis "toda a noite") foi mal interpretado e aplicado à crença de Lutero.


  1. Martin Luther, Christopf Stephan Elsperger (Gottlieb) Luther - Exegetica opera Latina, Volumes 5-6 p120)
  2. J Fritschel Zeitschrift für die gesammte lutherische Theologie und Kirche "Denn dass Luther mit den Worten "anima non sic dormit, sed vigilat et patitur visiones, loquelas Angelorum et Dei" nicht dasjenige leugnen will, was er an allen andern Stellen seiner Schriften vortragt" p657
  3. Psychopannychia - qua refellitur quorundam imperitorum error qui animas post mortem usque ad ultimum iudicium dormire putant.(Strasbourg 1542)
  4. Greef s.152
  5. Psychopannychia - traitte par lequel est prouvé que les ames veillent et vivent après qu'elles sont sorties des corps contre l'erreur de quelques ignorans qui pensent qu'elles dorment jusques au dernier jugement. (Geneva, Conrad Badius, 1558)



Que se passa com o homem quando, ao expirar, corta definitivamente o contato com o mundo? Vai para o céu desfrutar imediatamente uma imoralidade já assegurada? Permanece um período de espera em algum lugar? É lançado no inferno de fogo eterno para sofrer agonias indescritíveis por toda a eternidade?

Há bispos, pastores, tradutores da Bíblia, teólogos e intelectuais e muitos outros através dos séculos que, buscando respostas no vasto repertório bíblico, defendem o estado de inconsciência na morte e a concessão da imortalidade como recompensa da fé, concedida exclusivamente por meio de Cristo. Estes estudiosos pertencem a denominações variadas, mas têm em comum a análise acurada dos textos bíblicos que revela o estado do homem na morte. Eles mostraram a disposição de aceitar essa revelação como suficiente neste importante assunto teológico. A seguir, as declarações sobre o tema, extraídas de diversas fontes.

Vejam em anexo um questionário com "10 Perguntas aos Que Crêem na Imortalidade da Alma" que os defensores do dualismo não conseguem responder de modo minimamente aceitável.


Nicolau, bispo grego (século XII da era cristã):

“Quando qualquer ser criado é eterno, não o é por si, nem em si, nem para si, mas pela bondade de Deus; pois tudo quanto é feito e criado tem um início e mantém sua existência somente mediante a bondade do Criador”. – Citado em Compendium of the History of Doctrines, vol. 2, págs. 4 e 5.

Os Valdenses (século XV) contestaram a doutrina do purgatório e intercessão dos santos ensinando em seu catecismo de instrução para os jovens que o homem é apenas “mortal”. - Moreland, The History of the Evangelical Churches of the Valleys of the Piedmont, 1658, pág. 75.

Martinho Lutero (1493-1546), reformador alemão e tradutor da Bíblia:

“Salomão conclui que os mortos estão dormindo, e nada sentem, em absoluto. Pois os mortos ali jazem, sem contar os dias nem os anos, mas quando forem despertados, terão a impressão de ter dormido apenas um minuto”. – An Exposition of Solomon’s Book, Called Ecclesiastes or the Preacher, 1573, fl. 151 v.

“Mas nós, cristãos . . . devemos educar-nos e acostumar-nos, com fé, a desprezar a morte e considerá-la um sono profundo, intenso e doce; a considerar o esquife nada mais que o seio do Senhor Jesus Cristo ou Paraíso, a sepultura coisa nenhuma senão um brando e confortável leito para repousar: Verdadeiramente, diante de Deus, é na realidade justamente isso, pois Ele testifica em João 11:11: Lázaro o nosso amigo dorme; Mateus 9:24: A menina não está morta, mas dorme. Assim, também, S. Paulo em I Coríntios 15, remove da vida todos os aspectos odiosos da morte em relação ao nosso corpo mortal, e não apresenta nada mais que aspectos encantadores e jubilosos da vida prometida”. - Works of Luther, vol. 6, págs. 287 e 288.

William Tyndale (1484-1536), tradutor da Bíblia para o inglês e mártir cristão:

“E vós, colocando-as [as almas que partiram] no céu, no inferno ou no purgatório, destruís os argumentos mediante os quais Cristo e Paulo provam a ressurreição. . . . E mais, se as almas estão no céu, dizei-me por que não estão em tão boas condições como os anjos? E então, que motivo existe para a ressurreição?” – An Answer to Sir Thomas More’s Dialogue, liv. 4, cap. 4, págs. 180 e 181.

John Milton (1608-1674), considerado o maior dos poetas sacros, secretário latino de Cromwell:

“Visto, pois, que o homem todo, como se diz, consiste uniformemente do corpo e alma (quaisquer que sejam os distintos campos atribuídos a essas divisões), mostrarei que, na morte, primeiro, o homem todo, e depois, cada parte componente sofre a privação da vida. . . . A sepultura é a comum custódia de todos, até o dia do juízo”. – Treatise of Christian Doctrine, vol. 1, cap. 13.

Edward White (1819-1887), congregacional, presidente da União Congregacionalista:

“Eu mantenho firmemente, depois de quarenta anos de estudo do assunto, que é a noção da aplicação de um tormento absolutamente eterno no corpo e na alma, que unicamente concede terreno às idéias de Ingersoll na América, ou Bradlaugh na Inglaterra [ambos ateus militantes, N.R.]. Creio, mais firmememente do que nunca, que é uma doutrina tão contrária a todos os ensinamentos da Bíblia como é contrária a todo instinto moral da humanidade”. – Introdução ao livro The Unspeakable Gift, de J. H. Pettingell, pág. 22.

Robert W. Dale (1829-1895), editor de The Congregacionalist, presidente do Primeiro Concílio Internacional de Igrejas Congregacionais em 1891:

“Não estou convencido de que elas [as crenças condicionalistas] tenham enfraquecido absolutamente a autoridade de meus ensinos de quaisquer das grandes doutrinas centrais da fé cristã. A doutrina da Trindade permanece intocada, e a doutrina da encarnação e a doutrina da expiação em seu sentido evangélico, e a doutrina da justificação pela fé, e a doutrina do juízo segundo as obras, e a doutrina da regeneração receberam, creio, dessas conclusões, uma ilustração nova e mais intensa”. – Edward White, His Life and Work, págs. 354, 355.

Hermann Olshausen (1796-1839), lente de Teologia em Konigsberg:

“A doutrina da imortalidade da alma e o nome são igualmente desconhecidos na Bíblia”. – Biblical Commentary on the New Testament, vol. 4, pg 381.

William Gladstone (1809-1898), primeiro-ministro britânico e teólogo:

“Outra consideração de maior importância é a de que a imortalidade da alma é doutrina inteiramente desconhecida às Escrituras Sagradas, e não assenta em bases mais elevadas do que as de uma opinião filosófica mantida engenhosamente, mas grave e formidavelmente contestada”. – Studies Subsidiary to the Works of Bishop Butler, ed. de 1896, pg 184.

J. Agar Beet (1840-1924), lente wesleiano:

“As páginas seguintes são . . . um protesto contra uma doutrina que, através de longos séculos, foi quase universalmente aceita como verdade divina ensinada na Bíblia, mas que me parece inteiramente alheia a ela, tanto na frase como na idéia, e derivada unicamente da filosofia grega. . . .

“Os que reivindicam para seu ensino a autoridade de Deus, devem provar que ela procede dEle. Essa prova, nesse caso, nunca vi”. – The Immortality of Soul, 5a. edição, 1902, Prefácio.

Franz Deliztsch (1813-1890), hebraísta, lente em Rostock:

“Não existe coisa nenhuma em toda a Bíblia, que implique uma imortalidade nativa”. (Comentário Sobre Gên. 3:22).

“Do ponto da Bíblia a alma pode ser morta, ela é mortal”. (Comentário sobre Núm. 23:10). – A New Commentary on Genesis

George Dana Boardman (1828-1903), pastor batista, fundador da Fundação Boardman de Ética Cristã da Univ. de Pensilvânia:

“Nem uma única passagem da Santa Escritura, do Gênesis ao Apocalipse, ensina, quanto eu esteja apercebido, a doutrina da imortalidade natural do homem. Por outro lado, a Escritura Sagrada afirma positivamente que só Deus é que tem a imortalidade (1 Tim. 6:16), isto é: Deus unicamente, é imortal, natural e inerentemente, em Sua própria existência”. – Studies in the Creative Week, págs. 215 e 216.

F. R. Weymouth (1822-1902), tradutor do Novo Testamento em linguagem moderna:

“Minha mente não concebe mais grosseira deturpação da linguagem do que quando cinco ou seis das palavras mais fortes que a língua grega possui, significando destruir ou destruição são interpretadas como significando manter uma existência eterna mas ‘miserável’. Traduzir preto em vez de branco não é nada em comparação com isto”. – Citado por Edward White em Life in Christ (1878), pág. 365.

“O uso no Novo Testamento de palavras como ‘morte’, ‘destruição’, ‘fogo’, ‘perecer’, para descrever a retribuição futura aponta para a probabilidade de uma terrível angústia seguida da extinção do ser, como a condenação que espera aos que, pela persistente rejeição do Salvador, se demonstram completamente, e portanto irremediavelmente maus”. (Comentário sobre Hebreus 9:28) – New Testament in Modern Speech.

William Temple (1881-1944), arcebispo de Cantuária, Primaz da Grã-Bretanha:

“A doutrina da vida futura implica nosso primeiro desemaranhar do autêntico ensino das Escrituras clássicas, dos acréscimos que muito depressa começaram a obscurecê-las” – Nature, Man and God, pág. 460.

Martin J. Heinecken, lente de Teologia Sistemática do Seminário Teológico Luterano de Filadélfia, EUA.:

“No registro bíblico da criação é-nos dito que Deus formou o homem do pó da terra, e que Ele então lhe soprou nas narinas e o homem se tornou alma vivente. Isto é geralmente interpretado como se Deus fizesse uma alma, que é a pessoa real, e que Ele então tivesse dado a essa alma uma habitação temporária num corpo, feito do pó da terra. Mas este é um dualismo falso. . . . O homem deve ser considerado uma unidade”. – Basic Christian Teachings, págs. 36 e 37.

Emil Brunner (1889-1966), professor de Teologia Sistemática e Prática da Universidade de Zurique:

“A opinião de que nós homens somos imortais porque nossa alma é de uma essência indestrutível, porque divina, essa opinião é, de uma vez para sempre, irreconciliável com o ponto de vista bíblico de Deus e do homem. . . . A crença filosófica na imortalidade é como um eco, reproduzindo e falsificando a superior Palavra desse Criador divino. É falsa porque não toma em conta a real perda desse destino original, devido ao pecado”. – Eternal Hope, págs. 105, 106 e 107.

