Postagens populares

Powered By Blogger

segunda-feira, fevereiro 27

"Te digo hoje, estarás comigo no paraiso"Texto original 1883

     "Te digo hoje, estarás comigo no paraiso"

  Texto original 1883

Muitas dúvidas tem se levantado sobre o significado das palavras de Cristo na cruz: "Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso." A nota tônica da escatologia bíblica no que tange ao galardão dos justos é que ocorrerá unicamente por ocasião da volta de Jesus. (Mateus 16:27; Mateus 25:31 a 34; I Tessalonicenses 4:16 a 18; II Timóteo 4:8; I Pedro 5:4; Apocalipse 22:12), além de inúmeras outras passagens. A passagem de Lucas 23:43, segundo cremos, baseado em razões que a seguir apresentaremos, deve estar incorretamente pontuado. Além de conter sem razão a partícula "que". Matos Soares, Basílio Pereira e outros traduzem: "Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso." Se a pontuação fosse removida para depois da palavra hoje, teríamos: "Em verdade te digo hoje: estarás comigo no Paraíso." Os manuscritos do Novo Testamento, escritos em grego e em caracteres unciais não tinham pontuação. Diz-nos J. Angus em sua conhecida obra História, Doutrina e Interpretação da Bíblia, vol. 1, pág. 39, que somente no século VIII é que foram introduzidos alguns sinais de pontuação, e que no século IX introduziram-se o ponto de interrogação e a vírgula. Que a colocação da pontuação altera substancialmente o sentido do texto é evidente. Há um exemplo, muito citado, da imperatriz da Rússia que alterou uma ordem de exílio assim redigida: "Perdão impossível, enviar para a Sibéria." Com cuidado removeu a vírgula colocando-a noutro lugar, e ficou assim: "Perdão, impossível enviar para a Sibéria." E o prisioneiro foi salvo. Alinhemos, sucintamente, algumas evidências a favor de nossa tese: 1.ª - Boas traduções rezam que o ladrão pediu a Jesus que se lembrasse dele "quando vieres no Teu reino." Assim, por exemplo o fazem Matos Soares, a Trinitariana, a Versão Italiana de G. Deodatti, a francesa de L. Sègond, a inglesa de King James e outras. "Quando vieres no Teu reino" e não "quando entrares". "Quando vier... então Se assentará no seu trono..." (Mateus 25:31). Para essa ocasião pediu o ladrão um lugar no reino, e não para aquele dia que agonizava ao lado de Jesus. 2.ª - Certamente o ladrão não podia estar com Jesus no Paraíso naquele dia, a menos que Jesus lá estivesse também. E Jesus foi para lá naquele dia? Não. Como sabemos? a) Porque três dias depois, já ressurreto, disse à Madalena: "Não Me toques, porque ainda não subi para o Meu Pai." (João 20:17). Jesus estivera dormindo no túmulo, e não subira ao Pai. Ressurgira, e ainda não subira ao Pai. E nem de leve se pode inferir que uma "alma" consciente subira, pois a Escritura não sugere tal absurdo. b) Porque uma análise cuidadosa da cena do Calvário revela que o ladrão não morreu naquele mesmo dia, pois João 19:31 a 33 nos diz:"Os judeus, pois, para que no sábado não ficassem os corpos na cruz, visto como era a Preparação (pois era grande o dia daquele sábado), rogaram a Pilatos que lhes quebrassem as pernas, e que fossem tirados. Foram pois, os soldados e, na verdade, quebraram as pernas do primeiro, e ao outro que com ele fora crucificado; mas vindo a Jesus, e vendo-O já morto, não Lhe quebraram as pernas." Por que "quebrar as pernas" dos justiçados? Porque o crucificado não morria no mesmo dia. Cristo foi caso excepcional e que sabemos que não morreu dos ferimentos ou da hemorragia, mas do quebrantamento do coração. Morreu de dor moral por causa dos pecados do mundo. Mas os outros, não, e as crônicas descrevem o condenado esvaindo-se lentamente durante dias. Diz por exemplo o comentário de J. B. Howell: "O crucificado permanecia pendurado na cruz até que, exausto pela dor, pelo enfraquecimento, pela fome e a sede, sobreviesse a morte. Duravam os padecimentos geralmente três dias, e às vezes, sete." - J. B. Howell, Comentário a S. Mateus, pág. 500. É óbvio que os homens de maior robustez física duravam até sete dias na cruz. No caso em tela, os judeus, não permitiam que se conservasse um criminoso na cruz nos dias sabaticos, pois consideravam um desrespeito à santidade do dia de repouso. "De acordo com o costume, quebravam as pernas dos criminosos depois de os haverem removido da cruz, deixando-os estendidos no chão, até que o sábado passasse. Depois do sábado haver passado, sem dúvida esses dois corpos foram outra vez amarrados na cruz, e lá ficaram diversos dias até morrerem..." Se era necessário quebrar as pernas aos dois malfeitores, antes do pôr do Sol, é porque não haviam morrido ainda. Na pior das hipóteses viveram ainda, pelo menos, um dia a mais que o Mestre. Como podia, um deles, estar no mesmo dia junto de Jesus? 3.ª - Há traduções bem autorizadas que vertem o texto de Lucas 23:43 de forma a harmonizá-lo com o teor da Bíblia a respeito do galardão no reino, quando Jesus voltar. E vamos citá-las: a) Tradução Trinitariana, em português, editada em 1883, pela "Trinitarian Bible Society" de Londres. Diz: "Na verdade te digo hoje, que serás comigo no Paraíso." b) Emphasized New Testament, de Joseph Bryand Rotherham, impresso em Lodres, em 1903, assim reza: "Jesus! Lembra-te de mim na ocasião em que vieres no teu reino. E Ele disse-lhe: Na verdade, digo-te neste dia: Comigo estarás no Paraíso." c) The New Testament, de George M. Lamsa, de acordo com o texto Oriental, traduzido de fontes originais aramaicas, diz: "Jesus lhe disse: Na verdade te digo hoje, estarás comigo no Paraíso."d) A chamada Concordant Version, em inglês assim traduz: "E Jesus lhe disse: Na verdade a ti estou dizendo hoje, comigo estarás no Paraíso." e) Um manuscrito importante. Trata-se de um famoso manuscrito curetoniano da Versão Siríaca, existente no Museu Britânico. Assim reza: "Jesus lhe disse: Na verdade te digo hoje, que comigo estarás no Jardim do Éden." E há mais ainda: o comentário da Oxford Companion Bible, que diz: "'Hoje' concorda com 'te digo' para dar ênfase à solenidade da ocasião; não concorda com 'estará'". E no Apêndice n.º 173, o famoso Oxford Companion Bible, esclarece: "A interpretação deste versículo depende inteiramente da pontuação, a qual se baseia toda a autoridade humana, pois os manuscritos gregos não tinham pontuação alguma até o nono século, e mesmo nessa época somente um ponto no meio das linhas, separando cada palavra... A oração do malfeitor referia-se também àquela vinda e àquele Reino, e não a alguma coisa que acontecesse no dia em que aquelas palavras foram ditas." E conclui o mesmo comentário, no final do mesmo Apêndice: "E Jesus lhe disse: 'Na verdade te digo hoje' ou neste dia quando, prestes a morrerem, este homem manifestou tão grande fé no reino vindouro do Messias, no qual só será Rei quando ocorrer a ressurreição - agora, sob tão solenes circunstâncias, te digo: serás comigo no Paraíso." E a expressão "hoje" ligada ao verbo não é redundante, mas enfática. É comum na Bíblia. Leiam-se, por exemplo, Deuteronômio 20:18; Zacarias 9:12; Atos 20:26, entre outros. A conclusão fatal é que Lucas 23:43 é um falso pilar em que se ergue a teoria da imortalidade inata no homem e seu imediato galardão pós morte. O homem só verá a Glória do Cristo mediante ao Seu retorno triunfal.



Aprofundando o tema:
Jesus não disse ao ladrão na cruz que “Hoje estarás comigo no paraíso”. Três dias depois ao ressuscitar ele declarou a Maria Madalena que não havia ainda subido ao paraíso:
Não me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai … S. João 20:17.
Veja que 3 dias depois ele ainda não havia subido aos céus. Ora, então Cristo mentiu ao ladrão na cruz? Em uma única frase demoliu todas as dezenas de passagens que fala da morte como um sono? É claro que não, por isto o motivo da passagem ter sido traduzida levianamente para favorecer o ponto de vista baseado na filosofia grega da maioria das igrejas. Tanto que o correto seria:
Em verdade te digo hoje, estarás comigo no paraíso.
Caso ainda tenha dúvidas é só você pesquisar as diferentes traduções da Bíblia e verá que cada tradutor arroja a vírgula em algum lugar da frase como lhe convém e não baseado em outras passagens bíblicas. Certas traduções ainda trazem a expressão “que” no lugar da vírgula, que não consta no texto grego.
A cópia do Códice Vaticano nos comprova que nos Manuscritos primitivos unciais não havia separação das palavras e nenhum sinal de pontuação. A conhecida e muito útil obra História, Doutrina e Interpretação da Bíblia do autor batista Joseph Angus, traduzida para o português por J. Santos Figueiredo no Volume 1, pág. 38 nos informa o seguinte a respeito da pontuação na Bíblia:
No oitavo século foram introduzidos outros sinais de pontuação. No nono foram introduzidos o ponto de interrogação e a vírgula.
O livro Arte de Pontuar de Alexandre Passos, página 22 nos afirma que estudando a história da pontuação através dos séculos, vemos que no V ou VI séculos os textos dos Evangelhos não apresentam nem ponto nem vírgula. Afirma ainda, este mesmo autor, que a separação das palavras na Bíblia torna-se mais freqüente no VII século. A ausência de pontuação deixa os tradutores na possibilidade de colocarem a pontuação de acordo com suas idéias preestabelecidas.
É evidente, que a mudança de pontuação, pode alterar totalmente o significado de uma frase, como nos comprovam as afirmações de Rui Barbosa na Réplica, vol. II, pág. 195:
Bem é que saiba o nosso tempo quanto bastará, para falsificar uma escritura. Bastará mudar um nome? Bastará mudar uma cifra? Digo que muito menos nos basta. Não é necessário para falsificar uma escritura mudar nomes, nem palavras, nem cifras, nem ainda letras, basta mudar um ponto ou uma vírgula.
A questão é: Quis Jesus dizer, literalmente, ‘Verdadeiramente eu te digo hoje’, ou ‘Hoje estarás comigo no paraíso’? A única maneira de conhecer o que Cristo queria indicar é descobrir respostas escriturísticas para algumas outras questões, tais como: O que ensinou Jesus concernente ao tempo em que os homens teriam a recompensa?
A Bíblia está repleta de claros exemplos mostrando que o galardão dos justos será apenas após a volta de Jesus. Dentre as muitas passagens destaquemos esta DUAS:
a) Apoc. 22:12 – “Eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras.”
b) Mateus 16:27 – “Porque o Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos e então retribuirá a cada um conforme as suas obras.
Portanto Jesus precisa VIR UMA SEGUNDA VEZ para ressuscitar e dar o galardão ao ladrão da cruz. Ele não recebe sem o Filho vir na glória do Pai com seus anjos.
Como vimos o Novo Testamento foi escrito originalmente em grego. Assim sempre será bom pesquisar traduções da Bíblia feitas por pessoas diferentes para chegarmos a uma conclusão sobre qualquer assunto controvertido. Sendo assim, vejamos outras traduções das sagradas escrituras de João 20:17:
a) Tradução Trinitariana, em português, editada em 1883, pela “Trinitarian Bible Society” de Londres. Diz: “Na verdade te digo hoje, que serás comigo no Paraíso.”
b) Emphasized New Testament, de Joseph Bryand Rotherham, impresso em Londres, em 1903, assim reza: “Jesus! Lembra-te de mim na ocasião em que vieres no Teu reino. E Ele disse-lhe: Na verdade, digo-te neste dia: Comigo estarás no Paraíso.”
c) The New Testament, de George M. Lamsa, de acordo com a Texto Oriental, traduzido de fontes originais aramaicas, diz: “Jesus lhe disse: Na verdade te digo hoje, estarás comigo no Paraíso.”
d) A chamada Concordant Version, em inglês, assim traduz: “E Jesus lhe disse: ‘Na verdade a ti estou dizendo hoje, comigo estarás no Paraíso.”
e) O famoso manuscrito curetoniano da Versão Siríaca, existente no Museu Britânico assim reza: “Jesus lhe disse: Na verdade te digo hoje, que comigo estarás no Jardim do Éden.”
E há mais ainda: o comentário da Oxford Companion Bible, que diz:
” ‘Hoje’ concorda com ‘te digo’ para dar ênfase à solenidade da ocasião; não concorda com “estarás’.”

quinta-feira, fevereiro 16

O Dízimo não é mais 10% Uma Doutrina do Dízimo

Dízimo e NT

O Dízimo não é mais 10%
Uma Doutrina do Dízimo



Queremos mostrar que a doutrina sobre o dízimo que vigora em muitas igrejas é veterotestamentária e que uma verdadeira compreensão neotestamentária da contribuição financeira para as igrejas é necessária para se entender mais a fundo a vocação cristã.
Hoje o dinheiro fala muito alto. Não é novidade para ninguém que vivemos numa época muito materialista. O interesse material tudo domina. E na área religiosa nunca se falou tanto em dízimo. É verdade que a Igreja, ou as igrejas, em outras épocas tinham outras fontes de recursos, e hoje cada vez mais dependem dos recursos dos fiéis. Cremos, porém que hoje se fala muito em dízimo não só por causa da nova conjuntura das igrejas, mas também pelo materialismo que envolve a todos. O que mais faz pensar em tal hipótese é a ênfase posta no valor da contribuição, com uma flagrante e suspeita volta ao regime da Lei do Antigo Testamento. Prega-se por toda parte, nas seitas e em muitas igrejas, inclusive católicas, que a Bíblia recomenda o pagamento de 10% de tudo o que se recebe. Diz-se que isso é uma entrega a Deus de uma parte do que Ele, na Sua generosidade nos concede. E, por isso, deve-se pagar, nas igrejas, o dízimo. Quando não é ganância, é, em muitos casos, uma visão funcional e empresarial de igreja, que supõe que os meios da missão da Igreja dependem mais do homem do que de Deus, que mais vale um bom marketing, que muitas horas de oração ou sacrifício escondido. É claro que há uma bem intencionada Pastoral do Dízimo que quer ensinar aos católicos a sua responsabilidade material o sustento do culto, das comunidades e das missões, mas, por falta de esclarecimento também estes muitas vezes caem na doutrina errada do dízimo imposto de 10%.
Porque uma percentagem fixa, para todos, como 10%? Ainda mais em uma sociedade de profundas desigualdades na distribuição da renda, como a nossa? Até o Imposto de Renda, que não vem diretamente do Deus de justiça sabe que uma percentagem fixa para todos pune os mais pobres com um peso maior de sacrifício. A quota do Imposto de Renda, no nosso como em outros países, aumenta sua percentagem à medida que cresce a renda do contribuinte. Cem reais pesam menos a quem recebe mil do que dez a quem recebe cem.
As Sagradas Escrituras
O quinto mandamento da Igreja, que lemos no tradicional catecismo, nos diz que devemos “pagar o dízimo segundo o costume”, com uma abertura e compreensão “inculturada” difícil de se encontrar em muitas determinações eclesiásticas hoje. “Segundo o costume” significa a pluralidade de situações das igrejas e dos fiéis, deixando para a liberdade das comunidades e dos fiéis o estabelecimento do regime mais justo e eqüitativo de colaboração dos fiéis para a manutenção da comunidade e dos serviços religiosos.
Apela-se para as Sagradas Escrituras para justificar que são elas que autorizam o dízimo em 10%. Examinemos portanto as Escrituras, porque nelas encontraremos sempre a vida.
A doutrina sobre os dízimos nas Escrituras confunde-se com a doutrina sobre as primícias. No início da história de Israel, nos relatos mais antigos como no Êxodo fala-se sempre de primícias a ofertar-se a Iahweh (cf. Ex 22, 28; 23, 19; 34, 22.26; Lv 23, 10s.17; Dt 26, 10). Dar a Deus a melhor parte do que se tem, os primeiros frutos da terra e os primeiros produtos do rebanho, exprimia a primazia de Deus, era um gesto de adoração. A consagração a Deus das primícias dos frutos santificava, ao mesmo tempo toda a colheita, porque a parte vale pelo todo (cf. Rm 11, 16). A mais antiga legislação de Israel (cf. Ex 20-23) não mencionava o costume do dízimo. O dízimo parece inicialmente confundir-se com as primícias (cf. Dt 12, 6.11.17; 14, 22). Observa-se porém seu uso já em um tempo bastante remoto, na época de Amós.
O dízimo já era manipulação religiosa na época de Amós
É a partir do culto no santuário de Betel que se entende a passagem de Gn 28, 19-22 em que Jacó promete o dízimo na “casa de Deus” no lugar a que “deu o nome de Betel”. Interessante que essa referência ao dízimo já na boca de Jacó - não havia templo, nem sacerdócio, nem culto regulamentado! A quem Jacó pagaria o dízimo? - se dá exatamente como uma indicação para o pagamento ao futuro santuário de Betel! É nesse santuário que o profeta Amós vai condenar o culto sem conversão de vida. “Entrai em Betel e pecai! Em Guilgal e multiplicai os pecados! Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios, e ao terceiro dia os vossos dízimos! Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor, proclamai vossas oferendas voluntárias, anunciai-as, porque é assim que gostais, filhos de Israel. Oráculo do senhor Iahweh” (Am 4, 4-5). A insistência do profeta em afirmar “vossos” sacrifícios, “vossos” dízimos, “vossas” oferendas, “é assim que gostais” é destinada a frisar que os peregrinos do santuário realizam os seus próprios desejos e não a vontade de Iahweh. E continua Amós: “Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto das vossas reuniões. Porque se me ofereceis holocaustos..., não me agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!” (Am 5, 21-24). Em outra passagem Amós vai contra o culto em algum templo que esteja em contraste com a prática da justiça: “Porque assim falou Iahweh à casa de Israel: Procurai-me e vivereis! Mas não procureis Betel, não entreis em Guilgal e não passeis por Bersabéia; pois Guilgal será deportada e Betel se tornará uma iniquidade! Procurai a Iahweh e vivereis! ... Ai daqueles que transformam o direito em veneno e lançam por terra a justiça. ... Eles odeiam aquele que repreende à porta e detestam aquele que fala com sinceridade. Por isso: porque oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo, construístes casas de cantaria, mas não as habitareis; plantastes vinhas esplêndidas, mas não bebereis o seu vinho. Pois eu conheço vossos inúmeros delitos e vossos enormes pecados!” (Am 5, 4-6a.10-12a). Vemos assim, que já no tempo de Amós, o interesse no dízimo era associado com injustiça e exploração. Por outro lado, em certos textos mais tardios como Ez 44, 30 e Nm 18, 12 vemos que o aspecto sacrifical da oferenda das primícias se atenua sempre mais. A oferta a Iahweh, que deveria ser toda queimada, vai-se tornando sempre mais um imposto sagrado em benefício do clero (cf. Eclo 45, 20; Ne 10, 36). A referência ao dízimo trienal em favor dos mais pobres , que aparece em Dt 14, 28s, é sempre mais deixada de lado. Por fim o espírito das primícias irá se desvanecendo totalmente e restará apenas o dízimo como contribuição de um décimo dos frutos da terra e do rebanho, em favor sempre mais dos sacerdotes e sem sentido sacrifical. No tempo de Jesus os fariseus estendiam a obrigação dos dízimos até aos mais insignificantes produtos (cf. Mt 23, 23; Lc 11, 42; 18, 12).
Abusa-se de uma passagem de Malaquias, e vai-se contra o Evangelho
Devido ao uso abusivo que fazem do livro de Malaquias na pregação do dízimo nas igrejas atuais, este livro merecerá de nós uma atenção especial.
Usa-se sempre para pregar o dízimo nas igrejas o versículo Ml 3, 10: “Trazei o dízimo integral para o Tesouro, a fim de que haja alimentos em minha casa. Provai-me com isto, disse Iahweh dos Exércitos, para ver se eu não abrirei as janelas do céu e não derramarei sobre vós bênção em abundância”. A insistência nesse versículo, deslocado de seu contexto e da mensagem global da Bíblia é suspeita. O paralelo com a segunda tentação de Cristo no deserto ocorre logo. Também satanás cita um versículo bíblico convidando o Cristo a “provar” a proteção do Pai: «Então o diabo o levou à Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão nas mãos, para que não tropeces em nenhunma pedra.” Respondeu-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus.” (Mt 4, 5-7). Uma expressão forte de Malaquias em um contexto em que o culto em geral estava sendo descuidado, prometendo bênçãos de Deus para um povo que se convertesse - um dos sinais da conversão seria o restabelecimento do culto pela contribuição dos dízimos -, é transformada por atuais pregadores de dízimo em uma promessa de recompensa individual para quem der uma determinada contribuição em suas igrejas. Ou seja, Deus passa a ser movido a dinheiro e o mandamento com que Jesus solenemente rebateu a tentação demoníaca é desprezado. Convida-se tranqüilamente o povo a tentar a Deus com a oferta do dízimo, para ver se Deus não vai cobrir de bênçãos o dizimista. Onde está o caráter de graça e misericórdia das bênçãos de Deus?
O livro de Malaquias faz uma dura crítica aos sacerdotes porque ofereciam os piores animais no altar do Senhor. Ou seja, o profeta os acusa de um culto insincero, fonte de muitas desgraças. A seguir o profeta anuncia a vinda do Anjo da Aliança que purificará os filhos de Levi, a classe sacerdotal, para que estes ofereçam uma oferenda conforme a justiça. “A oferenda de Judá e Jerusalém será então agradável a Iahweh” (Ml 3, 4; cf. 3, 1-3). Nós, cristãos, reconhecemos nesse Anjo da Aliança, a Nosso Senhor Jesus Cristo, que “entrará em seu Templo” (cf. Ml 3, 1). Que templo é esse, vemos na carta aos Hebreus. Se diz aí que temos “um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus” (Hb 4, 14; cf. 9, 24). É um sumo-sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (cf. Hb 6, 19). Aqui o autor da carta aos Hebreus reconhece o caráter profético do Salmo 2º e faz uma alusão ao sacrifício eucarístico, pois esse Melquisedec é um misterioso sacerdote que oferecia, nos tempos de Abraão, ao Deus Altíssimo, pão e vinho (cf. Gn 14, 20). A seguir, o autor da Carta aos Hebreus, tratando da superioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio dos levitas do Antigo Testamento, que recebiam o dízimo do povo, diz que Melquisedec recebeu dízimos de Abraão. Em Abraão estavam os próprios levitas, seus descendentes, pagando dízimo a Melquisesdec. Ou seja, aqueles que no Antigo Testamento recebiam os dízimos, no Novo Testamento os pagariam!
Mas há um novo sacerdócio, o de Cristo, segundo a ordem de Melquisedec. “Mudado o sacerdócio, necessariamente se muda também a Lei” (Hb 7,12). E, podemos dizer, o sacrifício! (cf. Hb 10, 11s). Assim não devemos mais pagar o imposto de um sacerdócio que já se extinguiu! Nada mais tem a ver com a nova Aliança um imposto para um templo que já acabou! O santuário de Cristo é o Céu! A oferta de Cristo não é aquela dos sacerdotes e levitas judeus, mas o sacrifício de Si mesmo! A passagem de Mt 17, 24-27 é muito interessante a esse respeito. Jesus pergunta: “Que te parece, Simão? De quem recebem os reis da terra tributos ou impostos? Dos seus filhos ou dos estranhos?”. Simão Pedro responde o óbvio: “Dos estranhos”. Então os filhos de Deus, Jesus em primeiro lugar, depois os seus irmãos, que pela comunhão com Ele foram feitos filhos de Deus, estão isentos. Os filhos não pagam dízimos nem qualquer imposto a seu Pai! Que maravilhosa aproximação com Deus nos dá o Novo Testamento, a nova Aliança que Jesus estabeleceu, e que muitos dizem professar, mas se comportando como estranhos, até com impostos de 10%!
O “dízimo” verdadeiro não é 10%, mas 100%!
Então a passagem de Malaquias (cf. Ml 3, 10) não pode ser interpretada no mesmo sentido que tinha originalmente. Não há mais o Tesouro do templo, “que a traça e a ferrugem consomem”, mas o Tesouro está nos céus (cf. Mt 6, 19s), onde Cristo reina.
À mulher samaritana, Jesus já havia respondido: “Crê, mulher, vem a hora em que nem nesta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora ¬- e é agora - em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4, 21. 23s). Então se o dízimo e as primícias ofertadas no templo no Antigo Testamento eram parte do culto a Deus, e não é mais no templo e sim em espírito e verdade que se deve adorar, onde iremos oferecer a nossa oferta? Ofereceremos em espírito e verdade, em qualquer lugar. O culto cristão a Deus, nosso Pai, não se interrompe. Não é só no templo, na igreja, mas em todo lugar. A liturgia celebrada na igreja não tem sentido senão como sacramento de uma liturgia que se desenrola a todo minuto na vida do cristão. Cristo não ofereceu ao Pai uma oferenda-coisa, mas ofereceu-se s Si mesmo, sua vida. Então em toda a sua vida o cristão deve oferecer-se ao Pai. E os seus bens, e o seu dinheiro, e o fruto do seu trabalho? Para o cristão, tudo é graça, e tudo que é seu é já do Pai (cf. Lc 15, 31). Ele é irmão de Jesus por cumprir a vontade do Pai (cf. Mt 12, 50). Então, na medida em que tudo é usado de acordo com a vontade do Pai, realiza-se a comunhão filial do cristão com seu Pai Celestial. Pode-se dizer que todos os bens, todos os reais de um cristão, são oferecidos a Deus se são empregados de acordo com a vontade de Deus. Assim se José é um trabalhador cristão e tem saúde para trabalhar e ganhar honestamente o seu dinheiro, isto é dádiva de Deus. Deus quer que José seja um bom pai para seus filhos. Quando José compra leite para alimentar suas crianças está realizando a vocação de pai de família que Deus lhe deu, dando destinação justa para o fruto do seu trabalho na graça de Deus. Está prestando um culto a Deus. Se paga justamente os impostos civís está obedecendo ao que disse “Daí a César o que é de César” (cf. Mt 22, 21), está sendo um bom cidadão, e nessa obediência está dando a Deus o que é de Deus. Cem por cento, todo o dinheiro de cada José, de cada cristão, deve ser utilizado de forma a agradar a Deus. O que o cristão dá a Deus é tudo! O cristão não mede nada para Deus. É tudo ou nada! A exemplo do seu Senhor, ele se oferece todo em cada coisa que faz: “Oferecei os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12, 1).
O sacerdote levita era o receptor das primícias e dízimos do Antigo Testamento. O sacerdote católico não tem mandato para receber nada em nome de Deus, a não ser o próprio sacrifício do povo, do qual é servo, para oferecê-lo a Deus, na Eucaristia (cf. Rito de Ordenação Presbiteral). Muito menos o pastor protestante tem mandato para tal. No Novo Testamento só o pequenino, “o menor dos irmãos” de Jesus tem autorização para receber algo que se oferta a Deus: “O que fizestes ao menor de meus irmãos, a Mim o fizestes” (cf. Mt 25, 40.45). Assim o filho do trabalhador José é um desses pequeninos, o pobre, o presidiário, o doente e cada pessoa quando tem direito a receber na justiça e na caridade qualquer bem, e é da vontade de Deus que seja socorrida, é esse pequenino.
Dar a Deus é dar à igreja?
A grande falácia da pregação dos dízimos no nosso tempo é a confusão entre “dar dinheiro a Deus” e “dar dinheiro à igreja”. Como vimos o culto cristão não se enclausura, como o hebraico, no templo. Dá-se a Deus em todo lugar, a todo momento. Mas continua-se a fazer pensar que se dá a Deus só aquilo que se dá numa igreja ou comunidade. Prega-se que “se devolva a Deus uma parte do que generosamente nos deu”. Já vimos que Ele não quer uma parte, mas tudo, quer nós mesmos. Dentre todas as obrigações que um cristão tem para usar com justiça os seus bens, além de sua família, sua pátria, os pobres, etc. ele tem também a Igreja de Cristo. Os cristãos, no início, tinham liberdade de dar o que queriam à comunidade (cf. At 5, 4), podiam pôr tudo em comum (cf. At 2, 44; 4, 34) ou não. Nada era imposto, mas tudo era livre, segundo o Espírito, sem taxas nem percentagens. Paulo faz uma coleta de caridade, entre os coríntios, pelos pobres de Jerusalém e em nenhum momento cita obrigações de dízimo (2Cor 8-9). Ele mesmo não quer pesar economicamente para nenhuma comunidade (cf. 1Cor 9, 15-18; 2Cor 8, 1-2; 11, 7-9; At 18, 3; Fl 4, 15).
Quando Jesus diz que o trabalhador merece o seu salário, referindo-se ao anunciador do Evangelho, não está falando de um salário no sentido moderno do termo, mas que deve partilhar da vida e do alimento daqueles a quem anuncia o Evangelho, comer com aquele a quem anuncia, e não receber um pagamento como um mercenário qualquer. Ele mesmo, Nosso Senhor Jesus Cristo, é o modelo.
Conclusão
A Igreja tem necessidades econômicas e o cristão consciente colocará, entre suas responsabilidades, essa de contribuir com bens para a missão da Igreja. Mas nada pode ser imposto a ele. Foi Deus quem lhe confiou os talentos, entre esses a sua condição econômica, e é só a Ele que deverá prestar contas de sua administração (cf. Lc 16, 2; Mt 25, 14-30). À Igreja, como Mãe e Mestra, cabe, como sempre, ensinar e orientar, mas a decisão final vem do coração da pessoa, libertada por Cristo para viver não mais sob a Lei, mas sob o Espírito (cf. Rm 7, 6). Esse é o sentido do quinto mandamento da Igreja, onde a palavra dízimo está apenas pelo costume e não no seu sentido técnico, bíblico, que, como vimos, está ultrapassado.
É lamentável que tantos hoje retornem à tutela da Lei de Moisés, e mesmo assim vivam dizendo que “Jesus Cristo é o Senhor” (cf. Mt 7, 21-23). Ai dos que conscientemente exploram essa ignorância, colocando o seu tesouro (cf. Mt 6, 19-21) no amor ao dinheiro, fonte de todos os males (cf. 1Tm 6, 10). Bem-aventurados os que amam a Igreja e livremente se dão à sua missão com seu corpo e com seus bens, construindo um tesouro nos céus!