James Moffat (1870-1944), famoso tradutor da Bíblia e missionário:

“É a alma capaz de alcançar um valor imortal, ou é ela essencialmente imortal? No esquema da fé cristã, pode ser aniquilada? É a personalidade uma posse imorredoura ou é alcançada mediante obediência à vontade de Deus somente? As implicações do ponto de vista cristão da fé não são incompatíveis com a última ponderação e é, creio, uma questão interessante observar se o ponto de vista comumente chamado imortalidade condicional há de obter corroboração no futuro. É contrário ao platonismo, mas não há muita evidência contra ela na mensagem do cristianismo, como alguns parecem ter por assegurado”. – Literary Digest, 5 de abril de 1930, pg 22.

James S. Stewart (1896- ), conhecido professor de literatura e Novo Testamento na Universidade de Edimburgo:

“A filosofia ensinou aos gregos a crerem numa imortalidade puramente espiritual, sem um corpo de qualquer tipo. Homens sábios consideravam o corpo como uma tumba em que o espírito vivente permanecia sepultado. . . . A morte era o escape do aprisionado espírito. Mas Paulo não podia conceber um campo para espíritos desincorporados. Para ele, a mera idéia disso teria sido repugnante”. – A Man in Christ, p. 267.

Oscar Cullman (1902- ), professor de Novo Testamento História Eclesiástica na Universidade de Basel e na Sorbonne:

“A doutrina grega da imortalidade da alma e a esperança cristã na ressurreição diferem tão radicalmente porque o pensamento grego tem uma interpretação totalmente diferente da criação. A interpretação judaica e cristã da criação exclui todo o dualismo grego de corpo e alma”. – Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?, págs. 29 e 30.

Y. B. Trémel, sacerdote católico dominicano:

“O Novo Testamento obviamente não concebe a vida do homem após a morte filosoficamente ou em termos da natural imortalidade da alma. Os escritores sagrados não pensam que a vida advém como resultado de processos naturais. Pelo contrário, para eles é sempre o resultado da salvação e redenção; depende da vontade de Deus e da vitória de Cristo”. – Lumière et Vie (1955), págs. 33 a 37.

Otoniel Mota, pastor presbiteriano brasileiro:

“A doutrina da imperecibilidade da alma não é bíblica, mas pagã. Nasceu na Grécia e propagou-se na Igreja, através de Platão, do século V em diante, graças à influência de Agostinho. A doutrina não se mantém diante das concepções psicológicas modernas e da teoria mais racional acerca da propagação do ser humano, corpo e alma”. – Meu Credo Escatológico, ed. 1938, pág. 3.

Inúmeros outros importantes pensadores cristãos poderiam ser citados (como os contemporâneos John Stott, Clark Pinnock e Eldon Ladd), mas estes são suficientemente representativos da grande hoste de eruditos e sinceros cristãos através dos tempos, que têm rejeitado a concepção popular de imortalidade da alma, acentuando que a imortalidade só pode ser obtida mediante Cristo.

Em anexo, um questionário com "10 Perguntas aos Que Crêem na Imortalidade da Alma". Seria tão bom se tivéssemos respostas (ou tentativas de respostas) ao mesmo aqui discutidas.

sexta-feira, abril 27

Da Pacoa judaica à Eucaristia Cristã

ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
DA PÁSCOA JUDAICA À EUCARISTIA CRISTÃ
ANTONINO DO CARMO FILHO
MESTRADO EM TEOLOGIA
Área de Concentração: Liturgia
São Leopoldo, dezembro de 2003.


DA PÁSCOA JUDAICA À EUCARISTIA CRISTÃ
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
por
Antonino do Carmo Filho
em cumprimento parcial das exigências
do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia
para obtenção do grau de
Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
São Leopoldo, RS, Brasil
Dezembro de 2003
SINOPSE
Uma abordagem da Páscoa judaica da sua origem até a época de
Jesus Cristo quando ocorre a descontinuidade e nasce a
Eucaristia. Na primeira parte, em um contexto histórico é
abordada alguma das refeições judaica. Para melhor
compreensão, são feitos comentários que vão desde os
referenciais do alimento no Egito até aos ideais das refeições
grega e romana. No que se refere às refeições judaicas, é
explicada a refeição dos essênios, o Haburah o Quiddus e o Ros
Hashana. Na segunda parte comentamos a Páscoa no tempo,
segundo os registros do Êxodo, de Deuteronômio e as reformas
do rei Josias. Também assunto de comentário nessa parte, é a
comparação da Páscoa com a festa dos Pães Ázimos. Na última
parte, é abordada a Páscoa no tempo de Jesus, de acordo com o
relato dos sinóticos, do evangelista João e de São Paulo, e o
surgimento da Santa Ceia no Novo Testamento.
4
a)
ABSTRACT
Na approach of the Jewish Passover since its beginning
to the time of Jesus Christ when it stops and gives
birth to the eucharistic. The fist part approaches, in
a historical context, since the references of food in
Egyto to the ideals of greek and roman meals. As far as
the Jewish meals are concerned, it approaches the meals
of the essenic, the Haburah, the Quiddus and the Rosh
Hashana.ln the secon part we approach the Passover in
time, according to the records of Exodus, Deuteronomy
and the reformations of the King Josiah The sencon part
also approaches the comparison between the Paasover and
the Fest of Unleavened Bread. Thelast part approaches
the Passover the Passover in Jesus time, accorcding to
the account of the Gospels an Saint Paul, and the
beginning of the Lord's supper in the New Testament.
5
SUMÁRIO
Introdução.................................................. 1
Capítulo 1 – Refeições judaicas 5
1.1– Conceitos grego e romano sobre as refeições e
referenciais no Egito Antigo......................... 5
1.2– O sentido das refeições judaicas..................... 6
1.3– Exemplos de refeições judaicas....................... 7
1.3.1- Refeições Essênias............................... 8
1.3.2- Haburah.......................................... 10
1.3.3- Quiddus.......................................... 12
1.3.4- Refeição do Rosh Hashana......................... 15
Capítulo 2 – A Páscoa Judaica no tempo 18
2.1- A Páscoa dos nômades............................... 18
2.2- A Páscoa no Êxodo.................................. 20
2.3- A Páscoa em Deuteronômio........................... 23
2.4- Comparação da Páscoa do Êxodo com a de
Deuteronômio.......................................
25
2.5- A Festa dos Pães Ázimos e sua relação com a Páscoa 26
2.6- A celebração da Páscoa na época do Rei Josias...... 29
Capítulo 3 – A Páscoa judaica e sua co-relação com a
Eucaristia no Novo Testamento
34
3.1- O relato dos sinóticos............................. 36
3.2- O relato de João................................... 39
3.3- O relato de Paulo.................................. 41
Conclusão................................................... 43
Bibliografia................................................ 46
6
INTRODUÇÃO
Com que povo nasce a Páscoa? Com o povo de Israel. No
entanto não nasce apenas uma festa de Páscoa com os
israelitas, mas também a pergunta sobre o seu significado:
“Que significa este rito”? (Êx 12.26). Repetida no início da
Ceia Pascal, essa pergunta acompanhará a história dessa
festa, por séculos inteiros, possibilitando uma compreensão
mais profunda, pois equivale à outra pergunta encontrada nas
fontes cristãs: ”que recordamos nesta noite”?1
Outras indagações surgem quando abordamos a Páscoa...
Houve influência de outros povos no surgimento da Páscoa
judaica? Como ela é descrita nos livros de Êxodo e
Deuteronômio? A festa dos Pães Ázimos é também celebrada
pelos hebreus. Existe co-relação dessa festa com a Páscoa?
Que característica adquiriu a celebração da Páscoa com as
reformas do rei Josias?
A conclusão do livro de Segundo Reis, nos mostra de
forma clara o significado das refeições israelitas.
Trata-se da narrativa da prisão de Joaquim, último rei
legitimo de Judá. Aos dezoito anos subiu ao trono, onde ficou
três meses, quando foi aprisionado por Nabucodonozor em 598
1 . AGOSTINHO apud, Raniero CANTALAMESSA, O Mistério Pascal, p. 5.
7
a.C. Levado para a Babilônia ficou quarenta anos escravizado,
até que Elvimeradaque subiu ao trono e o tirou do cárcere.
Mandou trocar-lhe as vestes de prisioneiro e “ele passou a
comer sempre à mesa do rei durante os dias de sua vida” (2 Rs
25.27-29; Jr 52.31-33).
A proclamação do fato diante do mundo é realizada
admitindo o prisioneiro à própria mesa.
Para os hebreus nada havia que levava maior união, entre
os homens e entre os homens e Deus, do que a partilha do
alimento. Alimentarem-se juntos era uma forma de estabelecer
laços de união entre os judeus, e o alimento compartilhado
era expressão de dádivas contínuas de Deus sobre os comensais
(Dt 8.1; Sl 78.18-29; Mt 4.4).
Os hebreus tinham no pão o elemento básico da
alimentação. De igual forma o plantio da uva sempre esteve
presente na história do povo de Israel, desde Noé que era
lavrador e que plantou uma vinha de acordo com o registro de
(Gn 9:20).
Para G. Dalman “desde os primórdios a Palestina é
reconhecida por seus excelentes vinhedos" e tornou-se bebida
popular do povo, alimento indispensável para se fazer uma
grande viagem (Jz 19.19) ou como provisão em caso de guerras
“(1 Cr 11:11).2
Na vida dos judeus, o pão é o resultado de um trabalho
árduo, mas recebido como dádiva de Javé para seu povo.
O pão e o vinho que se encontram presentes em todas as
celebrações dos judeus, representava uma alegria comunitária
(Gn 14.18; Ne 5.15; e Êx 2.11 ss.).
2 . G. DALMAM, Arbeit und in Palastina.
8
Dividir o pão regularmente com alguém era manifestação
de confiança estima e apreço (Sl 41.9).
Juntamente com o comer, o beber é uma necessidade para
manter a vida física primordial (Lc 24.41). No decorrer da
História, os homens têm procurado manter comunhão com
divindade mediante refeições e comidas sacramentais.
Inácio de Antioquia falou do “partir de um só pão, que é
o remédio da imortalidade e o antídoto para que não morramos,
mas sim, vivamos para sempre em Jesus”.3
Todo alimento é considerado como doação de Deus de acordo
com o Antigo Testamento, seja ele resultado do trabalho do
homem, ou quando cresce espontaneamente (Dt 14.4). Todos são
dádivas e devem ser recebidos com alegria e partilhados como
alvo de gratidão.
Esta verdade coloca o homem numa posição de
comprometimento para com Deus e de sujeição à sua soberana
vontade (Gn 3.2-3).
A satisfação da necessidade humana por nutrimento acha
em Deus a sua origem (Sl 22.26). Não ter o que comer, ou ser
incapaz de comer é encarado como sinal de ira e punição
divina na linguagem bíblica (Sl 102.4, 9-10), mas os justos
não precisam se preocupar com o alimento, (Sl 127.2; Is 3.10
e Mt 6.25), pois o Deus de Israel é o Deus que provê para os
seus.
Um detalhe na refeição dos hebreus é que sempre havia a
expressão de gratidão no final (Dt 8.10). Seja qual fosse o
tipo de alimentação, os judeus valorizavam o mantimento como
fruto da clemência de Javé para com o povo.
Na Festa das Colheitas era hábito israelita a
consagração das primícias a Deus no Tabernáculo, que
3 . J. EICCHLER, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 457
9
simbolizava doação e entrega de vida, dons e talentos.
Oferecer a Javé os frutos das primeiras colheitas,
simbolizava a intenção de dar o melhor que se possuía, e
apresentar-se a Ele com sinceridade de coração, com amor e
gratidão pelas dádivas recebidas.
Não é em vão que a alimentação tomou uma dimensão tão
grande no Oriente Antigo. Naquela época o povo sofria as
conseqüências de das secas, que se prolongavam por longos
períodos, trazendo graves prejuízos. Ter o que comer e beber
representava uma dádiva de Deus e, o compartilhamento possuía
uma dimensão humanitária oferecendo oportunidade de falar dos
feitos de Deus através da refeição comum.
Uma lição que aprendemos com Israel é, que o comer não é
uma atividade que o homem pratica isolado, mas deve ser
expressão de relacionamento desse homem com Deus, através da
partilha com os que têm fome (Is 58:7; I Co 10.31).
10
CAPÍTULO I - REFEIÇÕES JUDAICAS
1.1. Conceitos grego e romano sobre as refeições e
referenciais no Egito Antigo
“Nas religiões antigas, o comer e o beber se realiza”
nas refeições formais que podiam ser particulares,
vinculadas a atos sagrados”.4
O poeta grego, Homero, descreve o Deipnon como uma
refeição Sacra, que fazia parte da religião helênica. O
participante acreditava que estava sentado (Trapeza Tou
Theou) à mesa de Deus ou na (Trapeza Daimonion) mesa dos
demônios, e que através da refeição, entrava em comunhão com
a divindade, da qual passava a ser companheiro (Koinõnons)”.
Flávio Josefo narra um convite para o Deipnon de Anúbis,
no qual se “deduz um aspecto de comunhão da união daqueles
que comem juntamente com a divindade”, sendo dele parceiros
Koinõnos. Os papiros de Oxirinco do século II d.C., contêm um
convite para comerem “Dispnesai” “à mesa do Senhor”.5
Flávio Josefo conta ainda acerca de um convite para o
“Deipnon” de Anúbis no templo de Ísis em Roma. “O pensamento
4 . J. BEHN, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.
35.
5 - P.O.OXY 14, Kyrios Christos 1970 idem 143.
11
que se subtrai neste caso, é também de comunhão, da união
daqueles que comem juntamente com a divindade”6
Alimentarem-se juntos era uma forma de estabelecer laços
de união. O alimento expressava a dádiva contínua de Deus
para com as pessoas, mantendo os laços de amizade entre os
judeus (Dt 8.1-4; Sl 78.18-29; Mt 4.4).
No Egito dos faraós, surgiu o cultivo do trigo,
utilizando as enchentes e vazantes do Rio Nilo, que
fertilizava suas margens, na qual ficava um tipo de limo.
A presença do trigo era indispensável na alimentação do
povo, tanto dos pobres aos banquetes dos faraós. As cheias
periódicas do Nilo favoreciam sua produção, daí a
popularidade desse alimento. Podemos entender com maior
sentido a narrativa dos Gêneses, quando menciona fome por
toda a terra, enquanto que no Egito havia abundância de
trigo, fato que levou à emigração da família de Jacó para
esta região quando José se tornou governador.
Do Egito, o costume de ter o pão como alimento básico,
se estendeu do Mediterrâneo ao Oriente Médio. Assírios,
babilônios e gregos foram alguns povos que como os egípcios,
passaram a regalar seus deuses com os produtos derivados do
trigo.
1.2- O sentido das refeições judaicas
As festas no Antigo Testamento se vinculavam com
refeições religiosas onde comiam diante do Senhor. (Dt 12.7)
6 - P.O.OXY idem página 198.
12
“Ali na presença do Senhor, nosso Deus, vocês e suas famílias
comerão...”.
A comunhão da mesa no pensamento judaico liga o
homem a Deus. (Ex 18.12 24.11.) “Arão e todos os líderes
comerão a refeição Sagrada na presença do Senhor”.
Uma refeição freqüentemente desempenhava no pensamento