Questões Atuais de Moral

Questões Atuais de Moral



QUESTÕES ATUAIS DE MORAL

INTRODUÇÃO
A. Muitas questões de moral, uma só crise moral
À primeira vista poder-se-ia pensar que as “questões atuais de moral” são muitas e devem ser tratadas cada uma separadamente. Embora cada uma tenha seus particulares próprios, é preciso perceber, antes de tratar desses particulares, e para não transformar o estudo dessas questões de moral num assunto puramente técnico ou legalista, que não levaria a solução real nenhuma, mas apenas a julgamentos de “lícito” e “ilícito”, é preciso perceber que há nelas, nas questões que hoje se debate, uma unidade que vem do itinerário espiritual que a humanidade tem percorrido nos últimos séculos, até hoje.
O que é essa unidade? Uma doutrina? Uma força? Uma corrente de opinião? Bem se vê que uma elucidação a respeito ajuda a compreender até suas profundezas toda a crise moral do mundo contemporâneo e a missão da Igreja nele.
B. A missão da Igreja transcende a instituição católica
Para demonstrá-lo, basta lançar os olhos sobre o panorama religioso de nosso País. Estatisticamente, a situação dos católicos é excelente: segundo dados oficiais de 1960 constituíam 94% da população. Se todos os católicos fossem o que devem ser, o Brasil e outros países de esmagadora maioria católica, seriam hoje sociedades pacíficas e harmoniosas. Mas não. Apesar dessa grande quantidade de católicos a crise moral mundial avançou a passos largos em nosso país e atingiu até a Igreja. Escândalos e deserções no clero católico e em outras instituições morais e religiosas, diminuição da percentagem de católicos, da identidade dos católicos com a moral católica, divórcio, aborto, violência e corrupção generalizada.
Por que, então, estamos em tal crise? Quem poderia afirmar que a causa principal de nossa presente situação é o espiritismo, o protestantismo, o ateísmo, ou o comunismo? Bastaria trazer muitos para o seio da Igreja, para participar em nossas missas, convertê-los da participação em filosofias e instituições atéias, como parece ser o empenho de muitos sacerdotes? Adiantam os discursos éticos e as campanhas de boa vontade? A causa da crise moral é mais profunda e devemos estar atentos a ela. Ela é outra, impalpável, sutil, penetrante como se fosse uma poderosa e temível radioatividade. Todos lhe sentem os efeitos, mas poucos saberiam dizer-lhe o nome e a essência.

PRIMEIRA PARTE
Capítulo I - Crise do Homem Contemporâneo, Ocidental e Cristão
As muitas crises que abalam o mundo hodierno — do Estado, da família, da economia, da cultura, etc.— não constituem senão múltiplos aspectos de uma só crise fundamental, que tem como campo de ação o próprio homem. Em outros termos, essas crises têm sua raiz nos problemas de alma mais profundos, de onde se estendem para todos os aspectos da personalidade do homem contemporâneo e todas as suas atividades.
Essa crise é principalmente a do homem ocidental e cristão, isto é, do europeu e de seus descendentes, o americano e o australiano. E é enquanto tal que mais particularmente a estudaremos. Ela afeta também os outros povos, na medida em que a estes se estende e neles criou raiz o mundo ocidental. Nesses povos tal crise se complica com os problemas próprios às respectivas culturas e civilizações e ao choque entre estas e os elementos positivos ou negativos da cultura e da civilização ocidentais.
Capítulo II - A raiz comum de toda a crise humana
O Salvador do Mundo não trouxe uma solução intra-mundana, para uma vida melhor neste mundo. Ensinou e realizou que a meta do viver humano neste mundo está fora deste mundo, isto é, na comunhão com a Santíssima Trindade, pelo Filho, a Segunda Pessoa, pela virtude do Espírito Santo, a Terceira Pessoa, que é o Espírito da Verdade e da Unidade, pelo qual Pessoas distintas vivem uma mesma vida, isto é, vivem em comunhão. Esta comunhão se dá pela submissão do homem ao Reino de Deus, ou seja, uma rendição, onde o homem desiste de criar o reino de sua própria inteligência e força. A Justiça é a criatura reconhecer que tudo lhe vem do seu Criador e colocar-se completamente sob sua dependência, obedecendo-Lhe em tudo. “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo”. (Mt 6,33; Lc 12,31). È exatamente essa não-conversão do homem moderno e contemporâneo ao Reino de Deus a causa geradora das questões que hoje afligem o mundo e levam a uma retomada do recurso à Ética. As “questões atuais de moral” aparecem nesse contexto da crise do homem moderno e contemporâneo, como uma esperança de que a Moral — ou a Ética — possa resolver essa crise. Tal retomada da Ética é insuficiente, e tal esperança é vã, porque pode, quando muito, iluminar intelectualmente a razão do homem acerca das atitudes justas a tomar, mas não pode vitalizar sua vontade para de fato tomá-las, uma vez que tais atitudes ferem muitos interesses políticos e econômicos particulares. Seria utópico esperar que todos esses interesses particulares cedessem aos raciocínios éticos “pelo bem da humanidade”, “pela preservação da natureza”, “por um futuro melhor” etc. Seria crer que o problema da humanidade é só uma ignorância ética e que a “conscientização” finalmente viria a estabelecer a paz no mundo “evoluído”. Isto é uma heresia, envolvendo racionalismo e evolucionismo. Pelo Evangelho sabemos que o problema do homem não é uma ignorância vencível — um problema da razão —, mas uma escravidão da vontade.

“31E Jesus dizia aos judeus que nele creram: Se permanecerdes na minha palavra, sereis meus verdadeiros discípulos; 32conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. 33Replicaram-lhe: Somos descendentes de Abraão e jamais fomos escravos de alguém. Como dizes tu: Sereis livres? 34Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo homem que se entrega ao pecado é seu escravo. 35Ora, o escravo não fica na casa para sempre, mas o filho sim, fica para sempre. 36Se, portanto, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (Jo 8,31-36).

Esta escravidão está na condição mortal do homem.

“14Porquanto os filhos participam da mesma natureza, da mesma carne e do sangue, também ele participou, a fim de destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, 15e libertar aqueles que, pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma verdadeira escravidão” (Hb 2,14-15).

A escravidão se dá “pelo medo da morte”, isto é, o desejo de viver do homem leva-o a colocar seu prazer na posse e no poder sobre as criaturas — outros homens, os recursos da terra, o dinheiro — como se estas pudessem lhe dar vida plena, para a qual foi criado por Deus. Como as criaturas não o podem, o homem só pode se salvar se esperar na graça do Criador que lhe deu esta vida e dará a vida plena, cujo anseio colocou em nosso coração. Realiza-se então a palavra de São Paulo a Timóteo:

“10Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Acossados pela cobiça, alguns se desviaram da fé e se enredaram em muitas aflições” (1Tm 6,10).

Esta é a raiz da crise contemporânea, ainda mais grave que em outras épocas da história. Veremos porque.
A graça do Criador age no homem pelas virtudes da Fé, da Esperança e da Caridade e pelos dons do Espírito Santo. Esta graça é descrita por São João como um novo nascimento, do Alto.

“3Jesus replicou-lhe: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus. 4Nicodemos perguntou-lhe: Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez? 5Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus. 6O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito. 7Não te maravilhes de que eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo. 8O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito. 9Replicou Nicodemos: Como se pode fazer isso? 10Disse Jesus: És doutor em Israel e ignoras estas coisas!... 11Em verdade, em verdade te digo: dizemos o que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas não recebeis o nosso testemunho. 12Se vos tenho falado das coisas terrenas e não me credes, como crereis se vos falar das celestiais? 13Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu. 14Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem, 15para que todo homem que nele crer tenha a vida eterna. 16Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. 17Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,3-17).

Renascer do Espírito é libertar-se do medo da morte. Pela fé, sabe-se do amor de Deus, que tudo deu por graça à sua criatura humana e sabe-se que a morte não destrói o homem, mas sim o pecado, a separação da sua fonte de vida e de ser, que é Deus. Todo pecado é, em grau maior ou menor, uma revolta contra Deus e um grito de independência em relação a Ele. Quem renasceu do Espírito já está sepultado para o reino deste mundo e vivo para o Reino de Deus (cf. Cl 3,1-3). Então prefere morrer do que pecar. Este é o testemunho do Reino de Deus que deram, por exemplo, os mártires. Não há outra solução real para as “questões atuais de moral”. Se houvesse, o Redentor a teria revelado e o seu Reino seria deste mundo. Portanto, uma civilização cristã não pode ser a civilização da adoração do conforto e do prazer físico, simplesmente, mas da austeridade, do sacrifício de si mesmo para o bem comum e da responsabilidade, por temor e amor a Deus. Aparentemente, parece que seria uma civilização séria e sem alegria. Exatamente o contrário. Seria a civilização da alegria e da beleza.
Capítulo III - A crise é também da Igreja
Um aspecto da crise atual é a grande esperança que homens de Igreja — bispos, presbíteros, e intelectuais — colocam nos discursos éticos, ignorando as verdades básicas da Redenção que expusemos acima. Por exemplo, o recurso que se faz às ‘Declarações de Direitos Humanos’. Em que se baseiam esses ‘direitos humanos’? São convenções humanas, que servem até de pretexto para ações de dominação política. O eixo Nova York-Londres não intervem nos países para lutar contra ‘ditadores’ e defender os ‘direitos humanos’? Mas não propagam aí mesmo o aborto, a pornografia e outras mazelas? E essas intervenções não são caras operações militares que são cobertas, com grandes lucros, pelas riquezas conquistadas nas operações pelos ‘direitos humanos’? Ao cobrar respeito aos ‘direitos humanos’ os sucessores dos apóstolos não anunciam o mistério de Cristo, que é a sua missão, mas agem como representantes de associações filantrópicas, como a Anistia Internacional, o Rotary ou o Lions Club. O anúncio do mistério de Jesus Cristo passa pela revelação da misericórdia de Deus em relação a todo homem, todo pecador, da ação do Maligno e da conversão pessoal, e não por uma reivindicação ou exigência de justiça humana, como se esta fosse a salvação do mundo (cf. Lc 12,13-15). Em outros pontos também assumem com facilidade posturas filosóficas geradas pelo ateísmo ou o materialismo. A Ética, pesquisa da inteligência humana, não salvará jamais o mundo. Só a conversão dos corações a Deus, pelo sacrifício do Corpo de Cristo, que é a Igreja pode abrir os corações dos homens ao Espírito Santo, para que se convertam. É na Cruz que a Igreja intercede pela humanidade. É a sua Cruz que a Igreja oferece a cada Santa Missa, até que Ele venha estabelecer o Reino definitivo. O Reino de Deus não é “construído” pelo homem como estamos ficando acostumados a ouvir — outra heresia atual — mas pode ser participado por ele, na medida em que se imola com Cristo na Cruz. E não há outra maneira de participar na vinda do Reino. Ou seja, de vencer o Maligno, o Príncipe deste mundo. O Caminho pelo qual Jesus o venceu é o único disponível também para sua Igreja.
Capítulo IV - Processo histórico dessa crise
A causa profunda da crise moral que vivemos é uma explosão de orgulho e sensualidade que inspirou, não diríamos um sistema, mas toda uma cadeia de sistemas ideológicos. De larga aceitação dada a estes no mundo inteiro, decorreram as três grandes revoluções da História do Ocidente: a Pseudo-Reforma, a Revolução Francesa e o Comunismo (cfr. Leão XIII, Encíclica "Parvenus à la Vingt-Cinquième Année", de 19-III-1902 — "Bonne Presse", Paris, vol. VI, p. 279). São, todas as três, etapas de uma só revolução que tem sua raiz no íntimo do homem e na sua escravidão à carne. Tal revolução pode ser chamada também revolução comercial ou burguesa, e inclui a revolução industrial e filosófica dos últimos cinco séculos, pelo menos.
O orgulho leva ao ódio a toda superioridade, e, pois, à afirmação de que a desigualdade é em si mesma, em todos os planos, inclusive e principalmente nos planos metafísico e religioso, um mal. É o aspecto igualitário do pensamento moderno.
A sensualidade, de si, tende a derrubar todas as barreiras. Ela não aceita freios e leva à revolta contra toda autoridade e toda lei, seja divina ou humana, eclesiástica ou civil. É o aspecto liberal do pensamento moderno ou modernismo.
Ambos os aspectos, que têm em última análise um caráter metafísico, parecem contraditórios em muitas ocasiões, mas se conciliam na utopia marxista de um paraíso anárquico em que uma humanidade altamente evoluída e "emancipada" de qualquer religião vivesse em ordem profunda sem autoridade política, e em uma liberdade total da qual entretanto não decorresse qualquer desigualdade.
A Pseudo-Reforma foi uma primeira revolução. Ela implantou o espírito de dúvida, o liberalismo religioso e o igualitarismo eclesiástico, em medida variável aliás nas várias seitas a que deu origem.
Seguiu-se-lhe a Revolução Francesa, que foi o triunfo do igualitarismo em dois campos. No campo religioso, sob a forma do ateísmo, especiosamente rotulado de laicismo. E na esfera política, pela falsa máxima de que toda a desigualdade é uma injustiça, toda autoridade um perigo, e a liberdade o bem supremo.
O Comunismo é a transposição destas máximas para o campo social e econômico.
Estas três revoluções são episódios de um só processo histórico, dentro do qual o socialismo e o liberalismo são etapas de transição ou manifestações atenuadas.
Capítulo V - Caracteres dessa Crise
Por mais profundos que sejam os fatores de diversificação dessa crise nos vários países hodiernos, ela conserva, sempre, cinco caracteres capitais:

1. É UNIVERSAL: Essa crise é universal. Não há hoje povo que não esteja atingido por ela, em grau maior ou menor.

2. É UNA: Essa crise é una. Isto é, não se trata de um conjunto de crises que se desenvolvem paralela e autonomamente em cada país, ligadas entre si por algumas analogias mais ou menos relevantes.
Quando ocorre um incêndio numa floresta, não é possível considerar o fenômeno como se fosse mil incêndios autônomos e paralelos, de mil árvores vizinhas umas das outras. A unidade do fenômeno "combustão", exercendo-se sobre a unidade viva que é a floresta, e a circunstância de que a grande força de expansão das chamas resulta de um calor no qual se fundem e se multiplicam as incontáveis chamas das diversas árvores, tudo, enfim, contribui para que o incêndio da floresta seja um fato único, englobando numa realidade total os mil incêndios parciais, por mais diferentes, aliás, que cada um destes seja em seus acidentes.
A Cristandade ocidental constituiu um só todo, que transcendia os vários países cristãos, sem os absorver. Nessa unidade viva se operou uma crise que acabou por atingi-la toda inteira, pelo calor somado e, mais do que isto, fundido, das sempre mais numerosas crises locais que há séculos se vêm interpenetrando e se somando ininterruptamente. Em conseqüência, a Cristandade, enquanto família de Estados oficialmente católicos, de há muito cessou de existir. Dela restam como vestígios os povos ocidentais e cristãos. E todos se encontram presentemente em agonia, sob a ação deste mesmo mal.
Nos últimos anos é mais fácil observar isso, que já acontece há séculos. As campanhas mundiais em favor do do sexo livre, contra qualquer relação de causa e efeito entre sexualidade, união estável de vida e reprodução humana, contra a família, a favor do homossexualismo, do aborto, da eutanásia, da liberação e aceitação do uso cotidiano de entorpecentes são sinais claríssimos de um mundo que vai caminhando para a tristeza e o mal.

3. É TOTAL: Considerada em um dado país, essa crise se desenvolve numa zona de problemas tão profunda, que ela se prolonga ou se desdobra, pela própria ordem das coisas, em todas as potências da alma, em todos os campos da cultura, em todos os domínios, enfim, da ação do homem.

4. É DOMINANTE: Encarados superficialmente, os acontecimentos dos nossos dias parecem um emaranhado caótico e inextricável, e de fato o são de muitos pontos de vista.
Entretanto, podem-se discernir resultantes, profundamente coerentes e vigorosas, da conjunção de tantas forças desvairadas, desde que estas sejam consideradas do ângulo da grande crise de que tratamos.
Com efeito, ao impulso dessas forças em delírio, as nações ocidentais vão sendo gradualmente impelidas para um estado de coisas que se vai delineando igual em todas elas, e diametralmente oposto à civilização cristã.
De onde se vê que essa crise é como uma rainha a que todas as forças do caos servem como instrumentos eficientes e dóceis.