judeu um papel de concluir-se uma aliança secular, onde Javé
estava presente como hóspede (Gn 26.30; Js 9.14,15).
Foi com uma refeição que Jacó e Labão selaram seu pacto
de paz (Gn 31.46-54) e Moisés, com seu sogro, e os anciãos
firmaram uma associação na mesma situação (Ex 18.12).
O livro de Deuteronômio nos relata que a aliança entre
Javé e Israel no Sinai foi celebrada com uma refeição
religiosa entre os anciãos (Gn 26.28-30).
Uma refeição partilhada tinha no pensamento hebreu o
sentido de fazer com que os participantes se sentissem
consangüíneos uns dos outros, como também de Javé. Convidar
alguém para sua mesa no conceito judaico, era sinal de
respeito, confiança, paz (Gn 43.25 ss), fraternidade (Gn
31.54), perdão (2 Sm 9.7; 2 Rs 25.27-30) e proteção (Jz 19.15
ss). Quebrar o sentido da comunhão na mesa era o mais
desprezível dos crimes (Jr 41.1,2, Sl 41.9).
Para o Senhor Jesus Cristo as refeições partilhadas eram
altamente admiráveis. Ele chegou a dizer “Se alguém ouvir a
minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e nós
jantaremos juntos” (Ap.3.20).
1.3- Exemplos de refeições judaicas
Em todas, como veremos a seguir, encontramos elementos
comuns, como a presença do vinho e do pão, uma referência
13
bíblica que sugere respostas diferentes em várias tradições e
civilizações.
O pão é símbolo do alimento, uma necessidade universal,
e o vinho é conhecido na maioria das civilizações da
Antiguidade até hoje.
Outro elemento presente em todas as refeições dos judeus
era a oração antes e depois. Com a oração a refeição comum
passava a ter uma conotação religiosa. Era a prece que dava
identidade a uma reunião puramente social, tornando-a numa
reunião na presença de Deus.
1.3.1 – Refeições essênias
São relatadas nos manuscritos de Curã. Sua prática era
de duas vezes ao dia (pela manhã e pela tarde) nos mosteiros.
Com o passar dos tempos, a refeição dos essênios alcançou as
comunidades cristãs, e casas particulares, sendo celebrada
somente no período da tarde com a presença também de
mulheres.7
Quem eram os essênios?
Como se comportavam nas refeições?
Que elementos eram usados?
Os historiadores Filo, José e Plínio foram os primeiros
a falarem sobre a seita dos essênios, como nos mostram
documentos encontrados em 1947 nas proximidades do Mar Morto,
conhecidos como “Rolos do Mar Morto”, pertencentes a esse
grupo. “Era uma seita judaica, bastante ligada ao
neopitagorismo constituído por várias comunidades submissas a
7 - J.GUTTMANN, Dil Phil des Judentus, Dicionário de Filosofia, N. Abbagnano p. 562 ..
14
uma disciplina austera contendo regras ascéticas.
Interpretavam alegoricamente o Velho Testamento com uma
tradição que remontava a Moisés. Acreditavam na preexistência
da alma, vida depois da morte e predições do futuro
(profecias). Possuíam várias cerimônias de purificações e,
informações complementares dão conta que Cristo dos doze aos
trinta anos tenha estado com esse grupo”.8
Segundo registros da Didaquê os essênios seguiam um
cerimonial bem disciplinado com a seguinte seqüência:
a) O chefe da família ou sacerdote fazia com o povo ou
família reunida, uma oração abençoando o pão e o vinho
colocados sobre a mesa;
b) O celebrante comia um pedaço de pão e tomava um pouco
de vinho bendizendo os elementos;
c) Recitava-se uma oração, depois de ingerir os alimentos,
chamados de “Pão da Vida” e “Copo da Benção”;
d) O desenvolvimento litúrgico continuava com a unção
através do uso do “óleo da incorruptibilidade” no qual
todos os presentes eram ungidos;
e) Após a unção todos tinham acesso aos elementos;
f) Uma oração finalizava a cerimônia.9
Podemos observar alguns procedimentos importantes nesta
celebração:
b) O aspecto comunitário. Seja na família ou em reuniões
públicas, a celebração tinha um aspecto de
compartilhamento;
c) A presença do pão como símbolo do alimento (O Pão da
Vida);
8 - J.GUTTMANN, idem p.562.
9 J. BEHN, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 63.
15
d) A presença do vinho (O Copo da Benção);
e) A benção dos elementos;
f) A unção com óleo de todos para se tornarem aptos para
participar do ato;
g) A oração antes e depois da refeição.
Para os essênios havia também outro tipo de refeição, o
qual chamavam de “Banquete Messiânico”, do qual só
participavam homens, dez no mínimo, obedecendo a mesma
ritualística mencionada anteriormente. No entanto, este
banquete tinha outro sentido: possuía um caráter escatológico
no qual se aguardava a vinda do Messias. Joachim Jeremias
cita ainda no mesmo texto o Hillel (Sl 118.25-29), como o
hino que era cantado nesta celebração Messiânica.10
1.3.2- HABURAH
Era uma refeição comunitária judaica, carregada de uma
atmosfera religiosa. Seu objetivo era declarar Deus como
Senhor e podia ser celebrada em qualquer ocasião, por um
grupo de amigos, com a finalidade de serem estreitados os
laços de fraternidade e de amizade. Era freqüente, pois o
ambiente em que viviam os judeus em varias épocas expatriadas
e oprimidas , dava oportunidade à prática. Possuía um caráter
de união contra a adversidade e uma maneira de fortaleceremse
mutuamente.
Dix deriva o termo Haburah de “heber (amigo), para dar a
idéia mais profunda de relacionamento e companheirismo”.11
Outra finalidade dessa refeição, era de comemorar a paz.
Em locais desiguais e adversos aos costumes e práticas
10 - Joachin JEREMIAS, A Última Cena, p. 32.
11 - G. DIX The Shape of Liturgy, p. 50 Apud: Dr. Romeo Martini, Tese de Doutoramento, p. 50.
16
judaicas, eram comuns desentendimentos entre tribos. O Haburá
era uma forma de comunhão, na qual reatavam-se as amizades e
fortaleciam-se.
Tanto podia ser um banquete, como uma festa
convencional. Não importava o que se tinha para comer,
variedade ou quantidade. O que realmente tinha sentido era
seu caráter comunitário e de compartilhamento. Contudo, as
presenças do pão e do vinho eram imprescindíveis.
Podia o Haburá ser celebrado por ocasião de bodas,
casamentos, alianças, circuncisão e outros momentos
especiais.
Dix afirma que a Eucaristia instituída por Jesus foi um
Haburah e esclarece que a oração de ação de graças, proferida
por Cristo na Eucaristia, possuía as mesmas conotações e
expressões da prece de ação de graças usada no cerimonial do
Haburah.12
Quanto a sua prática, a celebração do Haburah podia ser
semanal ou em casos específicos, com o intuito de celebrar e
proclamar Javé como Senhor supremo do povo hebreu, mesmo que
durante as refeições se tratassem de assuntos diversos, como
negócios ou amizade.
Vejamos como se desenvolvia a liturgia do Haburah e suas
peculiaridades segundo Dix.
a) Lavavam as mãos, hábito típico dos judeus
(Marcos 7:3) “... seguem os ensinamentos que
12 - G. DIX The Shape of Liturgy, p. 50 Apud: Dr. Romeo Martini, Tese de Doutoramento, p. 50.
17
receberam dos antigos. Só comem depois de
lavarem as mãos, com bastante cuidado”;
b) Consumiam algum tipo de alimento acompanhado do
primeiro cálice; um detalhe neste item, é que
todos os participantes pronunciavam uma benção.
Era uma forma do grupo unido entrar em sintonia
com o sagrado, e caracterizava sua abrangência
comunitária;
c) Novamente lavavam as mãos “cuidadosamente”;
d) É o momento da refeição comunitária. O dono da
casa, o anfitrião, proferia a benção do pão e o
distribuía pedaços para os participantes
assentados em redor da mesa;
e) Havia a benção do segundo cálice e todos
prosseguiam na refeição;
f) No final todos tomavam o terceiro cálice chamado
de Ação de Graças, cuja benção era feita pelo
anfitrião, representando o grupo reunido.13
O Haburah também era oportunidade para o povo praticar a
hospitalidade, da qual mais tarde, falou o apóstolo São
Paulo, com muita propriedade (Rm 16:23).
Segundo Dix “todo ofertório que marcou a celebração
eucarística desde suas origens, esteve relacionado com a
partilha”14 cuja referencial maior encontramos na Igreja
primitiva, quando “tinham tudo em comum, repartiam o pão de
casa em casa com alegria e singeleza de coração”.
1.3.3- QUIDDUS
13 - G. DIX The Shape of Liturgy, p. 51 Apud: Dr. Romeo Martini, Tese de Doutoramento, p. 51.
14 - G. DIX idem p. 52.
18
A palavra Quiddus significa benção, que em princípio era
pronunciada no início do sábado, ou em dias de festas. Quanto
a sua forma, assim descreve Eleazar Sadoq, nascido em
Jerusalém entre 35 e 40 d.C.
“Durante a cerimônia familiar, o chefe da família
segurando um cálice com vinho fazia a oração da santificação
dizendo: meu Pai costumava dizer sobre a taça: Bendito seja,
que é santificado o dia de sábado”.15 Esta benção separa a
ocasião sacra da ocasião profana. Era uma oração de ação de
graças, que abria de forma oficial a refeição. Todos bebiam
do mesmo cálice, o que dava maior sentido de partilha à
comunhão.
A festa começava, quando as primeiras estrelas começavam
a brilhar no céu e tinha o seguinte desenvolvimento
litúrgico:
a) O chefe da família proferia a benção sobre o copo
de vinho, bebendo dele em seguida;
b) O chefe da família fazia um relato dos atos de
Deus e a relação com seu povo;
c) O vinho era distribuído a todos;
d) O chefe da família falava outra vez mais sobre os
feitos de Deus e distribuía o pão;
e) Seguia-se uma oração de benção e despedida
cantando o Salmo 114.16
Neste cerimonial temos algumas características que
podemos destacar:
a) Permitia manter viva na memória da comunidade
familiar os grandes feitos de Javé e era, acima de tudo, ação
15 - G. DIX idem p. 51.
16 - N. AUSSUBEL, Conhecimento Judaico, p. 424.
19
de graças pelos frutos da terra: O vinho que surge da uva e o
pão que surge do trigo.
b) Era um simbolismo que representava
reconhecimento pelas dádivas que Javé concedia ao povo
através da atividade agrária.
A prática do Quiddus se tornou de tamanha relevância,
que saiu da esfera familiar e passou a ter um sentido mais
geral, sendo realizado também nas sinagogas. Quando os judeus
se encontravam na Babilônia o Quiddus era celebrado durante
as refeições, quando os viajantes também eram saciados. Isto
nos mostra algumas verdades das quais destacamos:
a) Era uma refeição que possuía caráter de
fraternidade familiar, e que acentuava os feitos
de Deus na memória do povo (ou da família);
b) Isto justifica a prática da ação de graças na vida
do povo judeu e o espírito comunitário em que
viviam;
c) A presença de viajantes na cerimônia mostra o
sentimento de fraternidade e hospitalidade que
havia na celebração.
O Quiddus está sempre ligado à santidade de vida dos
judeus: “Dediquem-se a mim, o Deus de vocês, e sejam
completamente fiéis a mim, pois eu sou Santo” (Lv 11.44).
“Por isso na celebração do Quiddus o oficiante elevava o
cálice pronunciando a oração de santificação (uma berah de
ação de graças) abrindo oficialmente a refeição”. 17
17 - N. AUSSUBEL, Conhecimento Judaico, p. 424.
20
Era uma forma de agradecer pelo dia, pela semana, pela
natureza criada por Javé e pela vida de seus antepassados.
Era uma forma de gratidão comunitária, na qual se lembrava os
feitos de Deus na relação com o seu povo e O proclamava como
Senhor incondicional e soberano, sempre presente na vida dos
hebreus. A gratidão era uma maneira de responder a Deus por
seu cuidado e proteção.
Também no Quiddus temos uma particularidade. É uma
refeição que começa no círculo familiar, com o propósito de
proclamar os feitos de Deus, mas que se estende ao culto
sinagogal. Nesse procedimento notamos que o culto familiar
está presente na prática devocional dos judeu e daí parte