5. É PROCESSIVA: Essa crise não é um fato espetacular e isolado. Ela constitui, pelo contrário, um processo crítico já cinco vezes secular, um longo sistema de causas e efeitos que, tendo nascido, em momento dado, com grande intensidade, nas zonas mais profundas da alma e da cultura do homem ocidental, vem produzindo, desde o século XV até nossos dias, sucessivas convulsões. A este processo bem se podem aplicar as palavras de Pio XII a respeito de um sutil e misterioso "inimigo" da Igreja: "Ele se encontra em todo lugar e no meio de todos: sabe ser violento e astuto. Nestes últimos séculos tentou realizar a desagregação intelectual, moral, social, da unidade no organismo misterioso de Cristo. Ele quis a natureza sem a graça, a razão sem a fé; a liberdade sem a autoridade; às vezes a autoridade sem a liberdade. É um "inimigo" que se tornou cada vez mais concreto, com uma ausência de escrúpulos que ainda surpreende: Cristo sim, a Igreja não! Depois: Deus sim, Cristo não! Finalmente o grito ímpio: Deus está morto; e, até, Deus jamais existiu. E eis, agora, a tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre bases que não hesitamos em indicar como principais responsáveis pela ameaça que pesa sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um Direito sem Deus, uma política sem Deus" (Alocução à União dos Homens da Ação Católica Italiana, de 12-X-1952 — "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XIV, p. 359).
Este processo não deve ser visto como uma seqüência toda fortuita de causas e efeitos, que se foram sucedendo de modo inesperado. Já em seu início possuía esta crise as energias necessárias para reduzir a atos todas as suas potencialidades, que em nossos dias conserva bastante vivas para causar por meio de supremas convulsões as destruições últimas que são seu termo lógico.
Influenciada e condicionada em sentidos diversos, por fatores extrínsecos de toda ordem — culturais, sociais, econômicos, étnicos, geográficos e outros — e seguindo por vezes caminhos bem sinuosos, vai ela no entanto progredindo incessantemente para seu trágico fim.
Capítulo VI - Formação e Dissolução de uma civilização relativamente cristã
O Cristianismo se difundiu no Ocidente e Oriente próximo na unidade política gerada pelo Império Romano. Embora fosse uma sociedade pagã e politeísta, também escravagista, e com muitos outros elementos morais negativos, como organização social e política era um dos vértices máximos até então atingidos pela humanidade. A herança da filosofia grega foi herdada em seus melhores valores pelo espírito romano. As virtudes pregadas pela ética grega encaixaram-se bastante bem no espírito romano, cujo caráter militar acolheu bem a austeridade e a ponderação características do pensamento grego. Como mostra Santo Agostinho, em “A Cidade de Deus”, estas foram as causas do crescimento do Império e da Civilização romanas. A virtude trouxe a força. Com a força veio o domínio sobre outros povos e, com isso, a prosperidade. A prosperidade e o poder, porém, ao longo das sucessivas gerações, traz o relaxamento moral, pela fraqueza da carne humana, escrava dos prazeres, e daí veio a gradual queda do Império Romano. Com a corrupção moral interna do Império veio a sua conseqüente fragmentação política. E os povos externos ao império, vindos do Oriente ou do Norte da Europa, chamados de ‘bárbaros’, com um nível cultural sensivelmente inferior ao dos romanos e dos povos integrados no Império, o invadiram. No Ocidente, pelo fim do IV século, caiu o Império Romano. No Oriente, permaneceu com um poder lentamente decrescente, em geral, até a sua queda definitiva, em 1453, quando os turcos muçulmanos apossaram-se de Constantinopla.
Com a invasão dos bárbaros, perdeu-se a unidade política e a ordem institucional. Com o tempo, foi-se formando uma ‘ordem’ de sobrevivência, em unidades muito menores, chamadas feudos. Os feudos formaram-se como resposta às ameaças à vida e a impossibilidade de sonhos de grandeza. Formaram-se como pequenas sociedades orgânicas, onde cada um tinha o seu papel numa hierarquia natural. O mais forte cuidava da defesa e isso deu origem à nobreza medieval. Os outros cuidavam da produção, seja agrícola como artesanal. O feudo funcionava como um corpo onde cada um tem o seu papel para o bem do conjunto, o bem comum. E, em geral cada um aceitava o seu papel, sem o domínio de ambições pessoais acentuadas. Acrescente-se a isso o papel evangelizador das ordens monásticas, especialmente a de São Bento, com seu exemplo de ‘ora et labora’ formando no mosteiro uma perfeita sociedade de irmãos e pregando ao povo. A insegurança gerada pela ausência de um forte poder central e a ausência de riqueza em quantidade excessiva levaram os homens, somados à pregação do Evangelho e à presença forte na cultura então formada de Deus e do destino eterno que Ele preparou para os homens, levou, nessa época, à aceitação do diferente papel social de cada um, numa igual dignidade humana, de filhos de Deus.
A sociedade feudal era uma sociedade eminentemente rural. A necessidade de sobrevivência e defesa dos feudos, no início levou a uma bastante grande dispersão, de forma que a comunicação do feudo com o mundo exterior era relativamente pequena. Com o tempo e o trabalho virtuoso, as coisas tendem a estabilizar-se e o processo natural é que a comunicação vá crescendo. Foi o que aconteceu. Um processo de integração dos feudos gerando relações unificadoras, ainda em relações hierárquicas, em que os feudatários se relacionavam como vassalos e suseranos, e o suserano principal era o rei. Os feudos, no entanto, tinham uma bastante grande autonomia. O rei, em geral, não tinha nem poder, nem meios técnicos para comandar tiranicamente todos os feudos. Um exemplo disso é que a Alemanha, centro do Sacro Império, só foi unificada como país no século XIX. E a Suíça, até hoje, é uma federação bastante livre de cantões, feudos suíços.
Com a estabilização da civilização medieval, ao longo do tempo, a comunicação foi aumentando e o contato com os povos do Oriente cresceu. Apareceu, com isso, possibilidades anteriormente impossíveis. Inovações em muitos campos, desde a culinária às artes manuais, tecidos etc… Uma série de possibilidades que faziam a vida mais ‘gostosa’. Foi crescendo o espaço de uma atividade pouco presente no começo da civilização feudal: o comércio. Com o comércio, foi crescendo a importância do sistema monetário, e com isso, apareceram os bancos e os banqueiros. E com eles a usura e a acumulação de riqueza. A riqueza acumulada gerou a concentração de poder. A vida foi ficando menos rural e progressivamente se deslocando para as cidades. Daí os comerciantes e banqueiros serem chamados de ‘burgueses’ (burgo=cidade). As possibilidades novas abertas pelo comércio tinham sua força nas fraquezas da carne, no gosto pelo ‘agradável’, ‘gostoso’, visualmente ‘belo’, ou seja tinham sua força no íntimo da alma do homem. O crescente poder dos banqueiros e comerciantes quebra a unidade moral, pois se baseava numa prática considerada imoral que era a cobrança de juros segundo as possibilidades do mercado e não segundo o bem das pessoas. A prosperidade, mais uma vez fez esquecer o bem das pessoas e a solidariedade e o lucro se tornou um fim em si mesmo. Isso gerou um constante atrito entre o mundo da atividade laboral humana, que foi sendo marcado pelo comércio, e o mundo do espírito, entre a vida prática e a vida de fé. A sedução dos confortos vai predominar, historicamente.
No século XIV começa a observar-se, na Europa cristã, uma transformação de mentalidade que ao longo do século XV cresce cada vez mais em nitidez. O apetite dos prazeres terrenos se vai tornando em ânsia. As diversões se vão tornando mais freqüentes e mais suntuosas. Os homens se preocupam sempre mais com elas. Nos trajes, nas maneiras, na linguagem, na literatura e na arte o anelo crescente por uma vida cheia de deleites da fantasia e dos sentidos vai produzindo progressivas manifestações de sensualidade e moleza. Há um paulatino deperecimento da seriedade e da austeridade dos antigos tempos. Tudo tende ao risonho, ao gracioso, ao festivo. Os corações se desprendem gradualmente do amor ao sacrifício, da verdadeira devoção à Cruz, e das aspirações de santidade e vida eterna. A Cavalaria, outrora uma das mais altas expressões da austeridade cristã se torna amorosa e sentimental, a literatura de amor lascivo invade todos os países, os excessos do luxo e a conseqüente avidez de lucros se estendem por todas as classes sociais.
Tal clima moral, penetrando nas esferas intelectuais, produziu claras manifestações de orgulho, como o gosto pelas disputas aparatosas e vazias, pelas argúcias inconsistentes, pelas exibições fátuas de erudição, e lisonjeou velhas tendências filosóficas, das quais triunfara a Escolástica, e que já agora, relaxado o antigo zelo pela integridade da Fé, renasciam em aspectos novos. O absolutismo dos legistas, que se engalanavam com um conhecimento vaidoso do Direito Romano, encontrou em Príncipes ambiciosos um eco favorável. E “pari passu” foi-se extinguindo nos grandes e nos pequenos a fibra de outrora para conter o poder real nos legítimos limites vigentes nos dias de São Luís de França e São Fernando de Castela.

A. A Pseudo-Reforma e a Renascença

Este novo estado de alma continha um desejo possante, se bem que mais ou menos inconfessado, de uma ordem de coisas fundamentalmente diversa da que chegara a seu apogeu nos séculos XII e XIII.
A admiração exagerada, e não raro delirante, pelo mundo antigo, serviu como meio de expressão a esse desejo. Procurando muitas vezes não colidir de frente com a velha tradição medieval, o Humanismo e a Renascença tenderam a relegar a Igreja, o sobrenatural, os valores morais da Religião, a um segundo plano. O tipo humano, inspirado nos moralistas pagãos, que aqueles movimentos introduziram como ideal na Europa, bem como a cultura e a civilização coerentes com este tipo humano, já eram os legítimos precursores do homem ganancioso, sensual, laico e pragmático de nossos dias, da cultura e da civilização materialistas em que cada vez mais vamos imergindo. Os esforços por uma Renascença cristã não lograram esmagar em seu germe os fatores de que resultou o triunfo paulatino do neopaganismo.
Em algumas partes da Europa, este se desenvolveu sem levar à apostasia formal. Importantes resistências se lhe opuseram. E mesmo quando ele se instalava nas almas, não lhes ousava pedir — de início pelo menos — uma formal ruptura com a Fé.
Mas em outros países ele investiu às escâncaras contra a Igreja. O orgulho e a sensualidade, em cuja satisfação está o prazer da vida pagã, suscitaram o protestantismo e o humanismo.
O orgulho deu origem ao espírito de dúvida, ao livre exame, à interpretação naturalista da Escritura. Produziu ele a insurreição contra a autoridade eclesiástica, expressa em todas as seitas pela negação do caráter monárquico da Igreja Universal, isto é, pela revolta contra o Papado. Algumas, mais radicais, negaram também o que se poderia chamar a alta aristocracia da Igreja, ou seja, os Bispos, seus Príncipes. Outras ainda negaram o próprio sacerdócio hierárquico, reduzindo-o a mera delegação do povo, único detentor verdadeiro do poder sacerdotal.
No plano moral, o triunfo da sensualidade no protestantismo se afirmou pela supressão do celibato eclesiástico e pela introdução do divórcio.
No plano político, o verdadeiro poder foi sendo transferido dos feudatários para os burgueses. Este financiavam os reis e isso levou a uma concentração do poder político nas mãos dos reis, sob o poder econômico dos burgueses, e mantidos por esses, segundo os seus interesses. Surgiu assim, no século XVI, o absolutismo, ausente nos tempos medievais. Este levará à exploração dos pobres e a uma sociedade de luxos e desperdícios, que provocará a revolta popular contra os reis. Esta revolta, porém, também estará no plano dos banqueiros, agora já bastante mais ricos do que na Idade Média, devido também às grandes navegações, financiadas por eles, às riquezas vindas das Américas e do Extremo Oriente.
O protestantismo aconteceu como uma adaptação do cristianismo aos interesses da classe burguesa.
a) trazia uma idéia de salvação por uma ‘fé’ em Jesus Cristo, que não levava necessariamente à escolha uma porta estreita, da Cruz e da renúncia, mas a simples admissão intelectual dos títulos de Jesus Cristo, como Salvador e Filho de Deus. A acumulação da riqueza era considerada um sinal da predileção divina, contra os ensinamentos do Evangelho, mas de acordo com João Calvino.
b) negava a unidade entre as pessoas, e a intercessão pela participação de todos num só corpo - fundamento teológico da sociedade orgânica feudal - e afirmava o individualismo, cada um se salvando pela aceitação individual da ‘fé’ intelectual, apenas.
É famosa a tese do sociólogo alemão Max Weber que associa, por isso, o desenvolvimento econômico maior das nações de maioria protestante à ética protestante.
Com a queda dos reis absolutos, cujo símbolo foi a decapitação do rei Carlos I, da Inglaterra, no século XVII, e do rei Luís XVI, da França, no fim do século XVIII, estabelece-se um poder que supostamente vem do povo, representado nos seus magistrados, mas que na verdade tem por trás os banqueiros que financiam as carreiras desses mesmos ‘eleitos pelo povo’.
Cabe notar que a filosofia foi acompanhando o estado de espírito gerado pela inclinação a cada momento. No século XIV, com o comércio já bastante desenvolvido e para minar as bases metafísicas que deslegitimavam a atividade banqueira, surge o nominalismo, do qual um frade (!), Gulherme de Ockam é o principal representante. Mais tarde, no século XVI, aparecerá um René Descartes para instalar o espírito de dúvida, que abre possibilidade de justificação para as práticas mais absurdas, colocando as verdades em dúvida e transformando tudo em opinião. O racionalismo, atribuindo toda a fonte do conhecimento à a razão pura, baseada só nos dados dos sentidos, levará a desconfiar da própria razão e a não ter certezas. Isso gerará a filosofia predominante no tempo contemporâneo que é o agnosticismo, a afirmação desconhecimento da essência das coisas e , por isso, o existencialismo. No tempo do absolutismo, no século XVII, aparecerá um Thomas Hobbes para legitimá-lo. Depois, no século XVIII, um Rousseau para ir contra o absolutismo, com uma nova e mais profunda afirmação do orgulho do homem.

B. A Revolução Francesa

A ação profunda do humanismo renascentista, com seus traços neopagãos, entre os católicos não cessou de se dilatar numa crescente cadeia de conseqüências. Favorecida pelo enfraquecimento da piedade dos fiéis —ocasionado pelo jansenismo e pelos outros fermentos que o protestantismo do século XVI desgraçadamente deixara na antiga Europa cristã — tal ação teve por efeito no século XVIII uma dissolução quase geral dos costumes, um modo frívolo e brilhante de considerar as coisas, um endeusamento da vida terrena, que preparou o campo para a vitória gradual da irreligião. Dúvidas em relação à Igreja, negação da divindade de Cristo, deísmo, ateísmo incipiente foram as etapas dessa apostasia.
Profundamente afim com o protestantismo, herdeira dele e do neopaganismo renascentista, a Revolução Francesa realizou uma obra de todo em todo simétrica à da Pseudo-Reforma. A Igreja Constitucional que ela, antes de naufragar no deísmo e no ateísmo, tentou fundar, era uma adaptação da Igreja da França ao espírito do protestantismo. E a obra política da Revolução Francesa não foi senão a transposição, para o âmbito do Estado, da "reforma" que as seitas protestantes mais radicais adotaram em matéria de organização eclesiástica:

— Revolta contra o Rei, simétrica à revolta contra o Papa;
— Revolta da plebe contra os nobres, simétrica à revolta da "plebe" eclesiástica, isto é, dos fiéis, contra a "aristocracia" da Igreja, isto é, o Clero;
— Afirmação da soberania popular, simétrica ao governo de certas seitas, em medida maior ou menor, pelos fiéis.

No final da Idade Média, a ascendente classe burguesa aliou-se aos reis contra os feudatários, enfraquecendo a nobreza e concentrando o poder nas mãos dos reis. Com a Revolução Francesa, os reis é que são abatidos. Logo após a Revolução na França, que passara por tantas tribulações, pelo Terror, subitamente, a mesma França, que no período dos reis estava sempre em conflitos contra a Áustria ou outros países, sem encontrar muita facilidade, sob o comando de Napoleão Bonaparte conquista praticamente a Europa inteira, destrona reis e coloca em seus lugares reis-fantoches que são os parentes de Napoleão. Como pode isso acontecer? Só se explica pela estratégia da burguesia de se livrar dos reis e aceder de uma forma mais direta ao poder. Caem então as monarquias, as legislações vão se tornando liberais, segundo os princípios já expostos acima e pululam as repúblicas ou monarquias parlamentares. Os representantes do povo “do qual emana todo poder” (comparar com Jo 19,11) são mais facilmente trocados do que os reis e, para acederem ao poder não tem mais o apoio do sangue, como na aristocracia, e são, por isso, mais dependentes do dinheiro. E quem o tem são os burgueses, banqueiros, industriais, grandes empresários. Com o novo estado de coisas, o poder fica mais absolutamente dependente do dinheiro e não há mais vestígio dos elementos de coragem e nobreza, que na situação precária da formação feudal, gerou as famílias nobres, perpetuadas também pela trtadição e raízes, passadas de geração em geração. O poder é só a força econômica, impera o materialismo, e os elementos espirituais que faziam um homem aceitar o governo de outro estarão deformados pela propaganda burguesa - a imagem formada artificialmente - e pela demagogia (cf. Mt 4,8-9; 6,24).

C. O Comunismo

No protestantismo nasceram algumas seitas que, transpondo diretamente suas tendências religiosas para o campo político, prepararam o advento do espírito republicano. São Francisco de Sales, no século XVII, premuniu contra estas tendências republicanas o Duque de Sabóia (cfr. Sainte-Beuve, "Études des lundis — XVIIème siècle — Saint François de Sales", Librairie Garnier, Paris, 1928, p. 364). Outras, indo mais longe, adotaram princípios que, se não se chamarem comunistas em todo o sentido hodierno do termo, são pelo menos pré-comunistas.
Da Revolução Francesa nasceu o movimento comunista de Babeuf. E mais tarde, do espírito cada vez mais vivaz da Revolução, irromperam as escolas do comunismo utópico do século XIX e o comunismo dito científico de Marx.
E o que de mais lógico? O deísmo tem como fruto normal o ateísmo. A sensualidade, revoltada contra os frágeis obstáculos do divórcio, tende por si mesma ao amor livre. O orgulho, inimigo de toda superioridade, haveria de insistir contra todas as desigualdades, e a desigualdade acentuada pela ascensão da burguesia, era a desigualdade de fortunas. Aparentemente, pois, a revolução comunista vai contra a burguesia. A nível local até pode-se admitir a destruição da classe burguesa, com a criação de uma nova classe privilegiada, a que controla o Estado comunista, como se viu na União Soviética. Mas não a nível mundial. A burguesia passou a uma nova fase, que não se trata mais apenas de acumular fortuna, mas de um verdadeiro governo ditatorial mundial, em que tudo é planejado segundo os interesses da burguesia. Vem daí o controle populacional, a esterilização de milhares de pessoas, as propagandas pró-aborto, e tudo o que exacerba a escravidão das pessoas aos apetites da carne, a fim de impedir as manifestações do espírito, que clamam pala liberdade, como é a oferta desenfreada de pornografia, de drogas e entretenimentos que não favorecem o pensar e o criar humanos e o barulho, o roc‘n‘roll, melhor, o heavy metal. Repare que o pentecostalismo, forma mais moderna de protestantismo apela abundantemente para os ambientes barulhentos e despersonalizantes, desfavorecendo o pensamento e a reflexão, que levam às convicções verdadeiras do espírito, e escravizando muitos pela emoção carnal.
O comunismo real sempre esteve sob o controle da elite burguesa mundial e serve aos seus propósitos ditatoriais. Um pequeno exemplo se vê como são iguais, a direita liberal e a esquerda atuais, na ação contra a moral católica, destruindo a família, incentivando o aborto, o homossexualismo, o sexo liberado, o controle populacional etc. como elencado acima.
Capítulo VII - A Revolução Burguesa Industrial e Tecnológica
Além e simultaneamente com as revoluções protestante, iluminista e comunista, ocorreu uma outra revolução, que talvez, mais ainda que estas que vimos acima penetrou na alma humana. Trata-se da revolução realizada pelo enorme avanço científico acontecido a partir do século XVI e suas conseqüências tecnológicas e culturais.
A filosofia medieval partia de um princípio dedutivo, até certo tempo contemplativo, que levava à sabedoria pela contemplação das causas naturais. Os princípios indutivos do racionalismo empirista sugeridos por René Descartes e Francis Bacon levaram ao experimentalismo, ao empirismo e à elaboração do método científico. O pensador não mais contemplava a natureza para compreender as coisas, mas intervinha nela com experiências, para, a partir delas,e elaborar hipóteses e testá-las, num conhecimento indutivo, partindo do particular para o geral, ao contrário do método filosófico medieval.
Desenvolveu-se, assim, enormemente, o conhecimento positivo das leis físicas e químicas da matéria. O uso prático desses conhecimentos levou a inventos e inovações antes inimagináveis. Do método científico aplicado às coisas inanimadas passou-se logo ao corpo humano, à mente humana e mesmo à sociedade e à cultura humanas, desenvolvendo além das ciências físicas e químicas, a anatomia, a patologia, a cirurgia, a psicologia, a sociologia todas as ciências humanas. Isso contribuiu muito para uma visão mecanicista do ser humano, que limitou a sua compreensão aos limites do método científico. Ensinou, porém, de muitas maneiras, a estimular a pessoa humana aos resultados que dela se quiserem alcançar, facilitando a manipulação da pessoa por quem detenha os elementos do poder para tal.
Os experimentos sobre a matéria levaram ao acesso a energias então não disponíveis pelo ser humano. Há trezentos anos, basicamente a energia para todos os trabalhos era praticamente animal, a força física do homem e do animal. Um pouco de uso de energia eólica, nos moinhos de vento, nas embarcações, e de energia fluvial em alguns outros moinhos de rodas de pá movidas pela correnteza de algum rio e só. A partir da máquina a vapor, criou-se o motor de combustão interna, aprendeu-se a converter diversas energias cinéticas da natureza em energia elétrica e a utilizá-la para fins práticos. Descobriu-se e utilizou-se a energia nuclear dos átomos. Isto levou a humanidade a um poder sobre a natureza e a um conforto antes impensável. O frio e o calor foram combatidos e alcançou-se artificialmente uma temperatura mais amena. As distâncias passaram a ser percorridas em tempos mínimos e sem grande esforço, seja na terra, no mar e até através do ar. As subidas cansativas tornaram-se mais fáceis com as novas energias e as edificações, que não passavam de três andares, quando muito, passaram até dos cem. A descoberta do mundo microscópico ajudou a descobrir a cura de doenças sobre as quais antes o homem nenhum poder tinha. Aumentou a média de vida das populações. Muitos remédios e mais conforto, vitória sobre a dor e as doenças. A riquíssima natureza ofertada pelo Criador para o bem do homem mostrou-se ainda mais generosa. Descobriu-se que se podia fixar imagens instantaneamente, sem o penoso e exigente talento da pintura e do desenho, mas através dos raios luminosos com a fotografia e até ver o interior dos corpos, com os raios-X. Se a fotografia multiplicou infinitamente a comunicação das imagens, o cinema multiplicou o poder do teatro para a transmissão de idéias e concepções de vida. As telecomunicações tornaram o mundo pequeno, uma aldeia global, na famosa expressão de McLuhan. Com as telecomunicações aumentou a capacidade de todo poder político. Com a tecnologia digital, isto alcançou um patamar ainda muito maior. O cinema, a televisão, a comunicação de massa, em geral, aliada aos conhecimentos psicológicos tornaram-se uma fortíssima máquina de domínio sobre as massas populacionais, usadas inteligentemente pela burguesia e demais detentores do poder.
A transformação do mundo pelas novas energias mudou o homem. Passou de rural a cosmopolita, a vida, em todos os campos tornou-se mais artificial, o homem distanciou-se cada vez mais da natureza.
“Nesse novo estado, com uma vida simples e solitária, necessidades muito limitadas e os instrumentos que haviam inventado para provê-las, os homens, gozando de muito tempo de lazer, empregaram-no em procurar várias espécies de comodidades desconhecidas de seus pais. E foi esse o primeiro jugo que se impuseram sem pensar e a primeira fonte de males que prepararam para seus descendentes porque, além de continuarem assim a amolecer o corpo e o espírito, tendo essas comodidades com o tempo perdido quase todo o seu encanto e, ao mesmo tempo, tendo degenerado em verdadeiras necessidades, a privação delas se tornou muito mais cruel de quanto sua posse havia sido prazerosa. E tornaram-se infelizes ao perdê-las, sem ficarem felizes ao possuí-las” ( Rousseau, Jean-Jacques, A Origem da Desigualdade entre os Homens, Escala São Paulo 2006, Segunda Parte, p. 61). Parece-nos que esse parágrafo de Rousseau pode aplicar-se perfeitamente às comodidades da vida moderna, que vão se tornando necessidades, atrelando a pessoa humana no círculo vicioso do consumo, por crescente inadaptação à natureza. Não suporta mais o tempo, não suporta mais o sabor natural dos alimentos, tudo lhe faz mal, é perigoso, ou ele assim acha, e, para adquirir os bens de que se sente irremediavelmente necessitado precisa de dinheiro, pois estes bens são todos artificiais, fabricados pelos burgueses em vista de lucro. A vida do homem passa então a girar em torno do dinheiro. Trabalha – ou se serve de outros expedientes – para ganhá-lo e depois, a sua vida é gastá-lo para consumir. A sua tentação de conforto o tornou escravo dessa roda-viva. Todas as atividades passam paulatinamente a uma visão burguesa. Tudo praticamente é questão de investimento para recolher um lucro maior. A saúde e a educação, atividades ligadas ao bem da pessoa, até estas, não são mais praticadas apenas para o bem da pessoa. O fruto primeiro é o lucro do investimento. A ditadura da burguesia parece consolidada. A raiz está na alma do homem, escravizado às facilidades da sua carne.
Esta moleza do homem inadaptado à natureza, descrita por Rousseau, escravizado às artificialidades que o anestesiam é, certamente uma das razões mais fortes que explicam porque o homem de hoje é um grande consumidor de entorpecentes e o comércio de drogas encontra um enorme mercado consumidor. Aqui também funciona a bola-de-neve: quanto mais se consome, mais se sente obrigado a consumir, numa escravidão sem saída.
Essa revolução não está desvinculada de ligação com as outras. Um traço que as une é a perda do sentido de unidade do gênero humano e de cada comunidade humana, em que cada pessoa ou grupo é um órgão que devia funcionar em conjunto com os outros, tendo o todo como um corpo e as partes como órgãos que funcionam para o bem do corpo. Com essa perda vem o individualismo e o descompromisso com o conjunto. No protestantismo, isto vem com a certeza de que a iluminação do Espírito Santo, no livre-exame, se dá a cada um, sem recurso ao magistério da Igreja. No iluminismo, a afirmação da liberdade individual corrói o princípio social. No comunismo, não há órgãos sociais, mas todos são iguais, não deve haver diferenciações, os intelectuais eram obrigados a trabalhos de operários seja em Cuba, na URSS e na China. E o órgão celular da sociedade, que é a família é atacado como uma estrutura opressiva. Na revolução burguesa consumista, o interesse também é sempre individual, pois é o indivíduo que goza os confortos. Embora não ataque dogmaticamente a família e os grupos sociais, como o comunismo, tem a mesma conseqüência prática, por que induz aos sentimentos carnais mais egoístas e vai, progressivamente corroendo todas as instituições.
Este aspecto é o mais trágico de todos no processo, que denominaremos revolucionário, de afastamento dos homens de uma vivência cultural cristã, isto é, de uma civilização cristã. Deveríamos ser contra o progresso científico e tecnológico? A resposta negativa vai contra a inteligência do homem e a sua vocação, pela semelhança divina, para o infinito. Fica evidente, então, que sem uma estrutura espiritual, sem uma libertação da escravidão da carne em grande escala na sociedade, ou seja, sem uma cultura espiritual, até os mais nobres frutos da inteligência humana e os dons que o Criador lhe disponibilizou na natureza acabam concorrendo para a sua destruição.

Tendo examinado as revoluções provocadas pelo nominalismo - a revolução protestante -, pelo iluminismo - a revolução francesa -, a provocada pelo idealismo - a revolução comunista ou marxista, e aquela produzida pela união do conhecimento científico com o sistema comercial burguês, e compreendendo-as como passos de um único processo continuado através dos séculos, de paulatina absorção de valores e concepções opostas às concepções cristãs, referir-nos-emos a esse processo doravante como ‘revolução’ ou ‘processo revolucionário’ e às ações em sentido contrário como ‘contra-revolução’ ou ‘processo contra-revolucionário’. Mesmo que nem sempre essa seja uma linguagem precisa, a adotaremos por simplicidade. É dentro desse contexto que se situam todas as ‘questões atuais de moral’. Esse contexto não pode ficar esquecido.
Capítulo VIII - A doutrina católica entre monarquia e república
A fim de evitar qualquer equívoco, convém acentuar que esta exposição não contém a afirmação de que a república é um regime político necessariamente anti-católico. Leão XIII (Encíclica "Au Milieu des Solicitudes", de 16-II-1892, Bonne Presse, Paris, vol. III, p. 116) deixou claro, ao falar das diversas formas de governo, que "cada uma delas é boa, desde que saiba caminhar retamente para seu fim, a saber, o bem comum, para o qual a autoridade social é constituída".
Taxamos de revolucionária, isto sim, a hostilidade professada, por princípio, contra a monarquia e a aristocracia, como sendo formas essencialmente incompatíveis com a dignidade humana e a ordem normal das coisas. É o erro condenado por São Pio X na Carta Apostólica "Notre Charge Apostolique", de 25 de agosto de 1910. Nela censura o grande e santo Pontífice a tese do "Sillon", de que "só a democracia inaugurará o reino da perfeita justiça", e exclama: "Não é isto uma injúria às outras formas de governo, que são rebaixadas, por esse modo, à categoria de governos impotentes, aceitáveis à falta de melhor?" (A.A.S., vol. II, p. 618).
Ora, sem este erro, inviscerado no processo de que falamos, não se explica inteiramente que a monarquia, qualificada pelo Papa Pio VI como sendo em tese a melhor forma de governo —”praestantioris monarchici regiminis forma”— (Alocução ao Consistório, de 17-VI-1793, "Les Enseignements Pontificaux — La paix intérieure des Nations — par les moines de Solesmes", Desclée & Cie., p. 8), tenha sido objeto, nos séculos XIX e XX, de um movimento mundial de hostilidade que deu por terra com os tronos e as dinastias mais veneráveis. A produção em série de repúblicas para o mundo inteiro é, a nosso ver, um fruto típico do pensamento moderno, e um aspecto capital do modernismo.
Não pode ser taxado de revolucionário quem para sua Pátria, por razões concretas e locais, ressalvados sempre os direitos da autoridade legítima, prefere a democracia à aristocracia ou à monarquia. Mas sim quem, levado pelo espírito igualitário da mentalidade neopagã, odeia em princípio, e qualifica de injusta ou inumana por essência, a aristocracia ou a monarquia.
Desse ódio antimonárquico e antiaristocrático, nascem as democracias demagógicas, que combatem a tradição, promove como elites pessoas sem nenhuma nobreza moral, degradam o “tônus” geral da vida, e criam um ambiente de vulgaridade que constitui como que a nota dominante da cultura e da civilização atuais,... se é que os conceitos de civilização e de cultura se podem realizar em tais condições. Muitas das democracias atuais fariam corar de vergonha democratas de alto nível moral como George Washington, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson ou Abraham Lincoln, ou ainda, para citar alguns mais recentes Konrad Adenauer, Alcide de Gasperi ou Robert Schuman, os pais da Europa pós-segunda guerra mundial.
Como diverge desta democracia revolucionária a democracia descrita por Pio XII: "Segundo o testemunho da História, onde reina uma verdadeira democracia, a vida do povo está como que impregnada de sãs tradições, que é ilícito abater. Representantes dessas tradições são, antes de tudo, as classes dirigentes, ou seja, os grupos de homens e mulheres ou as associações, que dão, como se costuma dizer, o tom na aldeia e na cidade, na região e no país inteiro.
"Daqui, em todos os povos civilizados, a existência e o influxo de instituições eminentemente aristocráticas, no sentido mais elevado da palavra, como são algumas academias de larga e bem merecida fama. Pertence a este número também a nobreza" (Alocução ao Patriciado e à Nobreza Romana, de 16-I-1946, "Discorsi e Radiomessaggi", vol. VII, p. 340).
Como se vê, o espírito da democracia revolucionária é bem diverso daquele que deve animar uma democracia conforme a doutrina da Igreja. Mesmo na forma democrática é preciso haver um espírito de nobreza, de desprendimento de si e responsabilidade pelo bem comum. Acontece que a mentalidade que leva à rejeição de qualquer aristocracia e pensa igualitariamente tem uma raiz individualista - oposta à responsabilidade pelo outro - e tende a nivelar por baixo o comportamento social. Não é a estrutura política, monárquica, aristocrática ou democrática que realiza a justiça e a moral, mas o espírito que anima os homens que vivem nessas estruturas. Se é de revolta, de ambição e sede de poder, ou de crença em alguma ideologia que propõe a justiça pela força e pela conquista, teremos injustiça e opressão. Se, porém, o espírito que anima os homens for de sacrifício pessoal, de desinteresse pessoal e busca sincera do bem comum, colocando-se sob um julgamento transcendente, numa palavra, temendo a Deus, teremos o Bem.
Capítulo IX - O pensamento católico e a ditadura
As presentes considerações sobre a posição da revolução moderna e do pensamento católico em face das formas de governo suscitarão em vários leitores uma interrogação: o pensamento católico admite a ditadura ou não?
Para responder com clareza a uma pergunta a que têm sido dadas tantas soluções confusas e até tendenciosas, é necessário estabelecer uma distinção entre certos elementos que se emaranham desordenadamente na idéia de ditadura, como a opinião pública a conceitua. Confundindo a ditadura em tese com o que ela tem sido “in concreto” em nosso século, o público entende por ditadura um estado de coisas em que um chefe dotado de poderes irrestritos governa um país. Para o bem deste, dizem uns. Para o mal, dizem outros. Mas em um e outro caso, tal estado de coisas é sempre uma ditadura.
Ora, este conceito envolve dois elementos distintos:
— onipotência do Estado;
— concentração do poder estatal em uma só pessoa.
No espírito público, parece que o segundo elemento chama mais a atenção. Entretanto, o elemento básico é o primeiro, pelo menos se entendermos por ditadura um estado de coisas em que o Poder público, suspensa qualquer ordem jurídica, dispõe a seu talante de todos os direitos. Que uma ditadura possa ser exercida por um rei (a ditadura real, isto é, a suspensão de toda a ordem jurídica e o exercício irrestrito do poder público pelo rei, não se confunde com o “Ancien Régime” do período absolutista, em que estas garantias existiam em considerável medida, e muito menos com a monarquia orgânica medieval) ou um chefe popular, uma aristocracia hereditária ou um clã de banqueiros, ou até pela massa, é inteiramente evidente.
Em si, uma ditadura exercida por um chefe ou um grupo de pessoas não é moral nem imoral. Ela será uma ou outra coisa em função das circunstâncias de que se originou, e da obra que realizar. O importante é que proporcione a justiça e o ambiente para que os bons possam produzir o bem social, o que só pode acontecer se este valor espiritual estiver, na alma do governante, em lugar mais alto do que os interesses materiais. E isto, quer esteja em mãos de um homem, quer de um grupo.
Há circunstâncias que exigem, para a “salus populi”, uma suspensão provisória de todos os direitos individuais, e o exercício mais amplo do poder público. A ditadura pode, portanto, ser legítima em certos casos.
Uma ditadura contra-revolucionária e, pois, inteiramente norteada pelo desejo de Ordem, deve apresentar três requisitos essenciais:
a) Deve suspender os direitos, não para subverter a Ordem, mas para a proteger. E por Ordem não entendemos apenas a tranqüilidade material, mas a disposição das coisas segundo seu fim, e de acordo com a respectiva escala de valores. Há, pois, uma suspensão de direitos mais aparente do que real, o sacrifício das garantias jurídicas de que os maus elementos abusavam em detrimento da própria ordem e do bem comum - vê-se isso com clareza no uso dos direitos humanos, mais para acobertar e defender criminosos do que suas vítimas - sacrifício este todo voltado para a proteção dos verdadeiros direitos dos bons.
b) Por definição, esta suspensão deve ser provisória, e deve preparar as circunstâncias para que o mais cedo possível se volte à ordem e à normalidade. A ditadura, na medida em que é boa, vai fazendo cessar sua própria razão de ser. A intervenção do Poder público nos vários setores da vida nacional deve fazer-se de maneira que, o mais breve possível, cada setor possa viver com a necessária autonomia. Assim, cada família deve poder fazer tudo aquilo de que por sua natureza é capaz, sendo apoiada apenas subsidiariamente por grupos sociais superiores naquilo que ultrapasse o seu âmbito. Esses grupos, por sua vez, só devem receber o apoio do município no que excede à normal capacidade deles, e assim por diante nas relações entre o município e a região, ou entre esta e o país.
c) O fim precípuo da ditadura legítima só poderia, verdadeiramente, ser a consecução do bem, e o bem é exatamente o que é propugnado pela doutrina católica, como a família, a defesa da vida etc. O que, aliás, não implica em afirmar que a ditadura seja normalmente um meio necessário para a derrota do pensamento anti-católico. Mas em certas circunstâncias pode ser.
Pelo contrário, a ditadura revolucionária visa eternizar-se, viola os direitos autênticos, e penetra em todas as esferas da sociedade para as aniquilar, desarticulando a vida de família, prejudicando as elites genuínas, subvertendo a hierarquia social, alienando de utopias e de aspirações desordenadas a multidão, extinguindo a vida real dos grupos sociais e sujeitando tudo ao Estado: em uma palavra, favorecendo a destruição das personalidades. Exemplo típico de tal ditadura foram o comunismo soviético e o hitlerismo.
Por isto, a ditadura revolucionária é fundamentalmente anti-católica. Com efeito, em um ambiente verdadeiramente católico, não pode haver clima para tal situação.
O que não quer dizer que a ditadura revolucionária, neste ou naquele país, não tenha procurado favorecer a Igreja. Mas trata-se de atitude meramente política - como a Concordata entre Napoleão e a Santa Sé -, que se transforma em perseguição franca ou velada, logo que a autoridade eclesiástica comece a deter o passo à revolução.
Capítulo X – A atual construção do governo mundial e o estabelecimento do reino do Anticristo.
Pode-se observar no mundo atual, já presentes, praticamente todos os elementos que levarão a um governo mundial do Anticristo. O primeiro elemento é que o capitalismo foi, desde a Idade Média até hoje, reforçado para ser cada vez mais centralizador de poder e está levando o mundo inteiro à dependência de um grupo pouco numeroso de famílias que controlam as grandes casas bancárias e grandes empresas, com um poder muito maior que os governos do mundo. As duas guerras mundiais do século XX reforçaram o poder dessas famílias. O governo mundial não é a dominação de um país sobre outros, mas a escravidão de todos os países, inclusive os Estados Unidos, à servidão de uma oligarquia econômica representada por poucas famílias. Aliás, os governos devem obedecer a essas famílias, a esse poder econômico, sob pena de caírem ou prejudicarem gravemente a economia de seus países. Em certos casos recorre-se mesmo ao braço armado, notadamente anglo-americano, com apoio de muitos outros países, como assistimos na invasão do Iraque, sob pretexto de luta contra o terrorismo, em busca de armas de destruição em massa, que nunca foram encontradas. Os governos se submetem com docilidade ao poder econômico desses verdadeiros “donos do mundo”. Estes têm uma ideologia antiga de poder e acham-se escolhidos por Deus para dominar o mundo. Essa oligarquia seria, em nossa projeção, o Anticristo.
Os métodos para alcançar esse domínio não respeitam nenhum padrão moral, mas são orientados somente pelo orgulho e pelo caráter secreto dessas ações, que, apesar disso, vão se tornando visíveis no mundo. Outro elemento importante é o uso da inteligência humana para planificar tudo em vista dessa dominação mundial, em vista de um verdadeiro governo mundial. Os processos globalizantes atuais, a nível tanto político como econômico e cultural, dos quais a unificação da Europa é um forte exemplo, são indícios da construção desse governo mundial. É interessante notar que tal processo é de cunho capitalista, mas esquerdas socialistas são também braços que realizam os mesmos passos que levarão a esse governo mundial. Quem acha que o socialismo é uma alternativa ao capitalismo mostra ingenuidade infantil, e não percebe que ambos os regimes são igualmente materialistas e trabalham juntos na mesma direção. Quem duvidar perceberá isso na continuação desta projeção.
Entre as estratégias para governar o mundo segundo a planificação da inteligência humana, está o controle populacional do mundo, especialmente dos países menos desenvolvidos economicamente, cujas terras, ricas em termos agrícolas e minerais são ambicionadas pela oligarquia. As populações dos países pobres são vítimas de campanhas de esterilização e aborto, financiadas pela oligarquia e atuadas por inúmeras ONGs, também com apoio financeiro a candidatos a cargos políticos que promovam leis nesse sentido. A oligarquia não quer que essas populações cresçam também para não consumir esses recursos, mas principalmente, para tendo uma população em crescimento zero, melhor planejar a economia mundial. Não quer também que esses países se desenvolvam, para não apresentar óbices à concentração de poder mundial, não desequilibrar a gangorra do poder mundial. Não lhe interessa também revoltas políticas, mas calma e paz. Uma estratégia de manter esses povos em sub-desenvolvimento é a oferta de produtos a preços irrisórios ou mesmo gratuitos (como restaurantes populares) e programas de doação de bens de consumo sem desenvolvimento do trabalho (como bolsa-família). Isto cria um clima de contentamento em certas parcelas da população contendo a insatisfação popular e as revoltas políticas, mas não desenvolvendo o trabalho e a produção não representam nenhum desenvolvimento para o país onde isso ocorre. Esta estratégia atrai votos para os governantes que assim se submetem à estratégia do governo mundial, reforçando seu poder, mas acostuma populações inteiras ao ócio e à marginalização do processo produtivo.
O governo mundial, com o controle dos meios de comunicação social, informa mal as populações sobre as verdadeiras dimensões dos problemas ecológicos, como o efeito estufa e o aquecimento global, entre outros, sempre para evitar o apoio a obras de infra-estrutura que representem verdadeiro desenvolvimento para os países. Assim, conseguiram embargar em muitos países a construção de necessárias usinas nucleares, a construção de rodovias, ferrovias e canais para desenvolver os transportes e sempre dificultar o desenvolvimento dos países. Ataca também fortemente a posse da bomba atômica por países, como o Irã e a Coréia do Norte (o Brasil também), onde seu controle sobre os governos não é total como acontece nos Estados Unidos e na Inglaterra. O problema ecológico é utilizado de forma colonialista e ditatorial.
O governo mundial detesta também qualquer idéia de ditadura e também quer enfraquecer o estado nacional soberano. A ditadura pode colocar empecilhos à concentração mundial de poder, fortalecendo a soberania do estado. Aliás, o governo mundial não detesta somente as ditaduras, mas toda concepção hierárquica e ordeira, que leva pessoas livres a colaborar entre si de forma leal em prol de sua libertação. Para isso, o governo mundial insufla pelo mundo todo a ambição material, a vontade de ser magnata, as loterias, o desejo de riquezas, aumentando a corrupção e a dificuldade de as pessoas serem leais umas às outras, num egoísmo cada vez mais acentuado, que corrói qualquer solidariedade social e bem comum. Por isso combate, calunia e enfraquece as forças armadas dos países menos manipulados em suas ações bélicas. Todo regime ordeiro é logo caluniado como “fascista” e se coloca toda a opinião mundial contra tal governo. Exalta a liberdade como um fim em si mesmo e açula o orgulho humano, sempre em vista de impossibilitar o esforço conjunto dos povos por sua libertação e desenvolvimento. O governo mundial defende, pelo mundo todo, as democracias e a plena liberdade de imprensa. Como ela tem o poder econômico, utiliza as liberdades democráticas para, com o controle dos meios de comunicação social, propagar seus ideais, inoculando-os nas mentes e na cultura, e promover políticos dóceis às suas estratégias, financiando suas campanhas e controlando seus mandatos. É o que acontece com a atual promoção do homossexualismo, do aborto, da eutanásia, dos preservativos (com a máscara que é a defesa contra a AIDS) etc. e outras formas de controle populacional.
Outra estratégia do governo mundial é enfraquecer espiritualmente as populações e aliená-las do conhecimento dos processos políticos. Para o enfraquecimento espiritual das populações, combatem a família monogâmica e exclusiva, promovem o homossexualismo, o sexo livre, a pornografia, o consumo das drogas e bebidas (incluindo aqui as drogas auditivas, com o fenômeno das discotecas e os sons em volume muito acima da normalidade da audição humana, que acostumam a não pensar), e tudo que faz a pessoa ser dominada pelos instintos do seu corpo e se tornar escrava de si mesmo e a impossibilita o pensamento reflexivo. O alastrado fenômeno da violência atual é um fruto dessa estratégia, concorrendo também para a diminuição das populações. Para a alienação política dão grande espaço a eventos esportivos, culturais e artísticos nos meios de comunicação social, envolvendo as mentes em informações que em nada mudarão a (in)consciência política e espiritual das populações. Quanto mais as populações, especialmente a juventude, for incapaz de pensar e escrava de seus instintos como os animais, menor é a capacidade de qualquer reação contra o governo mundial. É mais fácil dominar um gado que um grupo de pessoas pensantes.
Nesse contexto vê-se que o combate atual no mundo não é entre capitalismo e socialismo. Tanto uns como outros são materialistas e defendem as estratégias do governo mundial. O combate no mundo é entre o materialismo e o espírito. A ação da Igreja, defendendo a vida humana nascente, desde a concepção até à morte natural, e defendendo os valores da família e do espírito humano em geral é a maior barreira que o governo mundial enfrenta. No fundo é a luta de satanás, querendo destruir a criatura humana, criada à imagem de Deus, reduzindo-a ao nível animal ou matando-a, contra Jesus Cristo que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (cf. Jo 10,10). Por isso também investe-se em seitas e mais seitas – protestantes, orientais, satânicas etc. – para enfraquecer o catolicismo e calunia-se, por parte da direita e da esquerda, a Igreja, culpando-a por todo o mal que já existiu no mundo, em numerosos livros, filmes, e cátedras universitárias. Investe-se também no laicismo – ateísmo – dos estados e na cultura atéia, combatendo o ensino e até os símbolos religiosos católicos na esfera pública. A tudo isso estamos assistindo no mundo atual. Que firmeza não será necessária, em nosso tempos, aos verdadeiros católicos?
Isso tudo deixa entrever o que parece que será o reino do Anticristo. Uma tirania completa. Um mundo sem valores espirituais. Sem família, sem pátria, uma só “cultura” (?) alienante, que buscará impedir sempre mais o hábito de pensar, com o agravante da falsificação da história da humanidade pela propaganda imperante. As populações controladas totalmente pela esterilização, pelo aborto e eutanásia. O único objetivo do viver será orgulhosamente aproveitar os prazeres da carne. Caso as dores venham, as drogas, totalmente liberadas, serão o anestésico, sempre à disposição. A economia cada vez mais planificada não deixará faltar nada do necessário às populações diminuídas e controladas. Estando o mundo todo submetido a um só governo ditatorial, não haverá mais guerras e conflitos. As pessoas, em geral sentir-se-ão felizes e adorarão o Anticristo, e a ele se atribuirá a paz mundial. A paz de um mundo baseado na inteligência humana de poucos em sua pecaminosa sede de poder, e, ao mesmo tempo marcado pela imbecilização da espécie humana, pela morte e pela ausência de valores e de amor. Se ainda houver cristãos católicos nesse mundo, estes protestarão defendendo os valores da vida, do amor e da família, os valores do Espírito. Serão considerados “inimigos da humanidade”, condenados à morte e perseguidos por todos. Lembrar-lhes-ão das guerras do tempo em que havia cristianismo, de outras misérias também e pregarão que o mundo que construíram é o mundo perfeito para a humanidade. A Igreja, o Corpo de Jesus Cristo, será crucificada e morrerá como o seu Senhor e Cabeça. Mas Ele, a Cabeça, Vivo virá para ressuscitar o Seu Corpo. E então...