para ser coletivo com a celebração nas sinagogas. “Era uma
prática da ação de graças no âmbito familiar, e a
glorificação a Deus pelo pão diário”.18
Nessas refeições comunitárias, se reforçava a idéia da
partilha, da ação de graças e da solidariedade, como
elementos essenciais no dia-a-dia dos hebreus.
1.3.4- REFEIÇÃO DO ROSH HASHANA
O Rosh Hashana é o ano novo judaico que no calendário
Gregoriano ocorre no mês de setembro. Para os judeus, é uma
preparação para os Dias de Temor, Respeito, Reverência e de
Preces, período especial dedicado a Javé, pedindo perdão.
É também uma refeição feita em comunidade.
O ritual começa com o soar do Shofar, que é uma trombeta
de chifre de boi do mesmo tipo que Josué determinou que fosse
tocado ao redor dos muros de Jericó acabando por derrubá-los.
O soar do Shofar, transforma todos os participantes em
penitentes e recordam que se aproxima o Dia do Julgamento.
18 - H. LIETZMAM, Messe und errenmal,, p.203
21
No mês de Elul, equivalente ao mês de junho do
calendário gregoriano, os judeus devem realizar esforço
especial, para melhorar suas relações com parentes e amigos,
no cumprimento da referência de Cânticos dos Cânticos: “Eu
sou de minha amada e minha amada é minha”.
A tradição diz que o primeiro dia de Elul é o mesmo dia
em que Moisés voltou a subir o Monte Sinai com novas tábuas,
para regravar os Mandamentos, depois de obter o perdão de
Deus para os judeus que haviam se dedicado a adorar o bezerro
de ouro. Quarenta dias depois ele desceu com as novas tábuas
contendo as Leis de Deus, e as entregou aos hebreus.
Esses quarenta dias vãos do primeiro dia de Elul ao Dia
da Expiação, o “Yom Kippur”, Dia do Perdão.
No Rosh Hashana, se veste a melhor roupa e a comida é
preparada na véspera, sendo proibido cozinhar no dia.
Come-se maçã banhada em mel para que o ano seja bom e
doce e se acrescenta a prece: “Seja Tua vontade, nosso Deus,
que tenhamos um bom ano”19.
Come-se peixe (sem couro) com a seguinte oração: “Seja
Tua vontade, Senhor, que sejamos tão férteis quanto os
peixes”. E se alguém come a cabeça do peixe diz: “Que por Tua
vontade, eu seja a cabeça”.
O Rosh Hashana ocorre no outono, época em que os judeus
colhem, e tem o sentido de dar vida ao ser humano. Mas o dia
foi escolhido porque o Talmude, a coletânea da Lei oral que
os judeus redigiram em seu exílio na Babilônia, diz que é o
dia em que o mundo será julgado.
É um dia de festa e a abundância de alimento representa
a fartura de dádivas que Javé derrama sobre seu povo
continuamente.
19 - J. BEHN, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. p. 266.
22
O cerimonial começa quando surge a primeira estrela no
céu e é quando as famílias se reúnem se não podem ir à
sinagoga. O ato de comerem em comunidade neste dia para os
judeus é uma prática religiosa de grande significado, por
constituir em oportunidade de externar gratidão pelo ano
findo e expectativa de um ano melhor ainda.
Existe uma ritualística que se desenvolve da seguinte
forma:
a) – Houve-se o tocar do Shofar, enquanto é lido o texto
de Josué 6. 2-20 que fala do toque da corneta e da
derrubada dos muros de Jericó;
b) – O rabino ou chefe da família abençoa o vinho,
enquanto se acende à vela do Amenorá (castiçal de sete
pontas). Todos bebem o vinho;
c) – São dados aos presentes pedaços de maçã (que
representa o amor) molhados em mel para que todos
tenham um ano doce e repleto de harmonia;
d) – É partido o pão que tem que ser redondo, (para que o
ano tenha continuidade e permita nova celebração no
ano seguinte). Também o pão tem que ter o formato
ascendente, (para que Deus ouça os pedido). Todos
comem do pão;
e) – Comem-se fruta cristalizada (que representam as
jóias e riquezas de bênçãos de Javé sobre o seu povo);
f) – Comem-se cenoura cozida cortada em rodelas que
representam moedas de ouro e prosperidade para os
filhos de Deus;
g) – Comem-se peixe que simboliza a fertilidade, sendo
opcional. Podem também comer o gefilte (bolinhos de
peixe) servido com raiz forte, simbolizando a
23
fertilidade e a união dos judeus sob a proteção de
Deus;
h) - Comem-se compota de frutas com bastante mamão,
enquanto o oficiante diz que se devem fazer tantas
boas ações quanto as sementes existentes nesta fruta.20
A partir daí, cantam o Hillel, o ministrante impetra a
benção e a refeição continua sem seguir um procedimento
rigoroso.
Que particularidades podem notar nesse cerimonial?
O que tem ele em comum com as demais refeições dos
judeus?
A presença do pão e do vinho e oportunidade de recordar
as dádivas de Deus através da atividade agrícola. O pão que
vem do trigo e o vinho que vem da uva.
Em todas as refeições dos judeus encontramos alguns
elementos presentes dos quais mencionamos:
a) – Oração de ação de Graças;
b) – O pão e o vinho;
c) – O aspecto comunitário.
20 - M. KLAUSNER, Judeus de São Paulo,Comemoram o Rosh Hashana, Folha de São Paulo 22 de set. 1983
caderno B. p.5.
24
CAPÍTULO - 2. A PÁSCOA JUDAICA NO TEMPO
2.1- A PÁSCOA DOS NÔMADES
Os relatos contidos no Pentateuco nos informam que os
patriarcas, exceto José, foram chefes de clãs que viveram nas
estepes de Canaã.21 Como costumava acontecer com os moradores
das regiões desertas da Palestina, o clã era a instituição
básica da família, que possuía cultura e hábitos devocionais
peculiares.
Mas como compreender a religiosidade de um povo nômade?
A religião neste caso está relacionada ao seu modo de vida
nas estepes, sendo fundamental e imprescindível para os
pastores água e alimento, para o crescimento e a reprodução
do rebanho. A vida livre nos campos marca profundamente seus
hábitos, que se refletem em sua cultura, costumes e
tradições.
Possuíam esses pastores israelitas rituais, cerimônias e
expressões de religiosidade identificáveis com outras
culturas? Notamos na história dos hebreus, que a
religiosidade de outros povos, também nômades em contato com
21 - AGOSTINHO, apud, Raniero CANTALAMESSA, Mistério Pascal. p. 23 .
25
Israel, influenciou-lheS a crença, incorporando lendas, e
supertições aos seus rituais religiosos. Um exemplo de
religiosidade de povos nômades que exerceu influência ao povo
de Israel era uma cerimônia típica dos árabes pré-islâmicos,
que se identifica com a festa da Páscoa.
Segundo Kaufman tem origem nos pastores árabes a crença
israelita de que “nas noites de lua cheia do mês de Abib (o
primeiro mês do calendário judaico), perigos demoníacos
ameaçavam os primogênitos humanos e dos animais. Para
guardarem-se ao terror dessa noite, ofereciam como sacrifício
um animal, e com o sangue da vítima, usando alguns ramos de
hissopo (espécie de planta que consideravam mágica) untava-se
a travessa das tendas”22 (Ex. 12.21-23).
Para os pastores árabes “os perigos personificavam-se
nos demônios que imaginavam povoar a região, principalmente o
Destruidor (Mashit) cuja ação maléfica era temida”.23
A prática celebrativa israelita que deu origem a Páscoa
judaica, foi assim sendo, o resultado da influência de outros
povos aos costumes dos judeus.
A Páscoa israelita era uma cerimônia realizada nas
vésperas da partida dos pastores a procura de novas pastagens
para os rebanhos, quando as famílias não saíam de casa até a
manhã seguinte (Êx. 12 21-23) quem sabe com o intuito de
permanecerem junto o maior tempo possível em comunhão e
fraternidade antes da partida de seus entes queridos.
O historiador Jaussen, afirma: “o sacrifício dos
pastores nômades que deu origem a Páscoa, tem relação com os
árabes pré-islâmicos, que sacrificavam no mês de Radjab, na
primavera, um animal para assegurar a fecundidade dos
22 - J. KQUFMAN, A Páscoa Judaica, Raniero CANTALAMESSA, Mistério Pascal. p. 25 .
23 - J. KQUFMAN, idem p.13.
26
rebanhos. Ainda hoje ritos semelhantes detectam-se entre as
tribos beduínas”.24
Mas existem bases históricas para se afirmar que no
princípio a festa da Páscoa era uma festa de pastores?
Sim, um dos motivos é a narrativa da forma com que
escolhiam a vítima do sacrifício. Era um animal escolhido do
rebanho que, depois de sacrificado, era assado nas brasas da
fogueira com que se aqueciam próximas as suas casas (Ex.12.3-
8).
2.2- A PÁSCOA NO ÊXODO
Existem duas versões para descrever a Páscoa no Antigo
Testamento. A primeira se encontra no livro de Êxodo e a
segunda em Deuteronômio. No Êxodo o destaque é para a
imolação do cordeiro e para a saída do povo de Israel do
Egito, enquanto que em Deuteronômio a atenção se desloca da
escravidão para a liberdade (cf Ex.13–15 e Dt. 16).
O relato da Páscoa em Êxodo, 12.1 e ss tem também toda a
aparência de um relato histórico do acontecimento que teve
lugar na primeira metade do século XIII a C., no tempo de
Ramsés II (1290-1224) e durante o período de seu sucessor, o
faraó Mener-Pthah (1223-1216).
Na versão do Êxodo esta celebração é na verdade de uma
comemoração anual feita pelos israelitas no mês de Abib (nome
que significa em hebraico espiga e que é o primeiro mês do
ano cananeu, e que corresponde ao nosso mês de março-abril.
Mais tarde por influência da cultura babilônica, chamou-se
este mês de Nisã, nome que conserva até hoje.25
24 - Raniero CANTALAMESSA, Mistério Pascal, p.14.
25 - Garcia CORDEIRO, La Bíblia yel legado Del Antiguo Oriente, p.251.
27
A Páscoa na versão do Êxodo possui um caráter
mistagógico e didático. É apresentada com uma aparência
ritualística e sacrifical, numa liturgia concreta pela
família. É uma celebração “em homenagem a Javé pelas
sucessivas gerações como instituição perpétua” (Ex. 12.14).
Era prática de gratidão e reconhecimento pelo cuidado paterno
de Javé ao seu povo.
Na redação do Êxodo a Páscoa é uma festa camponesa e
certamente com uma função familiar, quando as mulheres
cuidavam dos detalhes da cerimônia em conversa com outras do
mesmo clã, purificavam toda a casa, examinando todos os
cantos à luz da lamparina para procurar e fazer desaparecer o
menor fragmento de pão fermentado, para que pudessem, depois,
celebrar a festa unicamente com pão ázimo.26
Nesta oportunidade estas mulheres podiam falar das
preocupações do povo, sonhos e esperanças. Era momento de
alegria e oportunidade que fazia nascer a solidariedade, a
esperança e a certeza da presença de Javé com seu povo.
Era momento de contentamento, quando se compartilhavam
as experiências vividas, mantendo firme o laço de união e de
relacionamento familiar.
O momento também era apropriado para cultivar os valores
humanos, através do diálogo, onde ouvindo um ao outro se
possibilitava descobrir novos caminhos e objetivos da
família.
No convívio do lar, ouvir e falar com os outros era
fundamental para uma vida harmoniosa. Vivendo em exílios,
onde imperavam crenças e hábitos desconhecidos dos hebreus e
que exerciam forte influência em seus valores, o convívio
26 - Vicente SERRANO, A Páscoa de Jesus em Seu tempo e hoje. p. 14.
28
familiar era altamente saudável. Os vínculos familiares eram
fortalecidos nessas reuniões e práticas.
A celebração da Páscoa israelita objetivava manter viva
na memória do povo as tradições contadas no ambiente
familiar. As crianças tinham participação ativa na cerimônia
e com elas o rito tinha início: “Quando seus filhos
perguntarem: o que quer dizer essa cerimônia? Vocês
responderão: É o sacrifício da Páscoa em honra ao Senhor
Deus, pois no Egito Ele passou pelas casas dos israelitas e
não parou. O Senhor matou os egípcios, mas não matou as
nossas famílias” (Ex. 12. 26 e ss).27
Na celebração registrada no Êxodo, era escolhido um
cordeiro sem mancha, macho de um ano, o qual seria imolado no
dia 14, do mês de Nisã ao entardecer. Este sacrifício tinha
como finalidade “que Javé, nosso Deus, não nos fira com a
peste ou espada” (Êx. 5.3).
Esse pensamento do povo israelita contém uma atribuição
a Javé semelhante à conferida a Mashit (o deus destruidor dos
pastores nômades islâmicos). Os israelitas acreditavam que
perigos demoníacos rondavam os rebanhos nas noites de lua.
Com relação ao local, onde era celebrada a festa da
Páscoa? O livro de Êxodo é claro em afirmar: nas casas, (Êx
12.22) onde não havia santuários nem altares, o que demonstra
em primeiro lugar que a Páscoa na sua origem era uma festa em
família.
Mas outro pormenor que existe é que além de familiar, a
celebração tinha uma abrangência tribal e comunitária.
“Moisés convocou os anciãos e lhes ordenou que orientassem o
povo de Israel a celebrarem a Páscoa em honra a Javé” (Ex.
12.21).
27 - Vicente SERRANO, A Páscoa de Jesus em Seu tempo e hoje. p. 15.
29
No final do século XIII a C. de acordo com a
historiografia, deu-se a libertação dos escravos hebreus do
Egito, e este acontecimento se tornou em um evento
fundamental na história de Israel. Os detalhes da libertação
foram descritos por gerações futuras como referencial de luta
do povo e presença de Javé no meio deles.
A Páscoa do Êxodo visava lembrar libertação, como um
processo histórico dentro de um contexto de conflito que
durou décadas, no qual os ancestrais das pessoas reunidas
experimentaram a escravidão e o sofrimento e, segundo o
testemunho bíblico “Deus agiu conduzindo seu povo para a
liberdade” (Ex 3.7,8).
A celebração da Páscoa era, portanto, o meio pelo qual
se recordava a presença de Javé junto ao povo de Israel em
meio dos conflitos e tribulações. Acreditavam que a proteção
de Deus, no passado, também permaneceria com o povo nas
angústias presentes e o cuidado de Javé com seus ancestrais,
permaneceria atualizado.28
2.3- A PÁSCOA EM DEUTERONÔMIO
No livro de Deuteronômio, encontramos outra redação da
Páscoa, cujo registro passa a ser incorporado ao calendário
judaico como data especial e decisiva para os israelitas, o
que vem comprovar seu grande valor na vida do povo. “No mês
de Abib devem celebrar a Páscoa em homenagem a Javé, porque
foi em Abib que Ele tirou Israel do Egito, durante a
noite”.(Dt 16.1-8).
28 - Victor CIVITA, As Grande Religiões da humanidade, vol. I p.18.
30
Na versão de Deuteronômio, o povo de Israel não poderia
comer durante sete dias pão com fermento “para recordar por
toda a vida o dia da saída de Israel do Egito” (Dt 16.3). Era
uma forma didática, que no cotidiano se confirmava numa
anamnese. Ao se privarem do pão sem fermento durante uma
semana, todo ano, não se esqueciam do fato proeminente
ocorrido no passado.
Este relato de Deuteronômio nos permite compreender que
neste período da história de Israel que foi introduzido um
período preparatório para a Páscoa, em que o povo se
alimentava com pão sem fermento. A Páscoa passa a ser o ápice
de uma celebração mais complexa em Deuteronômio do que no
Êxodo.
No relato de Deuteronômio já estão presentes as Ceias do
Cordeiro e dos Pães Ázimos, e é introduzida uma novidade:
passa-se a empregar também na imolação o gado maior (Dt. 16.
ss).
No entanto o que constitui realmente a autêntica
novidade, e que suporá uma mudança importante nos costumes do
povo é que a Páscoa não poderá ser mais celebrada em qualquer
das cidades de Israel, “mas apenas nas cidades que Javé
escolheu para fazer habitar ali seu nome” (Dt 16.5 e ss).
2.4- COMPARAÇÃO DA PÀSCOA DO ÊXODO COM A DE DEUTERONÔMIO
Na descrição do Êxodo a atenção se concentra e na
imolação do cordeiro e na saída do povo de Israel do Egito.
Em Deuteronômio o foco é a passagem da escravidão para a
liberdade. Com a mudança do evento central, muda também o
protagonista ou sujeito da Páscoa. No Êxodo, a Páscoa
31
apresenta um Deus que passa e salva e Deuteronômio apresenta
uma Páscoa em que o homem passa e é salvo.
As duas descrições podem ser definidas não somente como
teológicas. Apresentam um Deus que vai ao encontro do homem,
mas também há uma definição antropológica. É o povo que passa
pelo Mar Vermelho e se confraterniza com isto, em um
significado alegórico da celebração da Páscoa.
Conforme Fílon de Alexandria, “a festa da Páscoa é uma
recordação e uma ação de graças pela grande migração do
Egito. Mas para aqueles que estão acostumados a transformar
as coisas narradas em alegoria, a festa da passagem pelo Mar
Vermelho significa a purificação da alma. Propriamente
falando, a Páscoa significa a passagem de toda paixão para o
que é inteligível e divino”.29
Em Deuteronômio o homem é visto mais na dependência de
Deus, caracterizado pela aliança do Sinai, em que o povo se
vê livre para servir ao mesmo Deus, como tantas vezes repetem
as fontes bíblicas. “Deixa ir livre o meu povo para que me
sirva”.(Êx. 4.23 e 5.1). No Êxodo o homem é visto na
dependência divina, mas em seu estado natural, escravo sem
aliança, mas com um Deus que se compadece e vai ao encontro
do clamor e angústias da nação israelita.
A Páscoa do Êxodo fecha um ciclo na vida dos judeus, mas
em Deuteronômio se desenvolve no calendário de festas (Dt
16.1-8), tomando força nos tempos do rei Josias, por volta do
ano 621 a C., quando todos os santuários foram destruídos por
ordem real e o culto restringiu-se ao único templo de
Jerusalém (II Rs 23.12-23).
29 Vicente SERRANO, A Páscoa de Jesus em Seu tempo e hoje. p. 15.
32
2.5- A FESTA DOS PÃES ÁZIMOS E SUA RELAÇÃO COM A PÁSCOA
De acordo com os hábitos judaicos, com a chegada da
primavera e o início da colheita da cevada, tinha lugar
também um rito religioso: a oferenda da primícia da colheita,
cujo fim era alcançar o aumento dos rebanhos e a fecundidade
dos campos. O pão sem fermento que comiam, era feito com os
grãos moídos das espigas recém-colhidas. A razão de comer
unicamente este tipo de pão está relacionada com as antigas
tradições que falavam de influências maléficas que havia nas
casas, quando o alimento estava ficando escasso.
Utilizar o fermento que restou da colheita anterior para
fazer fermentar o fruto da nova colheita não era tido como
prática correta. (Compare esta idéia de não usar o fermento
velho no fruto da colheita nova, com I Co 5.8: “Então vamos
comemorar a nossa Páscoa, não com o fermento, o fermento
velho do pecado e da imoralidade, mas com o pão sem fermento,
o pão da pureza e da verdade”).
Outra idéia predominante, é que, ao iniciar a primavera,
que para os judeus era o ciclo da vida, também o pão,
alimento básico do homem, deveria estar elaborado com farinha
nova, sem mistura de nada antigo. Ao que tudo indica, a falta
de material e de tempo para elaborar o fermento novo,
motivava a necessidade de comer pão sem usar fermento. Alguns
apontam por sua vez, que esta prática era uma forma de
exercer a “pureza, sendo uma corrupção o uso de fermento em
dias sagrados ou em festas nas quais se pretende destacar tal
pureza”.30
30 - R. ARAN, Los años oscuros de Jesús, p.117 .
33
Como complemento da Festa dos Pães Ázimos, e que sete
semanas depois se celebrava o Sabuot (Sabuot significa
“semanas”), que transcorria desde a festa de Pessach até esta
festa, com a qual terminava a colheita. Era de subida
obrigatória a Jerusalém e ao templo, desde o tempo de Josias.
Em sua origem, era a Festa dos Pães Ázimos uma festa
agrícola, de oferenda a Deus das primícias da colheita. Mais
tarde lhe foi dado o significado de comemoração do dom da
Tora, também chamado de Pentateuco, que compreende os cinco
primeiros livros do Antigo Testamento: Gêneses, Êxodo,
Levíticos, Números e Deuteronômios. São também chamados de
livros da lei dado por Deus a Israel. Na Festa dos Pães
Ázimos, o povo conservou seu caráter agrícola e apresentavam
os frutos da terra nas oferendas no templo.
É evidente, que pelas origens históricas de Israel, os
clãs hebreus, que chegaram ao deserto e que são fontes
principais das tradições, só puderam celebrar a festa dos
pães Ázimos depois de seu assentamento em Canaã (Cf. Lv.
23.9-14) quando, ao contato com a cultura de seus habitantes,
começaram a mudar seus costumes, adaptando-se às formas de
vida ali existentes.
Uma idéia oportuna é que a festa dos Pães Ázimos tenha
sido prática dos próprios cananeus, que não foram expulsos
nem destruídos, como geralmente se crê, com base nas
descrições feitas pelo livro de Josué. Pelo contrário, com
eles os hebreus iniciaram uma convivência, em geral pacífica
que resultou em troca de culturas costumes hábitos e
tradições.
Outra idéia presente é de que a festa dos Pães Ázimos
celebrada pelos hebreus, tenha sido adotada das tribos de sua
própria etnia, que se estabeleceram em Canaã desde o inicio
34
das migrações dos arameus e ali permaneceram sem descer para
o Egito, assimilando as formas de tradições e atitudes
cananéias.
Essas realidades e crenças dos israelitas facilitarão
sua união durante a reforma religiosa do rei Josias, a partir
da qual se tornaram em uma única festa (Cf. Dt 16.2-3: II Rs.
23.21 ss).
Os registros de Deuteronômio mencionam as três festas em
que todo israelita deveria comparecer diante de Javé nos
lugares que “Ele tiver escolhido” são: a festa dos Pães
Ázimos (Matizot) a festa das Semanas (Sabuot) e a festa das
Tendas (Sukot). É curioso observar que não se diz Páscoa
(Pessach) nestes textos, mas “Pães Ázimos” (Matizot).
Certamente ocorreu que durante grande parte do período
real, a festa dos “Pães Ázimos” chegou a absorver a Páscoa,
por corresponder melhor aos costumes e formas de vida de um
povo que há gerações havia abandonado o pastoreio seminômade
e se dedicava como sedentário, ao cultivo da terra. No
entanto, essas duas festas (Pães Ázimos e Páscoa) devem ter
coexistido, nos séculos anteriores, e no início da ocupação
de Canaã, como se apresenta no relato do livro de Josué.
(Cf. Js. 5.10).
Vale destacar, ainda que, pelas descrições dos textos
sagrados, as duas festas, Páscoa e Pães Ázimos, relacionavamse
com a saída do povo de Israel da escravidão do Egito e
constituíam em celebrações que visavam recordar as maravilhas
de Javé para com o povo (cf. Ex 12.17-51: 23.15: 34.18: Dt
16.1).
Esses textos apresentam mais um relato histórico da
celebração da festa dos Pães Ázimos, que como a Páscoa tem
35
também aspecto de uma celebração familiar (cf. Ex 12.21-
27).
A Festa dos Pães Ázimos, de modo algum, reflete a pressa
e a saída precipitada de um povo que foge.
Na Páscoa, as evidências e registros bíblicos mostram,
que na apresentação histórica e apressada da saída do Egito,
houve uma a celebração cúltica por meio da qual se expressava
a luta e a vitória de Javé contra seus inimigos.
Não se pode negar que o culto, como se decanta nos
textos do livro de Êxodo, influenciou na memória do povo a
recordação da saída do cativeiro e a decantar a vitória do
Deus de Israel sobre os deuses pagãos do Egito.
A partir da unificação da festa, Páscoa e dos Pães
Ázimos, bem como de sua celebração anual no templo de
Jerusalém, a Páscoa serviu para manter viva a memória daquele
fato decisivo para a configuração de Israel na sua história.
A Páscoa, sem dúvida, pertence a este momento histórico na
vida de Israel, embora tenham sido apresentadas mais tarde
com novas perspectivas, e adornada com elementos secundários