“Quando os homens disserem: Paz e segurança!, então repentinamente lhes sobrevirá a destruição, como as dores à mulher grávida. E não escaparão” (1Ts 5,3).

“Mas, quando vier o Filho do Homem, acaso achará fé sobre a terra?” (Lc 18,8).

“E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18).

“20... Cristo ressuscitou dentre os mortos, como primícias dos que morreram! 21Com efeito, se por um homem veio a morte, por um homem vem a ressurreição dos mortos. 22Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão. 23Cada qual, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; em seguida, os que forem de Cristo, na ocasião de sua vinda. 24Depois, virá o fim, quando entregar o Reino a Deus, ao Pai, depois de haver destruído todo principado, toda potestade e toda dominação. 25Porque é necessário que ele reine, até que ponha todos os inimigos debaixo de seus pés. 26O último inimigo a derrotar será a morte, porque Deus sujeitou tudo debaixo dos seus pés. 27Mas, quando ele disser que tudo lhe está sujeito, claro é que se excetua aquele que lhe sujeitou todas as coisas. 28E, quando tudo lhe estiver sujeito, então também o próprio Filho renderá homenagem àquele que lhe sujeitou todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,20-28).

terça-feira, 19 de maio de 2009

Moral Sexual Católica

Ignazio Carrasco de Paula
MORAL SEXUAL CRISTÃ
Curso de Teologia da Castidade

Apresentação

Bem-aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus (Mt 5,8).

Esta apostila, destinada exclusivamente ad usum scholarum, foi concebida para ser subsídio ao estudo dos conceitos e princípios fundamentais da Moral Sexual Cristã. Levam em conta sobretudo a impostação e as temáticas tratadas nas aulas sobre as virtudes morais segundo os programas dos cursos institucionais de teologia. Esta finalidade condiciona a exposição dos diversos argumentos.
As principais passagens das Sagradas Escrituras, os textos do Magistério e outras citações dos teólogos que desempenharam papel relevante no desenvolvimento histórico da teologia sobre a sexualidade são transcritos com a intenção de facilitar uma primeira aproximação direta, ainda que incompleta e fragmentária, seja ao conteúdo – que é o elemento-chave – seja ao estilo das fontes e dos escritos dos teólogos.
As citações de obras contemporâneas, por outro lado, querem mostrar a relação íntima desta matéria com outros tratados da ratio studiorum e, talvez, despertar no estudante o interesse por aprofundar ulteriormente muitos argumentos que, nestas páginas de caráter introdutório, precisamos tratar mais superficialmente.
O estudo, em nível de graduação, baseia-se em definições precisas, distinções claras, enumeração ordenada e sistemática dos diversos argumentos etc. Tudo isto o estudante poderia encontrar em manuais de Teologia Moral. A experiência docente confirma, porém, uma verdade lapidar: os conceitos são mais importantes do que as palavras e as fórmulas e é difícil estar verdadeiramente convencido de algo se não se sabe sinalizar – com palavras compreensíveis – os motivos da própria convicção. É preciso dar o melhor de nós para estar sempre prontos, escrevia São Pedro, a dar a quem nos peça, as razões de nossa esperança, e fazê-lo do modo indicado pelo Apóstolo, com doçura e respeito (1Pd 3,15).
Do Concílio de Trento em diante, por bem quatro séculos, a Teologia Moral foi produzida ordinariamente em linha de continuidade, mas também de repetitividade, ainda que não tenham faltado progressos notáveis e controvérsias profícuas, muitas vezes apaixonadas e até ásperas, como na discussão dos sistemas morais, no século XVIII. Depois dos anos 1960, no âmbito do que Philippe Delhaye chamou de metaconcílio, em sua obra Discerner le bien du mal dans la vie morale et sociale, apareceu uma série de obras colocando a moral sexual cristã em uma perspectiva reconhecida como nova, em evolução. Esse acento sobre a “novidade” respondia à objetiva urgência de reelaborar a ética e a moral de modo a produzir uma resposta, fiel em seus princípios ao patrimônio da Revelação e do Magistério da Igreja Católica, e adequada, na argumentação aos conhecimentos e à mentalidade dos novos tempos. Se esses textos conseguiram ou não seu louvável intento não nos interessa aqui, mas é bom recordar que muitos deles, querendo avançar demais na mentalidade subjetivista e relativista atual acabaram tão alheios à doutrina da Verdade que provocaram a intervenção autorizada do magistério para corrigí-los, como é o caso do tão vendido Marciano Vidal.
Naquele período porém, e com as mesmas intenções, um jovem professor de filosofia, Karol Wojtyla, publicava na Polônia Amor e Responsabilidade, uma obra que – independentemente da feliz circunstância de sua posterior eleição para a Cátedra de São Pedro – não se pode desprezar quando se quer discorrer sobre uma “nova” compreensão da “velha” moral sexual cristã.
Nesta Apostila, na medida do possível, devido ao seu caráter introdutório, levou-se em conta essa história que nos precede de mais tempo e a evolução mais recente, também quando se propõe opiniões discutíveis. Procuramos omitir, porém qualquer acento polêmico, que não seria de nenhuma utilidade para quem está se introduzindo na teologia moral da sexualidade.
Auguramos porém que este trabalho possa constituir uma ajuda para o estudante cultivar e crescer na paixão pela Teologia.

Parte I. Fundamentos Antropológicos da Virtude da Castidade.
Capítulo I: Introdução - Castidade e Moral
1. Por um retorno à virtude
No seu livro «Amor e Responsabilidade» , Karol Woytjla inicia o tratado da virtude da pureza com uma seção que traz um título significativo: «REABILITAÇÃO DA CASTIDADE» . Como ele mesmo declara, a expressão não é sua: é tomada de Max Scheler, que a empregou em uma perspectiva muito ampla e se estendia à virtude em geral. Segundo o fundador da ética dos valores, na sociedade contemporânea a virtude tornou-se objeto de uma atitude de rancor, no sentido em que, sendo algo que não pode ser alcançado a não ser com empenho e sacrifício, o homem teria mudado o sentimento de admiração pela virtude por uma reação de revolta. Quase como a raposa e as uvas na fábula: após uma série de vãs tentativas de pegar os cachos que pendem no alto, a raposa renuncia, mal disfarçando o seu insucesso com palavras de desprezo: “as uvas estão ainda verdes”.
1. A crise da Castidade na cultura contemporânea.
Karol Woytjla afirma — com fundamento — que a revolta contra qualquer idéia de virtude atinge o ápice exatamente quando se fala de pureza. «Se há uma virtude que, por causa da revolta perdeu mesmo o direito de cidadania na alma, na vontade e no coração do homem, esta é exatamente a Castidade» . A rejeição da vida virtuosa não é um fenômeno novo. Um dos vícios capitais mais radicados no coração do homem é a acídia (aquedeía ou aquedía, em grego), que não é nada mais do que o abandonar-se à tristeza e à desilusão que nasce da experiência de quão árduo e fatigante seja o exercício da virtude. E entre as virtudes morais, a que mais universalmente se reputa «impossível» é exatamente a Castidade.
Mas entre a abdicação que nasce da acídia e a revolta contra a pureza, presente em boa parte da cultura contemporânea, existe notável diferença. A acídia distorce a imagem da virtude exagerando o esforço necessário para vivê-la, desacreditando que seja possível vivê-la. A revolta nega o seu valor e a ridiculariza, como o faz, por exemplo, Nietzche, quando critica aquela que pensa que seja a idéia cristã de virtude, contrapondo a moral dos senhores à moral dos escravos. A acídia, afastando-se da virtude por achá-la inatingível, ainda a reconhece como um bem superior. A revolta, ao contrário, não só descaracteriza seu conteúdo, mas até a apresenta como um contravalor, uma ilusão enganosa que se opõe à realização da pessoa humana.
2. As razões “contra”.
Ao menos na cultura predominante no Ocidente é bem generalizada a opinião de que a continência não só não tem nenhuma utilidade, mas é até nociva ao ser humano. Na base dessa posição está uma argumentação muito simplista, mas atraente:
1. O sexo é uma realidade «natural», como comer, dormir, caminhar etc. Portanto não deve ser nem demonizado, rotulado com uma etiqueta negativa de estampo maniqueu, nem adorado como “supra sumo” da realização humana. A sexualidade deve ser considerada como uma realidade fundamentalmente biológica e, portanto, pré-moral. A questão ética se colocaria em todo caso ao nível das «conseqüências» do uso do sexo.
2. Reprimir a sexualidade, não satisfazer ou reprimir decididamente as exigências do sexo é danoso para a saúde psíquica, ou, no mínimo, atrasa o desenvolvimento e a maturação da personalidade.
Os argumentos que apresentam a castidade como um fator desestabilizante da pessoa parecem considerar a continência como pura repressão, quase irracional, e guardam influência das teorias, hoje menos acreditadas, de Freud, segundo as quais toda neurose seria conseqüência de conflitos psíquicos não-resolvidos, os quais, por sua vez, seriam produzidos por falhas no desenvolvimento sexual ou pela repressão da sexualidade .
3. A revolução sexual: natureza e postulados
A palavra castidade suscita reações diversificadas. Favoráveis, da simpatia à admiração. E outras decididamente contrárias: ceticismo, desconfiança, sarcasmo etc. Podem ser reações contra o puritanismo e a hipocrisia da moral vitoriana , mas principalmente a «revolta» de que falava Scheler, produto da desilusão e do sentimento de vazio interior gerados como fruto dos comportamentos modelados pela assim chamada “revolução sexual”.
A “revolução sexual” explodiu na década de 1960 como um movimento difuso, não-homogêneo, que se propunha liberar a sexualidade de qualquer condicionamento, a começar das regras morais. Essas foram vistas como restrições infundadas e arbitrárias e como tabus e complexos que deveriam ser superados. A revolução sexual prometia a liberação do sexo de uma tríplice escravidão, através de uma tríplice negação:
a. Negação da interdependência e união essencial entre união de sexos e procriação, com o conseqüente perigo de redução do sexo a mero meio de prazer;
b. Negação do princípio do valor exclusivo da heterossexualidade e, portanto, afirmação do auto-erotismo e da homossexualidade como comportamentos antropologicamente e eticamente equivalentes às relações conjugais;
c. Negação da diversidade e complementaridade entre homem e mulher em nome de uma absoluta e mecânica paridade de sexos.
Corolário inevitável desses postulados era a abolição daquelas instituições sociais onde, pela sua própria natureza, amadurecem as relações entre os sexos, isto é, o matrimônio estável e monogâmico, e a família fundada na geração biológica e na relação educativa.
4. Algumas conseqüências da liberação do sexo
A ideologia da revolução sexual está presente hoje no fenômeno da contracepção, em parte no movimento feminista — uma realidade complexa, que não deve ser confundida com o legítimo reconhecimento dos direitos e da dignidade da mulher — e nos diversos grupos de promoção homossexual. Veremos mais sobre esses argumentos. No momento deve-se notar que como fruto dessas correntes revolucionárias surgiu uma forte tendência à privatização e despersonalização da sexualidade.
Realmente, muitos se acostumaram a agir como se o sexo fosse um assunto puramente privado, que diz respeito somente ao indivíduo e em relação ao qual não devem ser admitidas ingerências de outras instâncias externas: nem da autoridade pública, nem da Igreja, nem dos pais, etc. Daí se cuida do sexo como de um objeto qualquer cujo domínio pertence exclusivamente ao seu proprietário, que não deve dar conta disso a ninguém. Pensa-se, assim, que a sexualidade pode-se assumir, deixar, usar, emprestar, dar, mudar, destruir etc. como se faz com dinheiro, livros, relógios etc. ou qualquer outro bem de consumo.
Reduzida a este nível de coisificação, a sexualidade corre o risco de perder a sua dimensão pessoal: ser uma propriedade inseparável da personalidade de uma pessoa humana que como a própria pessoa, não se pode alienar nem vender. Quando o sexo se torna objeto disponível não permanecem mais obstáculos à banalização e à comercialização: a sexualidade é tratada sem reservas e desfrutada em todas as suas manifestações com inesgotável fonte de lucros. Estamos bem longe do universo «alegre e dançante» profetizado há trinta anos por Herbert Marcuse .
A liberalização, onde se impôs, ou onde foi imposta, contribuiu para divulgar os comportamentos desinibidos e desrespeitosos dos sentimentos de outrem, mas não produziu uma promoção do homem e muito menos pessoas sexualmente e afetivamente mais maduras. Novas angústias e medos tomaram o lugar dos velhos tabus da era vitoriana: frustração diante da falsificação do amor, aviltamento pela consciência ou suspeita de não ser mais do que um objeto de prazer de outrem; vários temores ligados ao egoísmo, ao fechamento, à prepotência e à violência de um parceiro «livre para gozar»; e também o pressentimento de que deve haver «regras do jogo» que não se pode desconhecer ou desprezar impunemente, como parecem indicar os fenômenos da solidão, da tóxico-dependência, do alcoolismo, a difusão da AIDS (ou SIDA), etc.
2. A tarefa da Teologia Moral
É bom levar em conta este panorama ao tratar de moral sexual, para não cair na irrealidade ao proclamar, segundo a mensagem cristã, uma imagem animadora da virtude de modo a criar um clima favorável à virtude da castidade . Para valorizar a virtude é necessário oferecer uma imagem verdadeira, autêntica, não angelical nem diluída ou mutilada nos conteúdos específicos da mensagem cristã. Imagem verdadeira, porém não significa um esboço hesitante, mas uma fidelidade à humanidade da mensagem moral cristã, um valor que superando as simples regras que permitem ou limitam o uso do sexo, tem um sentido naquilo que é bom para o homem.
Entre os fatos que mais violentam a abordagem deste tema está o abismo entre o ideal cristão de pureza e o real comportamento das pessoas, evidenciado até por muitos estudos estatísticos. Mas a teologia moral não dá toda importância a esses dados que permitem, aliás, várias interpretações. A Teologia Moral não é uma ciência descritiva do agir humano, em primeiro lugar, mas uma ciência educativa, que promove o bem total da pessoa, e não pode se limitar a anotar comportamentos acontecidos, mas deve indicar quais comportamentos são lícitos ou ilícitos, justos ou injustos, bons ou maus, aptos a melhorar ou a degradar o homem.
Como disciplina normativa e educativa, que tem como meta alcançar a perfeição e a bem-aventurança do sujeito moral, a pessoa, a Teologia Moral encontra os dados essenciais relativos à relação entre o ser e o dever ser do homem na própria natureza da pessoa humana e no dom da Revelação consumada por Cristo. Esses dados essenciais são substancialmente o fato de que o ser humano foi criado por Deus, é ferido pelo pecado, foi redimido e é chamado a um destino escatológico de glória. Fora deste quadro não é possível compreender o genuíno e mais profundo significado do sexo e da castidade. Por isso devemos referir-nos muito freqüentemente aos tratados da Criação, da Redenção, e à Escatologia, nos quais se desenvolvem conceitos básicos necessários aqui.
As páginas que se seguem obedecem ao seguinte esquema:
1. Conceitos específicos fundamentais para uma teologia da sexualidade: sexo, castidade e pudor, a partir de uma perspectiva fundamentalmente antropológica.
2. A doutrina católica: como se desenvolve a Moral sexual cristã nas fontes da Revelação, nas fontes do Magistério e nos estudos dos principais teólogos.
3. Os princípios para viver cristãmente a castidade como preparação ao matrimônio e no matrimônio.
4. Os princípios para viver cristãmente a castidade no celibato, na virgindade e na viuvez.
Obviamente, sobretudo no que toca ao matrimônio, remetemos ao tratado de Teologia Sacramentária onde são mostrados com maior amplidão alguns argumentos como, por exemplo, a natureza, fins e propriedades do matrimônio.
Capítulo II: Castidade como autodomínio - aspecto “negativo” da virtude da castidade
Na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, que adota o esquema das quatro virtudes cardeais de Aristóteles na Ética a Nicômaco, o estudo da castidade se coloca dentro do tratado da virtude da temperança. Santo Tomás dedica, na Segunda Parte da Suma, 30 questões ao estudo da temperança. (qq. 141-170). Dessas, só quatro referem-se especificamente à castidade (qq. 151-154). A sua doutrina sobre a castidade deve ser completada com outros textos, nas seguintes obras: Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo; Questões disputadas De Malo e De Virtutibus; Suma Contra os Pagãos; Comentário à Ética Nicomaquéia e suas obras de exegese neotestamentária.
1. A virtude da castidade: conceito e função na vida moral
A temperança corresponde à "sophrossíne" dos gregos. Dela diz Santo Tomás que "in ipso eius nomine importatur quaedam moderatio seu temperies" (II-IIae, q. 141,1c). E como o seu próprio nome indica, ela modera, “tempera”, as tendências fundamentais, estreitamente ligadas à corporeidade, que ordinariamente se chamam pulsões de conservação, tanto do indivíduo como da inteira espécie humana. Nos tratados clássicos a temperança se define como virtus moderans appetitum circa delectationes tactus, i. e. circa delectationes ciborum et venereorum .
A temperança controla, portanto, as tendências relativas ao desenvolvimento, à conservação e à transmissão da vida humana. Estas tendências, primarias e inatas, constituem como um suporte biológico e psicológico do primeiro e mais fundamental entre os valores da pessoa, o da existência como indivíduo e, ao mesmo tempo, como membro da comunidade humana. Essas tendências tem três características:
1. São forças dinâmicas primitivas e, como tal, são particularmente vigorosas. São tendências particularmente fortes e difíceis de controlar, por provirem da esfera menos racional e mais biológica da personalidade .
2. São tendências desmedidas: os desejos que provocam são muito maiores e desproporcionais às reais necessidades objetivas da pessoa.
3. São também paradoxais, no sentido de que quanto mais são satisfeitas, mais passam a desejar, de modo tal que facilmente escorregam para excessos irracionais .
Em outras palavras são tendências quase insaciáveis e, portanto, capazes de se tornar fatores desestabilizantes da personalidade. Nessas tendências não só se manifestam os limites do homem criado, mas também as feridas do homem decaído: feridas que a Redenção não cancelou completamente. Por isto, na história da moral e da ascética cristãs as tendências à conservação tem estado sempre como alvos centrais da ascese, nos seus exercícios de mortificação, sobretudo no primeiro monaquismo.
A tendência à conservação e a tendência à perpetuação da espécie são tendências indispensáveis à sobrevivência da espécie humana e, junto com reações sensitivas e emocionais ligadas a elas, não podem ser ignoradas sem colocar em perigo o equilíbrio espiritual e corporal essencial para o desenvolvimento integral e harmônico da pessoa. Para isso a pessoa tem a responsabilidade de moderá-los segundo os critérios da razão orientada para o bem.
2. Temperança e continência: primeira definição da virtude da castidade
Como acenamos antes, São Tomás imposta o estudo da castidade a partir de sua relação com a temperança. Enquanto esta regula todos os prazeres, tanto espirituais quanto sensíveis, e mais especificamente ainda aqueles gozos ligados ao corpo humano, a castidade modera os prazeres ligados àquele aspecto particular do corpo que é a atividade sexual (delectationes venereorum), e portanto é considerada uma parte ou um tipo (pars subiectiva) da temperança .
1. Conceito de Castidade. Objeto material e formal
Nesse contexto, é plenamente válida a clássica definição da castidade como virtus moderativa delectationum in venereis iuxta dictamen rectae rationis, do clássico Manuale Theologiae Moralis de D. M. Prümmer . Isso significa que a função da virtude da castidade é ordenar o comportamento sexual de tal modo que este siga habitualmente, não tanto a inclinação da libido quanto o ditame da razão, a qual toma consciência da natureza da sexualidade e das circunstâncias particulares das pessoas. Recorde-se que a virtude comporta não só a possibilidade de agir de um determinado modo (a potência de ser casto), mas de fato o efetivo exercício de comportamentos moralmente retos (o ato casto).
Campo específico (obiectum materiale) da castidade são as delectationes venereorum, expressão traduzida atualmente com diversas palavras que na linguagem ordinária se empregam como quase sinônimos, mas que, na realidade, não significam todas a mesma coisa: orgasmo, união dos corpos, libido, prazer sensual, volúpia, erotismo etc. A medida e o motivo da função reguladora da virtude (obiectum formalis) é dada pelo juízo da razão (função da inteligência de formular juízos morais), que discerne em cada circunstância como uma pessoa se deve comportar em vista do próprio bem integral e perfeito e do bem do próximo.
2. Graus da virtude e vícios contrários
Na virtude da castidade se distinguem diversos graus de perfeição que vão da simples continência à virgindade. Enquanto a continência, que hoje poderia ser traduzida como autocontrole ou domínio-de-si, limita-se a dominar as próprias reações diante dos estímulos externos ou das paixões internas , a virgindade pressupõe uma vontade firme de renunciar definitivamente à atividade genital .
À virtude da castidade opõe-se o vício da luxúria ou inordinatus appetitus delectationes venerae, que pode apresentar-se sob diversas formas. Assim, tendo em conta a semelhança do ato luxurioso com o ato conjugal legítimo, distingue-se a luxúria iuxta naturam (conforme a natureza) daquela contra naturam (contra a natureza), tendo esta uma malícia maior. Considerando, por outro lado, o ato completo ou não, fala-se de luxúria consumada, quando se atinge a emissão de semen ou o orgasmo ou a completa união física (três abordagens diferentes; pode-se considerar qualquer uma delas) ou de luxúria não-consumada (quando faltam as três características); em relação ao modo distingue-se a luxúria interna (fantasias, desejos) e luxúria externa (comportamentos externos solitários ou com parceiros).
Falaremos da luxúria mais adiante também.
Capítulo III: Castidade como dom-de-si - aspecto “positivo” da virtude da castidade
1. O sentido positivo da virtude da castidade
De tudo o que ficou dito no capítulo anterior, pareceria que a virtude da castidade se refere antes de tudo a um aspecto “negativo”, a uma função repressiva, de freio, ou de simples defesa contra estímulos tidos como “perigosos” e ela se resumiria a isso. O próprio nome “castidade”, na sua raiz etimológica, parece dizer isso, porque vem de “castigatio”, que significa corrigir, eliminar, aparar alguma coisa, tudo o que contraste com as regras do bom costume.
Esta singular propriedade parece ser característica da virtude da temperança. Frases como “devo ser mais justo” ou “preciso ser mais forte” são entendidas geralmente como expressões de uma vontade que pretende empenhar-se seriamente na promoção ou no respeito do direito de alguém (ser mais justo), ou que deseja ter mais coragem e firmeza na vida (ser mais forte). A afirmação “devo ser mais casto”, no entanto, faz pensar apenas na intenção de evitar os pecados de luxúria. Não se pensa logo que a pessoa pretende aperfeiçoar seus relacionamentos afetivos ou estimular uma atividade sexual lícita. Mas isso também é castidade, no aspecto “positivo” dessa virtude.
Todas as virtudes humanas tem um aspecto “negativo” (evitar os pecados e vícios que se opõem a essa virtude, moderar a valorização do bem com o qual a virtude se relaciona) e um aspecto “positivo” (promover o bem que é objeto dessa virtude). A função corretiva (negativa) das virtudes humanas é absolutamente necessária, porque, ao contrário das virtudes teologais (fé, esperança e caridade) que tem por objeto o Bem sem medida, ou seja diretamente Deus mesmo, as virtudes humanas se dirigem a coisas que são bens parciais, que, por sua própria natureza, exigem o justo equilíbrio e moderação, para que a parte não tome o lugar do todo, nem as preferências por um valor concreto se torne um prejuízo, um dano, por se desprezar outros valores igualmente necessários. Mas o aspecto “negativo” sem o “positivo” não atinge o cume da virtude humana. Moderar o apetite sexual é necessário, mas não é o cume da virtude da castidade. Nas palavras do Papa João Paulo II, em sua catequese sobre a redenção do corpo e a sacramentalidade do matrimônio (03/12/1980), «a pureza não é somente abster-se da impudicícia, quer dizer, a temperança, mas a pureza ao mesmo tempo abre o caminho para a descoberta sempre mais perfeita da dignidade do corpo humano». No mesmo discurso, o Papa contrapõe a temperança como função negativa à pureza de coração de que fala Jesus Cristo no Sermão da Montanha .
No conjunto da vida moral cristã cada virtude desenvolve uma sua própria e específica função, mas não independentemente do conjunto das outras virtudes todas e da personalidade da pessoa que as vive em vista do seu crescimento moral. A virtude da castidade deve, por isso, ser vista no conjunto da personalidade da pessoa que é casta. Aí a frase “devo ser mais casto” adquire um significado mais positivo e mais claro como vontade de respeitar a dignidade do próprio corpo. De viver a corporalidade em integração maior com o conjunto da pessoa, de realizar doação integral de si mesmo, que não se dá nunca sem a doação do próprio corpo.
Tendo em conta que:
a. A castidade tem como objeto a tendência sexual
b. No conjunto da personalidade, a libido não é só, nem principalmente, apetite irracional de prazer, mas, sobretudo tensão em direção a outra pessoa — do sexo contrário — à qual doar-se e com a qual unir-se em um ato que é o único capaz de transmitir a vida.
c. Conseqüentemente, a virtude da pureza, além de evitar os excessos e desvios, tem a função ainda mais essencial e originária de promover positivamente as condições pessoais e morais que favorecem a realização da vocação ao amor, ao dom-de-si, e à comunhão pessoal, à paternidade e à maternidade, seja a nível corporal (matrimônio) ou espiritual (virgindade).
Para compreender melhor estes conceitos, aprofundemos nossas noções sobre o significado da sexualidade humana e suas tendências sexuais.
2. Natureza da sexualidade humana
O sexo é uma propriedade essencial da nossa espécie. Todo ser humano pertence necessariamente ao gênero masculino ou feminino. O fenômeno do pseudo-hermafroditismo não contradiz essa afirmação. O sexo é determinado geneticamente pelos cromossomas X e Y. Pode acontecer que a pessoa pertença geneticamente a um sexo, mas apresente características físicas próprias do sexo oposto, como resultado de desenvolvimento defeituoso do sistema genital. Estes dois modos de ser homo sapiens, masculino ou feminino, com os traços sexuais próprios de cada um, são igualmente importantes para a sobrevivência da espécie porque esta é assegurada única e exclusivamente pela união dos gametas de cada sexo.
Mesmo sendo uma propriedade essencial da espécie humana, o sexo não é, porém, o que o ser humano possui de mais característico de sua humanidade. A maior parte dos animais e das plantas são também sexuados. Mas os seres humanos superam todas as outras criaturas vivas com as quais partilha o habitat terrestre porque só eles são pessoas, só o humano possui intelecto e vontade livres, e graças a isso, só o humano pode transcender-se a si mesmo e tornar-se verdadeiramente dominus sui, senhor-de-si, patrão consciente e responsável do próprio comportamento.
A sexualidade da pessoa não é igual à sexualidade dos animais mesmo se, sobretudo a nível biológico e somático, não faltam elementos de afinidade. As diferenças, no entanto, são maiores e mais profundas que a semelhança física. Os modelos de comportamento agregativo e reprodutivo típicos dos animais tem uma base exclusivamente instintiva, segundo esquemas fixos, inatos. O humano, porém, vive sua sexualidade ativando complexos processos de natureza afetivo-tendencial, cognitiva e relacional, a diversos níveis, que empenham a pessoa inteira em sua esfera corpórea psicológica e espiritual. Nem todos os elementos que compõem a sexualidade humana são integrados do mesmo modo e submetidos na mesma medida ao domínio do “eu”. Por isso o ser humano é responsável por aquilo que faz, mas não necessariamente por tudo que ocorre no âmbito da sua sexualidade.
Da natureza radicalmente pessoal da sexualidade humana derivam as mais primárias e mais essenciais conseqüências no plano moral:
1. Sendo o sujeito do comportamento sexual uma pessoa, tal comportamento deverá integrar-se na totalidade do seu ser em plena harmonia com as exigências próprias de sua natureza e vocação pessoal;
2. Uma vez que o objeto do comportamento sexual também é uma pessoa, pertencente ao sexo oposto, ela deverá ser sempre respeitada na sua dignidade de pessoa e, portanto, jamais reduzida à condição de meio ou instrumento para outros fins.
3. Significado das diferenças sexuais
De um ponto de vista ontológico a sexualidade humana se manifesta primariamente nas características morfológicas que diferenciam o homem da mulher, isto é, nos órgãos genitais e nos caracteres sexuais secundários, masculinos e femininos, respectivamente. Apesar desses caracteres constituírem os sinais externos da sexualidade reconhecíveis socialmente, muito mais importantes, obviamente, são os órgãos da atividade sexual propriamente dita, ordinariamente designada com o nome de sexualidade genital.
As diferenças entre o homem e a mulher não se limitam porém ao plano biológico. O ser “varão” ou ser “mulher” pervade todos os níveis da personalidade; os interesses, a afetividade, o estilo cognitivo, o gosto estético, a religiosidade etc. Não há um aspecto da personalidade humana que não seja matizado mais ou menos intensamente pela qualidade feminina ou masculina da pessoa.
Esta ampla gama de modulações nas diferenciações entre os sexos, muito maior do que entre machos e fêmeas dos animais e plantas e que, aparentemente não é exigida pela função procreativa, tem um significado profundo. Sem dúvida é expressão de certa correspondência e complementaridade, não rivalidade nem concorrência, entre homem e mulher. Essa complementaridade, por sua vez, está na base da atração dos sexos. Desse modo, parece evidente que a inclinação natural do varão para a mulher e vice-versa, que constitui a condição primária da atividade sexual na criatura «homem», não se reduz só à simetria genital, mas se funda também no fato que um encontra no outro, a nível afetivo, psicológico, espiritual etc. alguma coisa de diversa e complementar: e como essa complementaridade não é de mão única, tem-se a possibilidade de receber e de dar, ou seja, de enriquecer-se mutuamente, de construir-se mutuamente.
Enquanto criaturas, varão e mulher são indivíduos únicos, completos, autônomos e incomunicáveis, projetados ao seu fim e perfeição próprios. Ninguém pode substituir o outro. Enquanto pessoas, porém, o varão e a mulher podem estabelecer relações interpessoais, através das quais, justamente pela diferença de sexo, um pode aperfeiçoar o outro (fazer crescer o outro) - e vice-versa - de modo singular e específico, como, por exemplo, ocorre no amor conjugal.
4. A atração dos sexos
A sexualidade humana se manifesta na atração física, inata entre varão e mulher, cuja imediata e genuína expressão consiste no interesse pelo corpo — o próprio e o da outra pessoa — que desemboca na tendência natural para a união sexual, um ato entre duas pessoas de sexo diverso, que é, ao mesmo tempo, unitivo e procreativo. O ato sexual e, em geral todo o processo que o inicia e o consuma, ordinariamente implica um tipo específico de prazer que pode ser designado pela palavra volúpia.
O impulso sexual denomina-se também tendência genésica ou libido; No primeiro caso sublinha-se o estreito nexo entre união sexual e geração da vida; no segundo, a inclinação para o prazer carnal ou o orgasmo. O elemento característico da atração sexual, o seu objeto próprio, a realidade para a qual ela se dirige por sua natureza intrínseca, não é, porém, nem a procriação, nem o prazer, mas a união dos corpos.
Na antropologia de inspiração platônica, a sexualidade era vista como uma condição de inferioridade ou castigo da alma decaída — muitos ainda consideram o pecado sexual como o pecado original. Único elemento positivo da tendência sexual, nessa concepção, era a sua finalização à procriação humana. No século XX, sob o influxo de Freud, desenvolveu-se uma antropologia de sinal inverso, que vê a libido como a tendência fundamental e primária da pessoa, da qual todas as outras inclinações seriam derivações ou transformações. A libido era entendida como tendência, ativa já desde o nascimento, ao prazer (e não à união física em si, que seria uma das formas de se alcançar o prazer, e portanto, em si mesma seria secundária). O panssexualismo freudiano demonstrou-se por demais unilateral; baseia-se em uma intuição engenhosa, mas carece de precisão e prova científica.
A libido, atração ou impulso sexual, não deve ser confundida com a tendência, igualmente inata, mas mais primitiva e radical, à busca do prazer nas suas mais disparatadas manifestações ; menos ainda deve ser identificada com a concupiscência, que na sua acepção teológica, é resultado da desordem e da fragilidade introduzidas, com o pecado original, em todos os apetites, em primeiro lugar na vontade . O fato de que, na linguagem coloquial muitas vezes concupiscência é usada como sinônimo de libido explica-se pela experiência quase universal da extrema facilidade com que a tendência sexual desloca o acento do fim unitivo e procriativo ao mero objetivo de alcançar prazer, demonstrando, assim, toda a sua fragilidade e indisciplina.
De forma que a libido visa à união dos corpos, sendo a procriação e o prazer duas conseqüências intimamente atreladas à união. Buscar a reprodução em si reduz o homem ao nível dos cavalos de corrida e o casamento ao acasalamento. Buscar o prazer em si reduz a sexualidade e os parceiros a coisa banal e a pessoa a um ser fechado. A libido tem como objeto a união dos corpos.
Tanto do ponto de vista moral como antropológico a tendência sexual apresenta aspectos paradoxais. Constituindo um suporte essencial para o surgimento e desenvolvimento da comunhão entre duas pessoas de sexos diversos, a tendência sexual pode, no entanto falsificar essa comunhão, porque o objeto próprio da tendência sexual não é a pessoa, mas o corpo da pessoa, ou até os traços sexuais do corpo, buscados como um bem em si. E a concupiscência tende a reduzir este bem a simples objeto de prazer ou instrumento para procurar o prazer. Daí as relações entre varão e mulher, justamente porque são pessoas, e as pessoas devem ser queridas por si mesmas, não se pode apoiar exclusivamente sobre a atração sexual ou libido, mesmo se tais relações foram provocadas e aumentadas por ela. A pessoa é sempre um bem mais absoluto do que qualquer de suas partes, características e qualidades. É imagem de Deus e, depois dele o valor mais absoluto. Por isso só pode ser querida por si mesma, não pelo que pode proporcionar, produzir render ou gozar.
O ser pessoa consente ao varão e à mulher ver o outro não só como alguém que oferece diálogo, atenção, segurança, companhia, prazer, filhos etc. mas também como alguém cujo bem se pode e se deve desejar e promover até ao ponto de dar-se a si mesmo para isso. Quando tal comportamento se torna recíproco, quando a vontade de bem para o outro existe livremente dos dois lados nasce a forma mais elevada de relação entre os sexos, o amor esponsal, que consiste, em essência, no dom da pessoa, no doar o próprio “eu” . Este amor, que tem em vista diretamente a pessoa do cônjuge em si mesma, não exclui, mas ordinariamente pressupõe e integra em si a atração sexual dos corpos, sem deixar-se confundir nem substituir por ela.
5. O problema da luxúria
Pode acontecer que a libido torne-se o elemento principal da relação entre um varão e uma mulher. Nesse caso temos, ao mesmo tempo, pelo menos três conseqüências negativas.
A relação interpessoal fica imperfeita, porque não se apoia sobre a pessoa mesma, mas sobre suas características sexuais, independentemente do fato de que nesse relacionamento prevaleça o valor procriativo (se vê no parceiro alguém com condições biológicas adequadas para procriar - é um acasalamento, não um casamento) ou o valor unitivo ( vê-se no parceiro alguém capaz de satisfazer o próprio desejo).
Tal relação está exposta à falsificação, no sentido que as reações emotivas ligadas ao sexo tendem a deformar a percepção do outro, conferindo-lhe características e qualidades, a nível pessoal, que, em realidade, ele não possui.
Mais cedo ou mais tarde se manifesta a incapacidade de levar em conta a dignidade da outra pessoa porque não se percebe o seu autêntico valor, reduzida que ficou a instrumento de satisfação do impulso sexual. Isto não é outra coisa que luxúria.
Ordinariamente a origem da luxúria é um pouco mais profunda. A instrumentalização — mesmo inconsciente — do parceiro com o objetivo de satisfazer o desejo de prazer revela a presença de um núcleo egocêntrico, de um comportamento egoístico que procura esconder-se sob as aparências do amor. Daí que a desordem da libido pode ser expressão de uma desordem mais profunda, de uma temível animalidade sem freios, pode denunciar a falência da capacidade de amar, a remoção clandestina do dom-de-si., operada por um egoísmo que devora os bens que caem em sua área de influência como, por exemplo, os bens do corpo e da sexualidade humana.
6. Segunda definição da virtude da castidade
Nessa perspectiva, a natureza e a função da virtude da castidade adquirem uma dimensão mais elevada. A castidade não se limita aos aspectos sexuais em sentido estrito, mas se volta para o núcleo central da pessoa, que, como veremos, na linguagem bíblica se chama o “coração”, que é onde nascem e se desenvolvem as atitudes de egoísmo e de fechamento em si mesmos, que impedem a integração da libido com as outras tendências e, sobretudo, com a pessoa na sua totalidade.
A castidade é uma afirmação dos valores do corpo e do sexo como bens inalienáveis da pessoa. A castidade preserva e promove a bondade original do significado unitivo e procriativo essencial da união dos corpos e, ao mesmo tempo, purifica a tendência à união física de todo egoísmo, da busca isolada de prazer pessoal, da simples satisfação da própria sexualidade. A castidade orienta a atração sexual, libido, de modo que ela possa ser integrada na relação mais ampla e total entre pessoas que é o amor esponsal. Por isso, falar dessa virtude significa falar do Amor .
Certamente a castidade não substitui a virtude do Amor, mas faz parte essencial dela e da perfeição cristã. A castidade sem amor se tornaria uma virtude cega; assim também um amor sem castidade, como vimos, é inconcebível, torna-se logo uma contradição. «O amor não pode reduzir-se a uma intuição subjetiva, na qual se manifestem as energias da sensualidade e da afetividade apoiadas na tendência sexual, porque nesse nível não atinge seu nível pessoal e objetivo, nem pode unir as pessoas» . Ou como escreveu o Papa João Paulo II: «O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si mesmo um ser incompreensível e a sua vida fica sem sentido, se não lhe é revelado o amor, se não se encontra com o amor, se não o experimenta e não o faz coisa sua própria, se dele não participa vivamente. E, por isso Cristo Redentor… revela plenamente o homem ao próprio homem» (Carta Encíclica Redemptor Hominis, 10), por realizar plenamente a entrega de si no amor. A castidade facilita para que o amor inicial se dirija imediatamente à pessoa amada enquanto tal, de modo autêntico e transparente, e torne-se doação e reciprocidade entre o varão e a mulher.
Inserindo tudo o que estudamos neste capítulo, podemos tentar aperfeiçoar a definição da virtude da castidade vista no capítulo precedente, nos seguintes termos: Castidade é a virtude que modera a tendência sexual segundo a reta razão, integrando-a na pessoa e ordenando-a à realização do chamado ao amor, na virgindade ou no matrimônio.
7. Essência e função do pudor
Para completar o estudo da virtude da castidade devemos agora examinar a questão do pudor. Para São Tomás de Aquino o pudor faz parte da virtude da castidade, uma vez que regula as manifestações externas da sexualidade.
Objeto do sentimento de pudor é o conjunto do comportamento sexual e tudo o que se refere a ele — especialmente se pode estimulá-lo — seja lícito ou não do ponto de vista moral. Trata-se de uma experiência espontânea, própria de todas as culturas e civilizações, com manifestações concretas diferentes no que toca aos elementos menos essenciais, como, por exemplo, o vestuário. O senso de intimidade que reveste o ato conjugal e a reação de vergonha quando este se tornasse coisa pública, é um fenômeno universal espontâneo. «O homem e a mulher no momento do ato carnal refugiam-se dos olhares de outrem e toda pessoa moralmente sã acharia decididamente indecente não fazê-lo» .
O pudor tende a preservar a interioridade da pessoa, mantendo ocultos certos fatos e valores do indivíduo. No que toca à esfera sexual, o pudor «refere-se sobretudo às partes e órgãos que determinam o sexo. Os homens tem uma tendência generalizada a dissimulá-los aos olhos dos outros, e sobretudo às pessoas do outro sexo. Assim se explica em larga medida a necessidade de esconder a própria nudez. Evidentemente que intervêm também outros elementos, como a necessidade de proteger-se do frio: os nativos das regiões tropicais vivem mais ou menos nus. Numerosas observações sobre seus costumes provam que a nudez para eles nada tem a ver com a impudicícia. Como se pode constatar o pudor não se identifica de maneira simplista com o uso de roupas, nem a impudicícia com a nudez parcial ou total. Este é só um elemento marginal e relativo. Pode-se constatar que a tendência a cobrir as partes do corpo ligadas às características sexuais — ou a manifestações de fraqueza pessoal, como as necessidades intestinais e outras — anda paralelamente ao pudor mas não constitui sua essência. Essencial é a tendência a esconder os valores sexuais em si mesmos, sobretudo na medida em que constituem na consciência de uma pessoa, “um possível objeto de gozo” .
Nesse sentido, o pudor contribui, dentro da virtude da castidade, para que as relações que surgem entre duas pessoas — especialmente de sexos diversos — ultrapassem os valores do corpo sem desprezá-los, e atinjam os valores da pessoa como tal. Dá-se o caso, portanto, em que o sentimento natural de pudor é enfim superado e como que vencido pelo amor esponsal entre varão e mulher. Permanecerá sempre, porém, uma questão íntima e reservada entre os dois, porque só eles participam na união dos corpos e na união das almas. «É compreensível, assim, que o pudor, que tende a esconder os valores sexuais, para proteger os valores da pessoa, tenda também a esconder o ato sexual para proteger o valor do amor» .

Parte II – Os Fundamentos Teológicos da Virtude da Castidade
Introdução
Após ter examinado a natureza e o sentido da virtude da Castidade na vida moral, devemos agora prosseguir o estudo propriamente teológico desta virtude, mediante o aprofundamento dos princípios e pressupostos da Moral Sexual Cristã nas suas fontes principais: a Revelação, os documentos do Magistério e o pensamento dos teólogos. (Entendemos aqui, por «teólogos» não qualquer teólogo atual com suas opiniões, mas os Padres e os Doutores da Igreja e não tanto como legisladores de uma lei que, na verdade, é divina, mas como testemunhas do que o Espírito diz à Igreja e esta discerne.) Esse estudo tem um interesse tanto doutrinal quanto prático. Trata-se de compreender melhor os fundamentos e os conteúdos da concepção cristã da sexualidade e também os critérios de discernimento prático, para que o cristão, aplicando a própria razão, iluminada pela fé e sustentada pela graça, pela virtude e pelos dons do Espírito Santo, possa moderar e guiar positivamente a própria sexualidade em vista do seu progresso espiritual segundo as exigências de sua específica vocação.
Para a Teologia Moral, assim como para toda a ciência teológica, a Palavra de Deus, manifestada pela Revelação, constitui a fonte principal do conhecimento. As Sagradas Escrituras e a Sagrada Tradição são para o cristão a primeira e mais fundamental fonte de discernimento moral. Isto não significa que, a priori, se possa encontrar sempre nos Livros Sagrados ou nos textos patrísticos uma resposta já pronta para todos os problemas que aparecem. Na verdade, alguns princípios, hoje irrenunciáveis para um autêntico estilo de vida cristã, na sua formulação atual foram sendo aperfeiçoados na vida da Igreja ao longo dos séculos. Alguns são explicitações de conteúdos presentes na Revelação, mas não manifestados expressis verbis; outros são interpretações autenticadas pelo Magistério infalível da Igreja; outros ainda são aprofundamentos e conseqüência às quais se chegou lentamente tanto pela fé vivida pelo Povo de Deus, como pelo estudo dos teólogos.
Sobretudo neste último caso, certas condições históricas, culturais etc. reclamaram uma maior atenção dos pastores ou dos fiéis para alguns problemas, contribuindo assim para fazer compreender ou formular melhor as soluções, tanto no plano da fé como no do conhecimento natural. Por exemplo, até há relativamente pouco tempo, a teologia contentava-se com afirmação da substancial igualdade entre homem e mulher, enquanto criados à imagem e semelhança de Deus e elevados à condição de filhos adotivos. Até então não havia prestado particular atenção ao significado antropológico das diferenças sexuais e nem ao papel específico da mulher na Igreja e na sociedade, argumentos que se tornaram de primeiríssimo plano na teologia e na pastoral contemporâneas .
No estudo teológico da Moral Sexual Cristã precisamos, portanto, prestar atenção aos aspectos perenes (de sempre) e também aos contingentes (da época e do lugar). Mas a questão basilar para o estudo teológico permanece sempre a análise dos conteúdos doutrinais, compreendendo aí a respectiva nota teológica uma vez que essa, na tentativa de exprimir o grau de certeza epistemológica, coloca cada enunciado no contexto do conjunto da Fé, contexto genético, que gera tal enunciado. No conjunto da Fé, desde as verdades que todos as pessoas devem compartilhar sem hesitações, ou seja, aquelas verdades de fide definita (presentes na Revelação e propostas infalivelmente como tais pelo Magistério da Igreja), até às sententiae communes ou as opiniões dos teólogos bene fundatae, sujeitas sempre a ulteriores revisões e melhoramentos.
As reflexões que se seguirão, acerca da doutrina bíblica da sexualidade, devem ser inseridas no contexto mais amplo da teologia do corpo humano. Não há sexualidade sem corpo; e o corpo humano, por disposição divina é sexuado. Mas também o corpo humano não se reduz à sexualidade. O corpo indica a possibilidade de exprimir-se, de comunicar, de trabalhar etc. O corpo humano significa história: a memória de uma origem e a previsão de um fim temporal, a morte. O corpo humano é o sinal absoluto da contingência e da provisoriedade do homem e, portanto da sua radical dependência de Deus. O corpo não é um apêndice nem um simples revestimento físico da pessoa. A pessoa humana é pessoa antes de tudo porque é espírito; mas o corpo se entrelaça com o espírito numa unidade substancial que constitui justamente a pessoa humana.
Capítulo IV: Sexualidade e Castidade no Antigo Testamento
1. O ensino do livro do Gênesis
Nos livros canônicos que compõem o Antigo Testamento (AT) fala-se de muitas verdades fundamentais sobre a vida humana: a sua origem, o seu valor e dignidade, e o seu destino. Aí o ser humano aparece como uma criatura singular: pessoa corporal ou corpo pessoal, ele é imagem e interlocutor de Deus.
A relação de aliança e de amizade que Deus estabelece com os homens através da Revelação confirma a particular dignidade e vocação do homem. Mas além dessas verdades essenciais a Palavra de Deus trata também expressamente da sexualidade humana. O contexto é sempre aquele típico da Bíblia: uma perspectiva nitidamente religiosa na qual o sexo é apresentado como dom do Senhor e o seu exercício como gesto, em última análise, de reconhecimento e adesão aos projetos divinos, e, portanto, de adoração.
Os textos principais sobre a sexualidade se encontram no Gênesis e nos livros sapienciais e proféticos . Os passos do Gênesis são dois textos paralelos: um, cronologicamente mais antigo, corresponde ao capítulo segundo e terceiro, e é conhecido como relato javista, porque usa a palavra Javé para designar Deus; o outro, que se encontra no capítulo primeiro e se supõe mais recente, chama-se eloísta porque emprega o termo Eloim para referir-se ao Senhor, mesmo se é mais considerado como sendo de fonte ou tradição sacerdotal, a tradição que se presume tenha compilado a última redação do Pentateuco.
Não se deve cair na ingênua suposição de que as narrações mais antigas sejam sempre as mais verdadeiras e verídicas. No nosso caso estamos diante de duas narrações substancialmente complementares. O fato de terem sido fixadas em momentos diferentes explica suas diferenças, seja na linguagem como no modo de falar da dualidade dos sexos.O javista sublinha as diferenças subjetivas entre homem e mulher; o eloísta destaca a igualdade objetiva de dignidade e de natureza entre o homem e a mulher.
1) A criação do homem no primeiro capítulo do Gênesis
O primeiro relato na Bíblia é o eloísta, que se encontra em Gn 1,1—2,4a. Para os objetivos de nosso estudo os versículos mais importantes são Gn 1,26-28.
“26Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e segundo nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todos os animais selvagens e todos os répteis que se arrastam sobre a terra”. 27Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea ele os criou. 28E Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei e subjugai a terra! Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre tudo que vive e se move sobre a terra” (Gn 1,26-28).