próprios, de situações e tempos diferentes.
2.6- A CELEBRAÇÃO DA PÁSCOA NA ÉPOCA DO REI JOSIAS
Com a reforma do rei Josias, no século VII a C., as
festas da Páscoa e dos Pães Ázimos uniram-se definitivamente
e se impõe a obrigação de celebrá-las como uma única festa no
único templo de Jerusalém.
Com esta medida alcançava-se uma tríplice finalidade:
a) A religiosa, pela qual se unificava o culto e se
purificava a crença em Javé, de acordo com a linha
reformadora da Páscoa apresentada em Deuteronômio.
36
b) A econômica, a partir do momento que os tributos que
eram recolhidos nos santuários passaram a serem
centralizados em Jerusalém.
c) A política, pela qual se consegue vincular mais
estreitamente à capital todos os territórios do reino,
subtraindo assim a velha tendência manifestada sempre
nas tribos, que expõem suas origens diversas.
Essa tendência, que poderia chamar-se anarquia religiosa
e política, como reflete o livro de Juízes, foi a causa do
fracasso da anfictionia.(Liga de tribos, cidades ou povoados
agrupados em torno de um santuário comum. Contava-se com doze
membros que se revezaram ao longo do ano para a manutenção do
santuário. Essa figura, que se aplicou à situação dos clãs
hebreus depois de sua penetração em Canaã, é tomada da
organização da política grega e etrusca. Segundo isto, o
pacto de Siquém, narrado no livro de Josué no capítulo 24,
será o nascimento da referida federação ou liga, integrada
por tribos etnicamente afina que se encontraram em Canaã). 31
Historicamente, é certo que essa tendência de separação
política das tribos israelitas foi a causa principal da
divisão do reino com a morte de Salomão, no tempo dos seus
filhos Roboão e Jeroboão, em tempos conturbados em que cada
um queria a supremacia do governo do reino (cf. I Rs 11.43 e
14.31; e II Cr. 9.31. e 12.16).
Josias, que certamente conhecia essa história, segundo a
qual de um reino bastante poderoso em seu entorno geográfico,
surgiram dois reinos fracos, sem peso político algum e que
também sabia do mais recente e dramático desaparecimento do
31 - Diez MACHO, Apócrifos Del AT, p. 67.
37
reino do Norte, conquistado pelos assírios durante o período
do reino de Sargão II, quis com esta reforma fazer frente ao
perigo e à ameaça do novo império surgido do outro lado do
Eufrates, o da Babilônia. Para isso tentou forjar a unidade
do povo em torno de um só Deus, Javé, e de um só templo, o de
Jerusalém.
O livro II Reis nos afirma que “foi somente no ano
dezoito do rei Josias que a Páscoa foi celebrada em honra de
Javé em Jerusalém”.(II Rs 23.23) Isto não quer dizer que
durante esse logo período a festa tivesse sido esquecida ou
se tivesse perdido o costume de celebrá-la, ou ainda que ela
não tivesse sido celebrada com a mesma solenidade. O que, sem
dúvida, se pretende ressaltar e o apresenta como novidade, é
o fato de celebrar a Páscoa como peregrinação obrigatória a
Jerusalém, e o fato de as celebrações da Páscoa e dos Pães
Ázimos terem-se transformado em uma única festa.(cf. II Cr
35.1-18. com II Cr 30.1-26).
Fala-se também, como de algo extraordinário, de uma
Páscoa celebrada no tempo do rei Ezequias 715-687 a C. em
Jerusalém, para a qual foi convocado todo o povo. O v. 26 de
II Cr 30 diz: “que foi grande a alegria em Jerusalém, pois
desde os tempos de Salomão, filho de Davi, rei de Israel, não
acontecia uma coisa assim em Jerusalém”. A falta de texto
paralelo no segundo livro de Reis, que é muito anterior ao
livro de Crônicas nos leva supor que o cronista quis
apresentar a reforma religiosa de Ezequias – à qual o
referido livro de Reis dedica apenas quatro versículos (II Rs
18.3-6) – em termos parecidos a Josias, talvez para ressaltar
uma importância que certamente não teve.
Desse modo, as celebrações em família clãs e tribos,
deixaram de serem realizadas nos santuários, e transformou-se
38
em uma única festa de caráter nacional e de ida obrigatória
ao templo de Jerusalém. Neste momento histórico do povo de
Israel, perdeu-se o sentido comunitário e de compartilhamento
da celebração familiar e tribal. Não havia mais a
simplicidade das celebrações presentes que em sua origem, não
tinham altares e nem sacerdotes.
Longe estava a época de se sentir a comunhão e cultivar
sentimentos de amor e solidariedade no aconchego da família e
tribo. Quem não pudesse peregrinar a Jerusalém para
participar das celebrações ficava de fora. Esta situação
incluía a classe pobre que, em função da obrigatoriedade da
viagem e por morar em regiões longínquas, não podiam prestar
culto. E, mesmo assim, os que pudessem ir a Jerusalém e não
tivessem posses, dormiam nas ruas e abrigos improvisados
agravando os problemas sociais da cidade.
Passada a profunda crise que trouxe consigo a destruição
da cidade pelos babilônios e o exílio (586-538 a C.) é
restaurada, na medida do possível, a vida nacional e
religiosa, após o edito de liberdade dado pelo rei Ciro.
Começou a notar-se mais que antes, a influência da classe
sacerdotal, que acrescentou novas precisões ao
desenvolvimento da Páscoa, tanto cronológicas (o dia da
celebração e a hora da imolação do cordeiro), como rituais
maior participação dos sacerdotes e levitas e insistência nos
aspectos sacrifical e expiatório(cf. Ez 45.21 ss).
Esta celebração vai ser mais evidente com a reforma de
Esdras, aproximadamente em 482 a.C., que dá à festa, de modo
definitivo, seu caráter de festa do templo e, portanto, de
ida obrigatória a Jerusalém.
Já no início da era cristã, a Páscoa tinha chegado a ser
uma solenidade que congregava, a cada ano em Jerusalém
39
milhares de peregrinos judeus e prosélitos vindos do império
romano.
“Já não se comia a Páscoa em pé, com os rins cingidos,
sandálias nos pés e um cajado na mão. Agora a ceia era um
banquete na qual os comensais se recostavam em divãs, sem
pressa alguma e com todo conforto, tanto como faziam os
gregos e romanos, para manifestar deste modo sua condição de
homens livres”.32
Através da história, a Páscoa evoluiu passando por
várias gerações, em celebrações realizadas nos santuários
locais ou no templo de Jerusalém. Ao evoluir, vai assumindo
sua expressão definitiva, a que aparece nos textos bíblicos,
após séculos de repetição desse festejo e após suas
sucessivas refundições e reformas. Essa expressão, já com seu
significado histórico mais profundo, alcançará sua plenitude
quando os próprios textos que a contêm conseguem sua última
redação por volta do século V a C.
Desde então a Páscoa recordará sempre aos israelitas que
eles foram escravos no Egito e que Deus os libertou, com mão
poderosa, da escravidão.
Pode-se dizer que na concepção da Páscoa como símbolo de
libertação, temos duas mensagens importantes que o cada ano
recorda a ação seu Deus: na história, como redentor, e na
natureza, como seu criador e como aquele que dá vida.
Com essa significação celebrava-se a Páscoa nos tempos
de Jesus, embora naquela época já se tenha introduzido uma
nova dimensão: a escatológica.
32 - Vicente SERRANO, A Páscoa de Jesus em Seu tempo e hoje. P 20
40
CAPÍTULO - 3 A PÁSCOA JUDAICA E SUA CO-RELAÇÃO COM A
EUCARISTIA NO NOVO TESTAMENTO
Durante sua infância, no seio da família, enquanto
continuava atento, com curiosidade infantil, a cada gesto e a
cada palavra, fazia a pergunta que correspondia ao caçula:
“Por que esta noite é diferente das demais noites?"33
Jesus esteve aos doze anos em uma festa de Páscoa, na
cidade de Jerusalém (Lc 2.41-52), também quando adulto com
seus familiares e mais tarde com seus discípulos, certamente
celebrou outras Páscoas, pois “todo israelita a partir de
vinte anos, tinha a obrigação de celebrar a Páscoa, se
estivesse em estado de pureza ritual”.34
A celebração da última Páscoa de Jesus com seus
discípulos provavelmente teve a seguinte seqüência (citação
formal):
a) O anúncio da festa era feito pelo chefe da
família, que nesse caso em particular fora
proferido pelo Senhor Jesus Cristo, como
líder do grupo celebrante;
33 - Russel NORMAN, O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo, p.593.
34 - Russel NORMAN, idem p. 594.
41
b) O chefe da casa falava das ações de graças e
da festa em geral, tomava o primeiro copo, e
os demais participantes repetiam o gesto;
c) Lavavam as mãos;
d) Comiam as ervas amargas, que eram mergulhadas
em vinagre ou água salgada, que simbolizavam
os tempos difíceis que seus ancestrais tinham
vivido, quando estavam escravizados no Egito;
e) O cordeiro pascal era trazido bem temperado
com molho, num tipo de terrina chamada
“charoseth”. Os pratos incluíam o molho, os
pães asmos, e o cordeiro pascal. As
significações desses elementos eram
explicadas aos presentes;
f) Cantavam a primeira parte do “Hallel”35 e
imediatamente tomavam o segundo copo de
vinho;
g) Chegava o momento mais importante da festa,
instante em que todos se reclinavam. O chefe
da casa tomava os pães, partia um deles em
dois pedaços, punha-os sobre o pão inteiro,
proferia a benção, cobria-os com ervas
amargas, comia um pouco e distribuía entre os
presentes;
h) Havia em seguida a benção do cordeiro,
momento no qual se comia um pedaço de pão com
carne, mergulhada no molho;
i) Finalmente o cordeiro era comido, até ser
completamente consumido por todos;
35 - Salmo 104 e 115.
42
j) Em seguida, faziam uma oração de ação de
graças e bebiam o conteúdo do terceiro copo
de vinho;
k) Cantava-se o restante do “Hallel”, e tomavase
o quarto copo de vinho.36
3.1- O RELATO DOS SINÓTICOS
Os sinóticos afirmam que a última ceia celebrada por
Jesus foi a ceia ritual de Pessach, com pequenas variações,
mas que coincidem nos pontos fundamentais, indicando certo
grau de dependência entre eles.
De acordo com o evangelista Marcos, os fatos teriam
ocorrido da seguinte maneira:
“Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e para a
festa dos Pães Ázimos” (Mc 14.1). “No primeiro dia, quando
matavam os cordeiros para a Páscoa, os discípulos
perguntaram: Onde queres que façamos os preparativos para
comeres a Páscoa?” (Mc 14.2).
Esse fato ocorreu em Betânia, que de acordo com a
distribuição geográfica atual, se localiza a três quilômetros
de Jerusalém, do outro lado do Monte das Oliveiras.37
Certamente, Jesus queria celebrar aquela Páscoa com
seus discípulos, pois pressentia ser a última, em Jerusalém,
a cidade santa. Desta forma, enviou dois de seus discípulos,
Pedro e João (Lc 22.8) com um sinal para encontrar a casa
onde deveriam fazer os preparativos. Assim, perguntaram a um
homem que levava um cântaro, que era amigo ou seguidor de
Jesus, ao que parecia. “O mestre manda dizer: onde é a sala
36 - Russel NORMAN, O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo, p. 592.
37 - Russel NORMAN, idem p. 587.
43
em que eu e os meus discípulos vamos comer a Páscoa?” (Mc
14.14).
Existem duas versões que explicam a identificação desse
homem que cedeu as dependências de sua casa para a celebração
da Páscoa.
A primeira, é que sendo uma época de intensa
festividade, havia naquele período uma prática comum de
hospitalidade, devido ao número elevado de pessoas que
afluíam de várias partes da região para a celebração, muita
das quais, sem condições financeiras de hospedarem-se em
local adequado. Assim, justifica-se a posição do homem que
cedeu suas dependências sem argumentação nenhuma.38
Outra interpretação é que Jesus tenha dado instrução
prévia a alguém próximo dele, que seria o contato com os dois