A linguagem, como se vê, é acurada e concisa; possui um evidente estilo teológico, como se denota pela definição do homem com base na sua relação com Deus (à imagem de Deus o criou). Do ponto de vista da teologia da sexualidade, o trecho todo é importante porque:
a) Mostra a criação do homem e da mulher como um acontecimento simultâneo (varão e mulher o criou), e além disso ambos são feitos à imagem de Deus. Deste modo se sublinha seja o fato que a imagem divina é participada no mesmo nível e grau tanto pelo varão como pela mulher; e também a idéia de que, no desígnio criador, a própria diversidade de sexos enriquece a semelhança divina presente na criatura humana.
(Adiantando um comentário sobre a Santíssima Trindade, que evidentemente não está no pensamento do escritor inspirado, pode-se pensar que assim como cada uma das Três Pessoas Divinas é “completamente” Deus, mas em si mesma não esgota a realidade “Deus” em sua totalidade, - que só se apresenta na comunhão das Três Pessoas - assim também o varão ou a mulher considerados isoladamente são “completamente” ‘ser humano’ mas não esgotam em si mesmo toda a realidade que é o ‘ser humano’; só o conjunto varão-mulher manifesta a inteireza do que é ‘ser humano’).
É obvio, porém, que o ser humano não é similar a Deus por ser sexuado, mas porque é um seu interlocutor, o que significa que é uma pessoa e possui as faculdades espirituais necessárias para compreender e responder.
b) A diferenciação sexual aparece sempre ordenada à procriação (sede fecundos e multiplicai-vos), mas também ao domínio que o homem deve – na diversidade dos sexos – exercer sobre a Criação (enchei a terra e submetei-a). Abençoando o varão e a mulher e confiando-lhes toda a terra, Deus mostra a sua benevolência em relação a eles enquanto os chama a colaborar conSigo seja no governo e na promoção das outras criaturas, seja na propagação do gênero humano.
Procriação e criação são dois conceitos. Gerar filhos é participar de um ato criativo que, como tal, só Deus pode realizar. Os genitores são cooperadores e quase «co-criadores», mas os filhos são na verdade um dom do Senhor e sinal de Sua misericórdia .
2) A criação do homem no segundo capítulo do Gênesis
O relato javista da Criação compreende os versículos Gn 2,4b-25. Segue-se a história da queda (Gn3) e de Caim e Abel (Gn 4; note-se que Gn 4,1 registra a concepção e nascimento do primeiro homem gerado por genitores terrestres). No que tange à teologia moral sexual as passagens principais são Gn 2,7-8.15-25.
“7Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem se tornou ser vivo. 8Depois, o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, ao oriente, e ali pôs o homem que havia formado. (…) 15O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e guardar. 16O Senhor Deus deu ao homem uma ordem, dizendo: “Podes comer de todas as árvores do jardim. 17Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não deves comer, porque no dia em que o fizeres serás condenado a morrer”. 18E o Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou-lhe fazer uma auxiliar que lhe corresponda”. 19Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. 20E o homem deu nomes a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. Mas entre todos eles não havia para o homem uma auxiliar que lhe correspondesse. 21Então o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre o homem e ele adormeceu. Tirou-lhe uma das costelas e fechou o lugar com carne. 22Depois, da costela tirada do homem, o Senhor Deus formou a mulher e apresentou ao homem. 23E o homem exclamou: “Desta vez sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Chamar-se-á ‘mulher’ porque foi tirada do homem”. 24Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher e se tornarão uma só carne. 25Ambos estavam nus, o homem e a mulher, mas não se envergonhavam”.

Como se vê, trata-se de um relato que, no seu estilo fortemente antropomórfico, exprime com clareza e profundidade o ordenamento querido por Deus para o homem e culminado com a instituição do matrimônio único, indissolúvel e fecundo. A criação do homem é apresentada em duas fases: primeiro o homem (‘adam), mas como este, assim isolado, não pode realizar-se plenamente (não é bom que o homem esteja só), é criada a mulher (‘ishshah), sexualmente diferente do varão (‘ish) e complementar a este, e, portanto, com a possibilidade de realiza-lo plenamente (ser-lhe de ajuda). O homem é levado de um estado original de solidão à companhia e à comunhão de pessoas. Varão e mulher, participantes da mesma natureza e da mesma dignidade (mesma carne, mesmos ossos), unem-se constituindo uma só carne, expressão que significa união humana, pessoal e total. A relação conjugal é tão exclusiva e insólita a ponto de superar até os laços primordiais de filiação e paternidade que nascem da transmissão da vida (deixará se pai e sua mãe).
A observação do versículo 25 (ambos estavam nus … mas não sentiam vergonha) revela que o homem foi criado num estado de inocência originária, na qual não conhecia ruptura interior nem contraposição entre espírito e carne, nem entre o que constitui a pessoa e o que é determinado pelo sexo. Ao contrário, uma vez que os sexos são ordenados um para o outro, é por mediação da sexualidade que o corpo adquire um significado «esponsal». «A revelação, e também a descoberta do significado esponsal do corpo, consiste – explica João Paulo II em suas catequeses – no apresentar o homem, varão e mulher, em toda a realidade e verdade do seu corpo e sexo (estavam nus), e, ao mesmo tempo totalmente livres de toda constrição do corpo e do sexo. A nudez dos primeiros pais, interiormente livres de toda vergonha parece testemunhar esta vocação «esponsal» do corpo humano. Pode-se dizer que, criados pelo Amor, isto é, dotados no seu ser de masculinidade e feminilidade, ambos estão nus porque são livres pela própria liberdade do dom» .
3) A queda do homem: conseqüências sobre a sexualidade
No capítulo terceiro do Gênesis, de tradição javista, como o precedente, fala-se da perda do estado de inocência originária e das conseqüências no corpo humano. Os versículos fundamentais são Gn 3,6-12.16.
“6A mulher notou que era tentador comer da árvore, pois era atraente aos olhos e desejável para se alcançar inteligência. Colheu o fruto, comeu e deu também ao marido, que estava junto, e ele comeu. 7Abriram-se os olhos de ambos e viram que estavam nus. Teceram com folhas de figueira tangas para si. 8Ouvindo o ruído do Senhor Deus, que passeava pelo jardim à brisa da tarde, o homem e a mulher se esconderam do Senhor Deus no meio do arvoredo do jardim. 9Mas o Senhor Deus chamou o homem, dizendo: “Onde estás?” 10E este respondeu: “Ouvi teus passos no jardim. Fiquei com medo porque estava nu, e me escondi”. 11Disse-lhe Deus: “E quem te disse que estavas nu? Então comeste da árvore, de cujo fruto te proibi comer?” 12E o homem disse: “A mulher que me deste por companheira, foi ela que me fez provar do fruto da árvore, e eu comi”. (…) 16Para a mulher ele disse: “Multiplicarei os sofrimentos de tua gravidez. Entre dores darás à luz os filhos, a paixão arrastar-te-á para o marido e ele te dominará”.

O pecado de desobediência provoca efeitos devastadores na integridade da pessoa; o homem, varão e mulher, perde a visão límpida de si mesmo, e nisso, também da sua sexualidade. Estes se dão conta de estarem nus e isso os faz sentir o medo, a vergonha e a humilhação. Rompeu-se a coerência interior, e não podem mais dominar o próprio corpo com a mesma simplicidade e naturalidade de antes. Destruiu-se também o equilíbrio interpessoal (o varão acusa a mulher pela sua desobediência).
A relação de complementaridade entre os sexos virá acompanhada da contraposição entre o varão e a mulher porque o outro não é mais apenas a meta do amor esponsal, mas também objeto de desejo, estímulo para o instinto. No diálogo entre os sexos, o corpo toma a dianteira: a atenção é como que capturada pela nudez. A comunhão de pessoas é rebaixada a um nível inferior na qual o varão domina a mulher.
Segundo a Bíblia as desigualdades históricas e culturais entre os sexos não formavam parte do desígnio criador de Deus, não são protonaturais mas uma conseqüência do pecado. Como veremos, no plano da Redenção, operado por Cristo, contempla-se também a recuperação do significado originário do corpo e da sexualidade, através da refundação do matrimônio e da dignificação da mulher. Não é por acaso que no coração da redenção encontramos dois ícones femininos: Maria, mãe do Senhor, e a Igreja, Esposa Mística de Cristo.
O pecado não destruiu completamente a obra criadora de Deus. Na sexualidade mantém-se a relação essencial entre a união dos sexos e a procriação, como mostra o primeiro versículo de Gn 4, onde inicia-se a história pós-paraiso.
1O homem conheceu Eva, a mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, dizendo: “Ganhei um homem com a ajuda do Senhor” (Gn 4,1).

O primeiro homem gerado de outros seres humanos nasce depois do pecado. No plano da Criação, Deus continua a solicitar a cooperação do varão e da mulher. Estes não foram privados da alegria de serem co-criadores mediante a geração de filhos, mas a alegria virá junto, e até será obscurecida por isso, por muitas dores, especialmente para a mulher: multiplicarei as dores da tua gravidez e em dores parirás teus filhos.
2. A Moral Sexual nos livros sapienciais e proféticos.
Tornou-se lugar comum nos textos de divulgação a asserção de que a moral de Israel era sobretudo uma manifestação da cultura e da concepção semítica de sociedade. Tudo o que vimos até agora desmente essa hipótese, especialmente se levarmos em conta as diferenças, neste campo, a respeito dos costumes socialmente reconhecidos nas nações vizinhas. Os cananeus rendiam culto a Astarte e a Baal e como supersticiosamente confiavam e esses deuses a fecundidade dos campos e dos rebanhos, supunham-nos bem dotados sexualmente. Em nome de Astarte a prostituição sagrada tornara-se um dos elementos centrais do culto idolátrico dos cananeus. Para os judeus, bem diversamente, Deus é absolutamente transcendente, não tem aparências humanas. Concretamente, a sexualidade, para o Povo de Deus, é uma realidade exclusivamente humana – criada por Deus – e dada aos homens com significados plenamente humanos: a comunhão e a procriação, por cuja realização o varão e a sua mulher são plenamente responsáveis diante de Javé, que se mostra particularmente exigente nesse campo.
Entre as cláusulas morais da Aliança, encontramos este mandamento: Não cometerás adultério (Ex 20,14), que recorda exatamente que a sexualidade não é um assunto «privado», do qual o homem pode dispor segundo o seu próprio juízo, mas, ao contrário, é um dom estreitamente subordinado aos desígnios divinos e condicionado pelas regras promulgadas no Sinai.
A colocação da proibição do adultério, entre as do homicídio e do furto, faz transparecer a gravidade do adultério, o qual, já nos textos mais antigos, é punido com a morte (cf. Dt 22,22: “Se se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, todos os dois deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma. Assim, tirarás o mal do meio de ti"; cf. Lv 20,10: "Se um homem cometer adultério com uma mulher casada, com a mulher de seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos de morte”). Os episódios de Sara e Abimelec, de José e a mulher de Putifar, de Davi e a mulher de Urias, etc. confirmam este juízo moral.
Nos livros sapienciais, a proibição do adultério é completada com freqüentes conselhos, sobretudo aos jovens, para que se encaminhem pela estrada do matrimônio e se mantenham bem longe das prostitutas. São arrazoados cheios de prudência e bom senso, que implicam uma condenação da fornicação e das relações extraconjugais, fundamentalmente baseadas no respeito à Aliança (cf. Dt 22,23-27: “23Se uma virgem se tiver casado, e um homem, encontrando-a na cidade, dormir com ela, 24conduzireis um e outro à porta da cidade e os apedrejareis até que morram: a donzela, porque, estando na cidade, não gritou, e o homem por ter violado a mulher do seu próximo. Assim, tirarás o mal do meio de ti. 25Mas se foi no campo que o homem encontrou a jovem e lhe fez violência para dormir com ela, nesse caso só ele deverá morrer, 26e nada fareis à jovem, que não cometeu uma falta digna de morte, porque é um caso similar ao do homem que se atira sobre o seu próximo e o mata: 27foi no campo que o homem a encontrou; a jovem gritou, mas não havia ninguém que a socorresse”.). Também a bestialidade – relação sexual com animais – e a homossexualidade – v.g. o episódio de Sodoma e Gomorra – são duramente condenadas.
Os livros históricos do Antigo Testamento estão cheios de histórias belíssimas de amor humano, como os relatos sobre Isaac e Rebeca, Jacó e Raquel, Tobias e Sara etc. que constituem um elogio do noivado e do casamento , ainda que se tenha introduzido o abuso da poligamia , que é um abuso, reparado o mais tardar após o Exílio. A doutrina mais elevada, no entanto, encontra-se nos livros proféticos, onde muito freqüentemente se faz uma aproximação entre o amor divino e o amor humano. «Nos oráculos dos Profetas – observa João Paulo II – e particularmente de Isaias, Oséias e Ezequiel, o Deus da Aliança – Javé – é muitas vezes representado como Esposo, e o amor com que Ele se uniu em Aliança a Israel pode e deve ser visto como da mesma natureza do amor esponsal dos cônjuges» .
A infidelidade do povo eleito é considerada como um pecado de adultério, a ruína traiçoeira de um pacto estreitíssimo – como a união entre um varão e sua mulher – tornada ainda mais grave pela ingratidão e pela rejeição do dom divino. Certamente, na intenção do autor sacro, quer-se ressaltar sobretudo a fidelidade de Deus, mas com estas alegorias matrimoniais ilumina-se profundamente o significado da união conjugal, sobretudo no que concerne à profundidade e à totalidade da communio personarum.
Se, graças à Revelação, o povo hebreu mantém um nível moral muito mais elevado do que as nações vizinhas, não faltaram imperfeições ao nível de legislação ou de comportamento, como, por exemplo, o divórcio , o concubinato, a disparidade de direitos entre o homem e a mulher etc. João Paulo II anota que até o conceito de adultério, significa muitas vezes apenas a posse da mulher de outrem, e a sua malícia se reduz a uma infração do direito de propriedade do homem em relação a cada mulher que seja a sua esposa legal, o que está em flagrante contraste com a doutrina do Gênesis . Por isso mesmo, o Messias se referirá ao princípio, para restaurar a ordem estabelecida com a Criação.

Capítulo V: Sexualidade e Castidade no Novo Testamento
O Evangelho, proclamado pelo Senhor Jesus com a sua vida e o seu ensinamento, pregado pelos Apóstolos em todo o mundo e testemunhado pela Igreja primitiva, propõe aos homens exigências morais novas e mais radicais. Ademais, para os judeus, depositários e custódios da Lei e dos Profetas, renova e reinterpreta, segundo a Nova Lei da Caridade derramada no coração do homem, o conteúdo de suas tradições.
1. O ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo
No que se refere à sexualidade, a doutrina de Cristo move-se, por assim dizer, sobre um binário: a confirmação de tudo o que havia sido estabelecido desde «o princípio» e, ao mesmo tempo, a relativização desses mesmos valores em vista de «o escaton». Por um lado, Jesus reafirma as «origens» (= Gênesis), reconduzindo – como veremos – a moral à primitiva condição querida por Deus na Criação e registrada no livro do Gênesis. Pelo outro lado, o Senhor revela aquela que será a condição futura, na Parusia, onde o matrimônio terá cessado de existir: após a Ressurreição os seres humanos não tomarão mais mulher nem marido, mas serão como anjos de Deus no Céu (cf. Mc 12,25).
Assim o Senhor Jesus reafirma o valor positivo da sexualidade, mas a coloca sob o plano relativo das coisas terrenas, das realidades transitórias. Ao mesmo tempo inclui um novo valor moral, o da virgindade e do celibato, que entre os judeus não apenas não gozava de nenhuma estima, mas era até julgado negativamente , uma vez que se pensava que o mandamento de procriar fosse uma obrigação para todos .
O altíssimo apreço pela virgindade é confirmado por Jesus que, aprovando e abençoando o matrimônio e elevando-o à categoria de sacramento – sinal eficaz da Graça, ação de Cristo ressuscitado – escolheu para si mesmo ser virgem e foi concebido virginalmente de Maria, uma virgem. A virgindade pregada por Jesus tem valor não tanto enquanto renúncia à vida conjugal, mas como gesto de disponibilidade total em relação a Deus , à qual vai unida uma específica e magnânima recompensa (cf. Mt 19,29; Lc 18,29; etc.). A virgindade, porém, como estado de vida, não está ao alcance de todos, mas só daqueles aos quais é concedido (…), que se fizeram eunucos pelo Reino dos Céus (Mt 19,12).
Para aprofundar o ensino de Jesus sobre o sexo é importante considerar o seu comportamento em relação às mulheres, sobretudo levando em conta a situação das mulheres na sociedade judaica da época. O Senhor passa por cima das barreiras e hábitos de seu tempo. Fala com as mulheres em público – são particularmente notáveis seus diálogos com a Samaritana e com Marta -, opera milagres – freqüentemente coloca-se em relevo a emoção de Cristo: com a Cananéia, com a viúva de Naim etc. -, as indica como exemplo – a pecadora pública, a viúva das duas moedinhas, Maria de Betânia etc. -, deixa-se servir a ajudar por elas etc. Não faz distinção entre homem e mulher, reconhecendo uma igualdade diante de Deus e uma diversidade de missões .
Cristo confirma que a dualidade de sexos faz parte do primitivo plano criador de Deus: o sexo é uma realidade boa e santa, assim como a atividade sexual, ainda que só dentro do casamento monogâmico. No que se refere ao matrimônio os textos mais importantes são Mateus 19,3-9 e o seu paralelo Marcos 10,2-12.
“3Aproximaram-se dele alguns fariseus para testá-lo com a pergunta: “É permitido um homem despedir sua mulher por qualquer motivo?” 4Ele respondeu: “Não lestes que no princípio o Criador os fez homem e mulher 5e disse: Por isso o homem deixará o pai e a mãe para unir-se à sua mulher, e os dois serão uma só carne? 6Assim, já não são dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu”. 7Eles insistiram: “Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio, ao despedir a mulher? ” 8Jesus respondeu: “Foi por causa da dureza de vosso coração que Moisés vos permitiu divorciar-vos de vossas mulheres. Mas no princípio não foi assim. 9Eu, porém vos digo: Quem se divorciar de sua mulher, salvo em caso de ‘pornéia’, e se casar com outra, comete adultério” (Mt 19,3-9).

“2Alguns fariseus chegaram e, para testá-lo, perguntaram-lhe se era permitido ao homem repudiar a mulher. 3Ele lhes respondeu: “O que Moisés vos ordenou?” 4Eles disseram: “Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedir a mulher ”. 5Jesus continuou: “Foi devido à dureza de vossos corações que ele vos deu esta lei. 6Mas no princípio da criação Deus os fez homem e mulher. 7Por isso o homem deixará pai e mãe para unir-se à sua mulher, 8e os dois serão uma só carne . Assim, já não são dois, mas uma só carne. 9Não separe, pois, o homem o que Deus uniu”. 10De volta para casa, os discípulos perguntaram-lhe novamente sobre o mesmo assunto. 11Jesus lhes respondeu: “Quem divorciar-se de sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. 12E se a mulher se divorciar do marido e casar com outro, comete adultério” (Mc 10,2-12).

Jesus confirma o significado primitivo e o ordenamento originário da união dos sexos e do matrimônio contido nos primeiros capítulos do Gênesis, revogando a faculdade de divorciar concedida aos hebreus pela dureza dos corações. No que se refere à exceção indicada pelo Senhor («», que só há em Mateus 19,9), antigamente era interpretada como o reconhecimento da faculdade de requerer a separação de um cônjuge que cometera adultério com outrem, sem com isso dissolver o vínculo conjugal. Mais recentemente pensa-se, com sólidos fundamentos, que não se trata de uma verdadeira exceção, mas da condenação das uniões ilícitas, tipo concubinato, que gozavam de um certo reconhecimento legal .
Outro texto bastante importante sobre esse assunto encontra-se no Sermão da Montanha, e refere-se ao adultério do coração como um pecado similar ao adultério do corpo:
“27Ouvistes o que foi dito: Não cometerás adultério. 28Pois eu vos digo: Todo aquele que lançar um olhar de cobiça sobre uma mulher, já cometeu adultério em seu coração” (Mt 5,27-28).
Tudo isso é uma denúncia da realidade da concupiscência – o “desejo” – e, ao mesmo tempo, a explícita aplicação da função determinante do “interior do homem” na moral cristã .
O adultério, porém, não é o único pecado contra a castidade condenado pelo Senhor. Nos sinóticos encontramos, por exemplo, outros dois textos paralelos que são como a continuação do trecho anterior, no sentido de que ilustram o problema do coração ou – para usar uma expressão de João Paulo II – do “homem da concupiscência”:
“19Porque do coração provêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, a prostituição, os roubos, os falsos testemunhos, as calúnias. 20É isso o que torna alguém impuro. Mas comer sem lavar as mãos, isso não torna ninguém impuro” (Mt 15,19-20).