que foram enviados. Nesse caso, o homem seria pai de João
Marcos, o evangelista. Justamente o que descreve de forma
mais completa a cerimônia.39
Os preparativos para a celebração eram numerosos. Tinham
que comprar o cordeiro sacrificá-lo no templo após o meio-dia
e depois assá-lo.
Havia também que adquirir o vinho, os pães ázimos e as
ervas amargas, o haróst40, e tudo aquilo que fosse necessário
para celebrar a páscoa com alegria, conforme determinava a
tradição.
Como a celebração se estendia a todos os judeus, seria
provável que faltassem produtos a serem consumidos durante a
comemoração.
Os preparativos ocuparam boa parte do tempo dos
apóstolos: Pedro e João. Ao retornarem a Betânia, relataram a
38 - Russel NORMAN, O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo, p.592
39 - Russel NORMAN, idem p.593
40 - Haróst: Espécie de pasta de geléia feita com figos ou maças, amêndoas ou nozes raladas, canela e vinho,
que lembra a argamassa para tijolos que os hebreus fabricavam quando se encontravam cativos no Egito.
44
Jesus que estava tudo pronto. “Ao cair da tarde, Jesus chegou
com seus doze” no local da celebração (Mc 14.17) em
Jerusalém, a cidade santa.
Os sinóticos relatam o preparo da seguinte forma:
a) Mateus registra que “os discípulos fizeram como
Jesus lhes ordenara e prepararam a Páscoa”. (Mt
26.19).
b) Marcos relata que os discípulos prepararam a Páscoa.
(Mc 14.16).
c) Lucas comenta que “os discípulos foram, acharam tudo
como Jesus dissera e prepararam a Páscoa”. (Lc
22.13).
A cerimônia do Pessach transcorre com toda normalidade,
conforme referido anteriormente. Havia quatro cálices no
final da refeição que obtiveram significados especiais.
a) No primeiro cálice, Jesus anuncia que aquela
refeição de companheirismo seria a última, até que
fosse repetida no seu reino;
b) No segundo cálice, Jesus interpretou o sentido da
nova festa dizendo: “isto é o meu corpo que é dado
por vós”;
c) No terceiro cálice, após ter partido o pão, ao ser
introduzido o cálice, Jesus explicou acerca de seu
sangue expiatório.
d) No quarto cálice, consagrou os três primeiros
cantando um hino, dirigindo-se depois para o Monte
das Oliveiras.
“Dessa maneira, Jesus adaptou a refeição da Páscoa”,
45
para que servisse de Ceia do Senhor perpetuando sua entrega
para expiação dos pecados da humanidade”.41
A expressão de Jesus “este é o sangue da nova Aliança”,
tem um sentido teológico ligado ao rito da circuncisão (Ex
24.8; Zc 9.11, Hb 9.20 e 10.29). Através da cerimônia da
circuncisão e conseqüentemente do derramar do sangue, as
crianças incorporavam-se à comunidade judaica. O sangue da
nova Aliança referido por Jesus, é a Aliança da graça feita
por Ele. A circuncisão era uma iniciação na vida comunitária
dos judeus. A nova Aliança é feita com sangue, não das
pessoas, mas com o sangue do próprio salvador.
3.2- O RELATO DE JOÃO
A narrativa de João não coincide com os sinóticos, com
exceção da parte que relata a traição de Judas.
“Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada
a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os
seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”.(Jo 13.1,2).
Para João, Jesus Cristo celebrou a Páscoa na noite
anterior, pois desejava ardentemente comer a Páscoa com seus
discípulos antes de sua morte vicária.42
Para os que defendem a autenticidade da instituição da
Páscoa no relato do evangelista João, a atitude de Cristo de
celebrar a Páscoa antes da data correta, deve ter sido aceita
com normalidade pela comunidade dos discípulos. A celebração
do cerimonial da Páscoa, em casos especiais, podia ser em
outro dia fora do usual em caso de necessidade.
Houve pelo menos uma situação no Antigo Testamento, que
a celebração ocorreu fora de sua época normal: “quando não
41 - Júlio Paulo Tavares ZABATIERO, Dicionário Internacional do Novo Testamento, p.325.
42 - Alviero NICACCI, Comentário del Evangelho de San Juan, p.160
46
puderam celebrar no devido tempo, imolaram o cordeiro da
Páscoa, no décimo quarto dia do segundo mês” (II Cr 30.3-5).
Acima de tudo, o Senhor Jesus, que é o senhor do sábado
como Ele próprio afirma, tinha autoridade para fazer essa
mudança, e conseguir os mesmos benefícios que a celebração
daria se fosse no dia certo.
“Juan, sin enbarco, testifica reiteradamente que Jesús
fue crucificado en el dia en que se mataba el cordero
pascual” (Jo 13.1; 18.28; 19.31)43.
O cordeiro era morto na véspera da celebração nos átrios
do templo após o meio dia pelo sacerdote, o que indica em
João que a última ceia foi na véspera da celebração do dia do
Pessach.
Existem interpretações que preferem o testemunho de
João. Afirmam que a última ceia foi antecipada em virtude da
vontade do Senhor em celebrar com seus discípulos aquela
Páscoa que se aproximava, porque sabia que seria morto antes
da celebração da data correta.44
Apesar de não conter de maneira clara a passagem da
Páscoa para a Eucaristia no Evangelho de São João, esta
verdade está implícita, pelos relatos do próprio Cristo: “Eu
sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer,
viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo,
e minha própria carne” (Jo 6.51). Através destas palavras,
notamos que o Senhor Jesus deu uma nova interpretação ao
comer do pão.
Comentando a passagem da Páscoa para a Eucaristia no
Evangelho de João, Joachim Jeremias faz a seguinte síntese:
a) Jesus comparou o pão ao seu corpo;
43 - A. M. HUNTER, El Evangelho Segun San Marcos, p. 160.
44 - Joachim JEREMIAS, Isto é o meu corpo, p. 39.
47
b) Comparou o vinho ao seu sangue, acrescentando que
com isso se realizava uma nova aliança;
c) Os textos de João que falam de sua carne e seu
sangue citam a preposição “por”, o que indica que
seu corpo e sangue foram oferecidos numa clara
convicção da passagem da Páscoa para a Eucaristia
neste evangelho.45
3.3- O RELATO DE PAULO
Quando Paulo chega a Corinto em continuidade ao trabalho
missionário, tentou resgatar o sentido fidedigno da Ceia do
Senhor, pois os cristãos haviam perdido o sentido autêntico
da Eucaristia. Quando iam comer, cada um se adiantava ficando
alguns saciados e outros com fome. Esse costume foi censurado
por Paulo que disse: “Será que vocês não têm suas próprias
casas para comer?” (1 Co 11. 20-22).
Por isso Paulo inicia um trabalho de doutrinação na
comunidade. Em um primeiro momento comenta certos abusos que
cometiam os cristãos nas reuniões fraternas e recorda aos
coríntios tanto a doutrina sobre a Eucaristia como a práxis
que as comunidades cristãs seguiam em sua celebração,
convencido de que este procedimento remontava até a própria
celebração instituída por Jesus (1 Co 11.23).
Em um segundo momento, propõe aos coríntios uma questão
moral: ao participar dos sacrifícios aos ídolos, os cristãos
tornavam-se partes integrantes desse culto. Por tal fato,
seria contraditório, ter comunhão com Cristo, e ao mesmo
tempo participar da mesa do mal. Como conseqüência, adverte
45 - Vicente SERRANO, A Páscoa de Jesus no seu tempo e hoje , p. 137.
48
carinhosamente aos cristãos de Coríntios dizendo: “Por isso
amados, fujam da idolatria” (I Co 10.14).
Notamos semelhanças da Eucaristia celebrada em Corinto
com o relato de Marcos 14. “O Senhor Jesus pegou o pão e deu
graças, partiu e deu a seus discípulos. Em seguida pegou o
cálice, passou aos discípulos e todos beberam”. (Mc 14.22-25;
1 Co 11. 23-25).
Historicamente relato da Santa Ceia em Corinto deve ter
ocorrido entre os anos 54 e 57 e mostra relação com a
celebração eucarística realizada por Cristo. “... de fato, eu
recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti para
vocês...” (Co 11.23). Completa esta citação outro texto da
mesma carta: “O cálice que nós abençoamos não é comunhão com
o sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão com o
corpo de Cristo?”.
Não existe nenhuma dúvida de que na celebração descrita
por Paulo aos coríntios - a Ceia do Senhor já possuía,
naquela época, (metade do primeiro século), o estabelecimento
da Eucaristia, sem referência à Páscoa.
49
CONCLUSÃO
Sem equívoco, antes de ser ingerido o terceiro cálice,
houve o momento de descontinuidade da passagem da Páscoa para
a Eucaristia.
Jesus tomou o Matizá (pão sem fermento), abençoou-o
conforme o ritual do Pessach, dizendo: “Bendito sejas, Senhor
Deus nosso, Senhor, Rei do universo, que tiras o pão da
terra. Bendito seja, Senhor Deus nosso, Rei do universo que
nos santificaste com teus mandamentos e nos impuseste o
preceito de comer pão sem fermento”.46
As palavras do rito estão dentro do cerimonial, da
história e do significado do Pessach. A partir da forma
sacerdotal e, sobretudo, nos tempos a que se refere, a morte
do cordeiro, com o derramamento de sangue ao pé do altar,
havia um autêntico caráter sacrificial.
Esse caráter é o que reveste as palavras de Jesus, tal
como expressam Paulo e Lucas. O mandamento de evocar e fazer
a partir daquele instante aquilo que acabava Jesus de
realizar está na linha dos escritos no livro de Êxodo: “esse
46 - Vicente SERRANO, A Páscoa de Jesus no seu tempo e hoje, p. 137.
50
dia será para vocês um memorial (...) vocês o celebrarão como
um rito permanente, de geração em geração” (Ex 12.14).
Aquele pão, nas mãos de Jesus, assume um significado
totalmente novo. Para os discípulos, já não seria o pão da
aflição que seus pais tinham comido no Egito do qual em
várias celebrações ouviram falar; seria o corpo de Jesus, pão
da vida, descido do céu e quem o comesse não morreria, mas
viveria eternamente (Jo. 6.48-58).
Jesus parte o pão e pronuncia palavras que os discípulos
não esperavam: “Isto é o meu corpo que é partido por amor de
vós, fazei isto em memória de mim” (I Co 11.24).
Após comerem o pão sem fermento, Jesus segurando o
terceiro cálice, diz: ”Bebam dele todos, pois isto é o meu
sangue, o sangue da nova Aliança, que é derramado em favor de
muitos, para a remissão dos pecados” (Mt 26.27s).
Estas palavras não se encontram na tradição da
celebração do Pessach. Elas brotam dos lábios de Jesus de
forma inesperada pelos discípulos, que aguardavam uma
celebração de acordo com a ritualística da Páscoa judaica.
E a Eucaristia passa a ser afirmação nova que perpetua
na vida da igreja cristã pelos séculos afora: “Todas as vezes
que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a
minha morte até que eu venha” (I Co 11.26).
O pensamento apocalíptico sobre a Eucaristia, é de que
a pessoa pode comer e beber com Deus em comunhão, na
Eternidade. A comunhão praticada na esfera terrestre
ultrapassa a transitoriedade humana e entra no âmbito
transcendental do espírito, numa comunhão que perpetua.
51
“E na consumação dos tempos, os que passam fome comerão
até se fartarem e, mais uma vez cairá de cima o maná em
abundância...” (Br 29.6 e ss).
A Eucaristia não tem somente uma dimensão histórica
ligada à celebração da Páscoa judaica. É algo mais que
referência do passado ou evocação de um acontecimento
distante no tempo. É passagem que se alonga na vida da
comunidade de Cristo, que a vive de forma intensa em toda a
história da igreja e alcança os dias de hoje na anamnese de
cada celebração. Embora distante no tempo e da forma
litúrgica em que Jesus transformou a Páscoa na Eucaristia,
fazemos o mesmo que Ele fez naquela noite, e com a mesma
finalidade, obedecendo a sua palavra. “Façam isto em minha
memória...”.
52
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