“21Pois é do interior do coração das pessoas que provêm os maus pensamentos, a prostituição, os roubos, os homicídios, 22os adultérios, as cobiças, as perversidades, as fraudes, a desonestidade, a inveja, a difamação, o orgulho e a insensatez. 23Todos estes vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem” (Mc 7,21-23).

Nestes dois textos encontramos, como também em algumas das Cartas de São Paulo, um catálogo de vícios que nascem do coração, do interior do homem, das tendências ao pecado presentes no homem decaído. Entre estas podem-se notar a fornicação (), o adultério () e a impudicícia (). É evidente que a impureza deve estar bem longe das relações entre marido e esposa.
2. São Paulo e os outros escritos apostólicos
As Cartas de São Paulo também são de fundamental importância para a Moral Sexual Cristã. O Apóstolo trata sobretudo de dois argumentos:
a) O Matrimônio e a Virgindade
b) A malícia e a gravidade dos pecados de impureza
O aspecto mais característico da doutrina paulina é o caráter quase exclusivamente teológico de sua argumentação. Nas cartas, endereçadas às primeiras comunidades cristãs, a pessoas que muitas vezes conhecia bem, São Paulo, mais do que sobre motivos de ordem natural – também presentes na pregação do Evangelho – insiste na relação pessoal do cristão com Cristo. Na 1Cor 6, por exemplo , um dos textos paulinos mais conhecidos, explica:
9Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus? Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, 10nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus. (...) 12Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo me é permitido, mas eu não me deixarei dominar por coisa alguma. 13Os alimentos são para o estômago e o estômago para os alimentos: Deus destruirá tanto aqueles como este. O corpo, porém, não é para a impureza, mas para o Senhor e o Senhor para o corpo: 14Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará a nós pelo seu poder. 15Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo algum! 16Ou não sabeis que o que se ajunta a uma prostituta se torna um só corpo com ela? Está escrito: Os dois serão uma só carne (Gn 2,24). 17Pelo contrário, quem se une ao Senhor torna-se com ele um só espírito. 18Fugi da fornicação. Qualquer outro pecado que o homem comete é fora do corpo, mas o impuro peca contra o seu próprio corpo. 19Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis? 20Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo (1Cor 6,9-10.12-20).

Se traduzirmos esta passagem em proposições esquemáticas, tem-se claramente a doutrina de fundo do Apóstolo:
a) A impureza exclui do Reino (a vinda do Reino é o argumento central do Evangelho).
b) Aos argumentos “naturalísticos” (“o sexo é para gozar da união carnal”) responde recordando que o sexo e a totalidade do corpo humano pertencem a Deus - o corpo do cristão é membro do Corpo de Cristo - e a prova desta pertença é a Ressurreição.
c) Não se pode dar a uma prostituta o que pertence a Cristo e é inseparável dEle: peca-se contra Cristo.
d) Nisto também se peca contra o próprio corpo.
e) E também contra o Espírito Santo, que faz, do corpo do cristão, um templo Seu.
f) O preço que Cristo pagou pelo domínio de nosso corpo, para salva-lo da morte eterna, é elevadíssimo .
Em Rm 1, São Paulo se fundamenta, contrariamente à sua fundamentação na 1Cor, na Lei Natural, para condenar com palavras muito fortes o pecado de homossexualidade.
“26Por isso (pela sua soberba) Deus os (pagãos) entregou a paixões vergonhosas: as mulheres mudaram o uso natural em uso contra a natureza. 27Os homens também, abandonando o uso natural da mulher, arderam em desejos uns pelos outros, homens com homens, cometendo torpezas e recebendo em si mesmos a paga devida a seus desvarios” (Rm 1,26-27).
No tocante ao matrimônio e à virgindade, são fundamentais a 1Cor e Ef.
Lemos em 1Cor 7,1-11:
“1Começando a tratar do que me escrevestes: bom é para o homem não tocar mulher, 2mas, para evitar a impureza, tenha cada um a sua mulher, e cada uma tenha seu marido. 3O marido cumpra o dever conjugal para com a mulher e igualmente a mulher em relação ao marido. 4A mulher não tem poder sobre seu próprio corpo, mas o marido; e igualmente o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas a mulher. 5Não vos recuseis um ao outro, a não ser de comum acordo por algum tempo, para vos dardes à oração, e de novo voltai a coabitar, a fim de que Satanás não vos tente de incontinência. 6Isto vo-lo digo como concessão e não como preceito.
7Quisera que todos os homens fossem como eu; mas cada um tem de Deus a sua própria graça; este uma, aquele outra. 8Contudo, aos não-casados e às viúvas eu digo: é melhor para eles que permaneçam como eu. 9Mas, se não podem guardar continência, casem-se, pois melhor é casar do que abrasar-se.
10Aos casados, porém, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido – 11se estiver separada, não torne a casar, ou então reconcilie-se com o marido – e o marido não repudie a mulher”.

São Paulo aproveita a ocasião de uma série de questões que lhe tinham sido apresentadas para recomendar a virgindade, sublinhando, porém, que cada qual tem o seu carisma, o dom da Graça, e que a esse dom deve adequar o seu estado de vida. Na linha de uma concepção do matrimônio como união de corpos, querida e estabelecida por Deus, propõe algumas conclusões de natureza prevalentemente ascética: a união conjugal como remédio da concupiscência e defesa contra as tentações do maligno. Em outras palavras, o Apóstolo aplica a este caso um conceito de fundo, implicitamente ligado ao caráter sacramental do matrimônio, que é a fé na sua força santificadora .
Esta doutrina é completada e enriquecida de uma nova perspectiva em Ef 5,25-32:
“25Maridos, amai vossas esposas, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, 26para santificá-la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, 27para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível. 28Assim os maridos devem amar suas mulheres, como a seu próprio corpo. Quem ama sua mulher, ama a si mesmo.
29Decerto, ninguém odeia sua própria carne mas a nutre e trata como Cristo faz com sua Igreja, 30porque somos membros de seu corpo 31Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne (Gn 2,24).
32Este mistério é grande, quero dizer, com referência a Cristo e à Igreja”.

O contínuo confronto que São Paulo faz entre a união conjugal dos esposos e a união espiritual do Messias e da Sua Esposa acrescenta uma nova dimensão ao amor humano: oferece-lhes um protótipo e, para os cristãos, um sustento da graça.
Finalmente, São Paulo, neste texto aos Efésios, como em outros lugares onde exorta os esposos a se amarem mutuamente (cf. Ef 5,22-23; Cl 3,18), usa a palavra , o que significa que o amor entre os esposos, para além do “eros” deve ser amor de caridade , ou seja, o mesmo amor pelo qual Deus ama os homens e os enche com os dons de Cristo, que é o mesmo amor com que Cristo ama a Sua Esposa: um amor, portanto, sobrenatural, que leve o amor conjugal e o torna santo .
De tudo que vimos, fica evidente que, na perspectiva tanto do Antigo como do Novo Testamento e no horizonte das primeiras comunidades criadas pelos Apóstolos, a vida sexual e o matrimônio constituem dois conceitos que se sobrepõem, no sentido que não se pensa a um exercício da sexualidade moralmente aceitável a não ser no interior de uma comunidade de vida e união pessoal que supõe o pacto conjugal. Os judeus tendem a destacar a parte da justiça – sobretudo os direitos do marido legítimo sobre a mulher -; os cristãos colocam em primeiro plano o papel da caridade, a agápe, que fortifica e eleva o amor conjugal.
Fora da união dos esposos, qualquer outra forma de atividade sexual (adultério, fornicação, sodomia, onanismo, bestialidade, prostituição etc…) é firmemente condenada, sustentando tal condenação com argumentos muito diversos, pelos motivos ditados pela experiência e pelo bom senso, típicos dos livros sapienciais, ou pela necessidade de proteger a vida comunitária, característica do Deuteronômio e do Levítico, por motivos de natureza mais abertamente religiosa, como os textos dos profetas, a referência de Jesus ao desígnio originário de Deus e ao seu completo cumprimento escatológico, as razões cristológicas que oferece São Paulo.
Pela Revelação ficam evidenciadas as seguintes verdades:
a) Deus criou o ser humano, macho e fêmea, varão e mulher, ambos imagem Sua, com igual dignidade e idêntica responsabilidade diante do gênero humano e de todo o mundo visível;
b) O homem e a mulher são complementares, e esta realidade é a base da atração dos sexos, primeiro passo em vista do amor inter-pessoal que leva ao dom-de-si e à comunhão de pessoas;
c) Dualidade de sexos, atividade sexual e amor são realidades “muito boas”, mesmo se após a queda original perdeu-se a integração e a ordem interior da pessoa humana;
d) A união conjugal pertence às coisas transitórias: dom-de-si e comunhão realizam-se também na virgindade, possível já neste mundo para quem o recebe agora como dom celestial, mas que será o estado definitivo dos filhos de Deus.
Capítulo VI: Sexualidade e castidade na doutrina dos Padres da Igreja
1. Introdução
À distancia de vinte séculos, pode-se afirmar que o núcleo central do ensinamento moral da Sagrada Escritura, no que diz respeito à sexualidade humana, chegou até nós integrado por uma melhor compreensão do plano originário de Deus e do papel do corpo no mistério do Reino. Nestes dois mil anos, muitas questões foram definidas e aprofundadas. A obra dos Padres da Igreja, ainda que complexa e nem sempre de fácil interpretação, sem dúvida assinalou a continuidade entre a pregação dos Apóstolos, recebida nas primeiras comunidades por eles fundadas, e as igrejas particulares que floresceram tanto no Oriente como no Ocidente.
Desde o início surgiram posições dissidentes e até hostis à realidade corpórea, e mais concretamente à sexualidade. Na medida em que estas não eram plenamente conformes à fé cristã, afastando-se dela ou contradizendo-a, não faltou quem, entre os Padres, vez por vez, segundo os tempos e lugares, assumiu a tarefa de combater essas doutrinas errôneas, reafirmando a doutrina católica apostólica.
No estudo dos textos patrísticos é inútil querer encontrar um tratado sistemático completo sobre os temas da sexualidade. Tal estilo só será inaugurado pelos escolásticos medievais e continuado, com outra metodologia, pela teologia moderna. Os escritos dos Padres expõem os conceitos quase sempre em função de uma circunstância particular: catequética, apologética, pastoral, polêmica etc. o que significa que os argumentos não são desenvolvidos quase nunca per se, mas secundum quid, isto é, na perspectiva viva e real, ainda que contingente, do problema que se deseja resolver. Assim, por exemplo, um mesmo autor não mostrará a mesma estima pela castidade conjugal ou pela castidade virginal se escreve a uma viúva que quer casar-se de novo ou a uma jovem indecisa em abraçar ou não o estado virginal; igualmente, serão muito diferentes dessas respostas sua impostação e ênfases se escreve um livro em resposta a um herético que nega a bondade do matrimônio.
2. A doutrina nos três primeiros séculos
Pelo que sabemos através dos Atos dos Apóstolos, das cartas apostólicas e dos primeiros escritos patrísticos, na primeira Igreja a sexualidade e oi matrimônio eram duas realidades que se superopunham, no sentido que não se concebia nem a possibilidade de um comportamento sexual lícito que não fosse dentro da aliança matrimonial. Ambos, sexo e núpcias, gozavam de justa consideração e respeito, como dom de Deus em Cristo, isto é, pertencente não só à ordem da criação, mas também à da redenção. As cartas apostólicas traziam conselhos e orientações úteis para os casados (além dos textos já citados pode-se ver Cl 3,18-19; Tt 2,4-5; 1Pd 3,1-4). O estado de virgindade era assumido normalmente noi espírito de Jesus: não por desprezo ao sexo, mas propter regnum coelorum, por causa do Reino dos Céus.
a) Algumas dificuldades
Sobre este pano de fundo homogêneo não faltam algumas luzes e sombras, muito compreensíveis no contexto de uma Igreja cheia de ímpeto e de fervor, onde se tem a clara percepção de que o matrimônio é uma estrutura provisória chamada a deixar lugar a um novo estado onde não há lugar para as núpcias. A escolha do celibato pelo Reino dos Céus por parte de alguns eleitos, segundo o ensino de Cristo recordado na lição anterior, é sinal antecipado daquele estado que será definitivo para todos no Reino. Se a isto se acrescenta a incerteza, em algumas comunidades, a respeito da iminência ou não da parusia (pense-se na Primeira Epístola aos Tessalonicenses 1Ts) é lógico que alguns se indagassem se valia a pena casar-se.
Algumas frases da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios podiam ser interpretadas nessa direção. De fato diz o Apóstolo:
“27Estás casado com uma mulher? Não busque separar-te. Estás livre de mulher? Não busques casar-te. (…) 29Isto vos digo, irmãos: o tempo se fez breve; de agora em diante aqueles que tem mulher vivam como se não tivessem” (1Cor 7,27.29).
A estas hesitações se acrescentaram, sobretudo no Oriente, os impulsos para formas de ascese muito rigorosas, que sem desviar-se ainda da genuína doutrina de Cristo, aceitavam motivações não especificamente evangélicas como, por exemplo, a fuga do mundo, entendida mais como rejeição da criação do que como busca de Deus.
Além disso, os primeiros cristãos viviam em um tempo em que não faltavam, tanto no ambiente judaico como na cultura helenística – e sobretudo nesta – fortes correntes de opinião que depreciavam a presente condição humana. Para esses o corpo era o “cárcere” do espírito (como se sabe este era o parecer de Platão – ver Górgias 493a; Fédon 66b etc.) ou, de alguma forma, uma punição da qual era necessário libertar-se (como até hoje, no espiritismo); e na sexualidade não só viam um sinal da pertença do homem ao reino animal, mas até a fonte de todas as degenerações e desgraças. (Enquanto para os gregos esse juízo negativo sobre a presente condição humana era conseqüência do seu fatalismo histórico, entre os hereges cristãos foi conseqüência de um erro dogmático acerca de Deus e de Cristo).
b) As primeiras heresias sobre a natureza da sexualidade humana
São Paulo já aludia a certos sujeitos que se afastarão da fé e proibirão o matrimônio (cf. 1Tm 4,3). Ainda em vida de São Paulo, nasceu uma forma de ascetismo extremo que pregava a pobreza rigorosa e condenava o matrimônio e a procriação. Essa tendência ficou conhecida como encratismo (de , que significa continência. De inspiração encrática são textos apócrifos como o Evangelho segundo Tomé e vários “Atos dos Apóstolos” (Pedro, André, Paulo, João, Tomé etc.). No século II encontramos dois autores bastante notáveis: Taciano, autor de Da perfeição segundo o Salvador, e Julio Cassiano, que escreveu Da continência ou da eunuquia). O encratismo era uma verdadeira heresia, porque antes de tudo negava a fé católica sobre a criação, fundando-se em uma falsa interpretação dos primeiros capítulos do Genesis. Entre outras coisas afirmavam que o corpo tinha sido criado após a queda, ou seja, quando o Senhor Deus fez para o homem e a mulher túnicas de peles e os vestiu (cf. Gn 3,21).
Para os encráticos o corpo era um elemento estranho ao homem, quase uma conseqüência do pecado, e o sexo era concebido como a máxima expressão da pecaminosidade, porque justamente por seu meio se geram novos corpos assinalados pelo mal. Daí concluíam a necessidade de evitar o acasalamento e a procriação, para inaugurar uma nova humanidade purificada.
O rigorismo moral dos encráticos continuou, no século II, através do montanismo. Montano pertence ao século II. Proclamando-se porta-voz e encarnação do Espírito Santo, era contrário às segundas núpcias. Em 207, Tertuliano tornou-se montanista, atraído pela moral fortemente ascética e rigorosa desse movimento. O montanismo foi uma heresia caracterizada pelo profetismo e pela confusa espera da Parusia, estendendo-se, mais tarde no messalianismo no Oriente e no priscilianismo na Espanha. Com uma impostação doutrinal diversa, fundada no princípio dualista, o gnosticismo e o marcionismo no século II e o maniqueísmo, nos séculos III e IV, sustentavam um juízo moral absolutamente negativo sobre a sexualidade.
Por gnosticismo entendemos o movimento religioso, de natureza sincretista, nascido no século I da Era Cristã. Este professava o dualismo: a radical contraposição entre dois mundos – luz e trevas, espírito e matéria – que postula a duplicidade de princípios criadores. Ainda que alguns grupos gnósticos foram libertinos, o seu juízo de fundo sobre a sexualidade era bastante negativo.
Marcião (inspirador do marcionismo) viveu e morreu no século II, e também proibia o matrimônio e a procriação para antecipar o fim deste mundo criado pelo Deus cruel (segundo ele) do Antigo Testamento.
Fundado por Manes, no século III, o maniqueísmo era uma seita que misturava elementos judaicos, cristãos, mazdeístas e budistas. A idéia de fundo era um dualismo de tipo gnóstico. Esta seita reaparece sob diversas vestes heréticas ao longo da história da Igreja.
c) A doutrina dos Padres
Não seria difícil recolher informações mais ou menos isoladas deste ou daquele Padre da Igreja que parecem incompreensíveis, dificilmente conciliáveis com a doutrina posteriormente enunciada pelo Magistério, e até qualificáveis como errôneas. Por exemplo, Atenágoras denomina as segundas núpcias como «um adultério decente» ( - na Legatio pro Christianis, 33; PG 6 965). Dídimo, o Cego, diz que o termo imagem significa que os protoparentes tinham uma natureza imaterial e que nas túnicas de peles não se pode entender outra coisa que não sejam os corpos (cf. Sobre o Gênesis, 3,21; SCh 233, p.251). São Gregório de Nissa afirma que a distinção entre macho e fêmea é alheia à imagem divina (cf. De hominis opifici, 16; PG 44,82). São João Crisóstomo sustenta que no paraíso as relações seriam «supérfluas e só mais tarde, devido à nossa fraqueza se tornaram necessárias» (cf. De Virginitate, 15,2; SCh 125, p. 147), e se não tivesse havido o pecado original, Deus teria provido de outro modo à perpetuação (melhor, multiplicação, disseminação) da espécie humana, etc.
Esses exemplos, como tantos outros que poderiam ser recordados, demonstram, de saída, a complexidade do estudo e da exegese dos Santos Padres, para discernir quando ensinam como testemunhas da Tradição de quando ensinam como simples autores particulares. Como observamos acima, é também indispensável levar em conta tanto o divario cultural que separa mais de dezesseis séculos de história como o contexto no qual essas opiniões foram expressas, muitas vezes em função de uma sentença errada que querem contradizer. Santo Agostinho, por exemplo, foi acusado de maniqueísmo com base nos livros que escreveu contra os pelagianos. Além disso, num mesmo Padre podem-se isolar afirmações contraditórias: um exemplo típico é o já supracitado São João Crisóstomo, e isto explica-se pela grande quantidade de escritos, a variedade dos objetivos perseguidos e a diversidade de estilos empregados.
Em todo caso, a obra dos Padres da Igreja dos primeiros três séculos, no que diz respeito à moral sexual, pode ser caracterizada pelos seguintes pontos:
1. Afirmação, de um ponto de vista objetivo, do valor superior da renúncia à prática sexual (virgindade) em comparação à sua prática mesmo lícita (matrimônio). Enquanto os Padres orientais, diante da sugestão levantada pelo fenômeno da ascese, que determinou a ‘anachôresis, tiveram que insistir um pouco mais na bondade das núpcias, no Ocidente fez-se mais necessário sustentar a virgindade, antes ridicularizada pelos pagãos, e depois também rejeitada por alguns cristãos como Elvidio, Joviniano, Vigilâncio etc.
O princípio geral sustentado pelos Padres poderia ser formulado assim: cada qual é livre de renunciar ao matrimônio e, se o faz pelo reino, escolhe a melhor parte; mas ninguém tem o direito de proibir aos outros as núpcias ou o exercício da prática sexual entre esposos legítimos: cada fiel deve seguir o seu próprio dom ou carisma.
Santo Ambrósio exprime bem esta posição no seu volume sobre a virgindade: «nem quem escolheu – diz – o matrimônio despreze a integridade, nem quem segue a integridade condene o matrimônio. De fato, a Igreja já condenou os intérpretes adversários desta doutrina» (SANTO AMBRÓSIO, De Virginitate 6,34; in Sancti Ambrosii Episcopi Mediolanensi Opera, v. 14/1, Milano – Roma 1989, p. 37).
2. Luta contra as heresias utópicas citadas acima. Um bom exemplo disto encontra-se no III Livro dos Stromata, de Clemente de Alexandria, p. 351-428 da edição de G. Pini, ed. Paoline, Milano 1985. Estes erros, do ponto de vista moral, tinham em comum uma impostação que hoje chamaríamos rigorista, ao menos em linha teorética. O laxismo sexual foi um problema doutrinal relativo. No texto citado anteriormente, Clemente de Alexandria combate a seita fundada por Carpazio, que, entre outras coisas tinham mulheres em comum. Mesmo se, naturalmente, não faltavam cristãos que em sua vida privada deixavam muito a desejar, ninguém, nem mesmo os interessados – nutria a mínima dúvida em qualificar como pecaminoso seu comportamento libertino. A fornicação era considerada um pecado grave, como o adultério.
3. Tendo que dar uma razão clara para a liceidade do ato conjugal, enquanto Tertuliano cria a fórmula remedium concupiscentiae e outros Padres insistem nesse aspecto apoiando-se em São Paulo (propter fornicationem cf. 1Cor 7,2), a maior parte dos Padres verá na geração dos filhos o argumento mais evidente em favor das núpcias. São chamados assim procreacionistas e são, por exemplo, Atenágoras, São Justino, Tertuliano, Orígenes e São Jerônimo. Para se ter uma idéia, na stoa se ensinava que as núpcias tinham valor exclusivamente para procriar filhos. No direito romano justifica-se a esposa liberorum quaerendorum causa.
Isto não deve fazer pensar que, para eles, procriar seja o único fim lícito da união dos corpos ou que fossem pouco sensíveis a outros aspectos da sexualidade. Os Padres não foram homens e pastores fora do seu tempo, e conheciam muito bem os problemas da vida matrimonial e familiar. Muitos Padres, como São João Crisóstomo, aceitam a liceidade da relação matrimonial também em casos de esterilidade e durante a gestação. Basta porém ler as numerosas obras escritas sobre o tema para dar-se conta de como os Padres fossem conscientes da problemática conjugal. Um exemplo muito persuasivo é um pequeno opúsculo de São João Crisóstomo, Elogio de Maximo, onde expõe os critérios para a escolha da esposa . Deve-se notar, porém, que assumindo a fórmula liberorum procreandorum causa, os Padres demonstram ver uma conexão inseparável entre união de corpos e geração da prole. Este princípio, junto ao da liceidade exclusiva da prática sexual matrimonial conjugal, constitui como o coração da moral sexual reconhecida pelos Padres da Igreja.
3. Santo Agostinho: seu influxo sobre a teologia da sexualidade.
Como em muitos outros argumentos de grandíssima relevância doutrinal, a personalidade e os escritos do Bispo de Hipona deixaram uma marca única na história da teologia cristã. A sua doutrina sobre o sexo foi objeto de muitos estudos, nem sempre, porém, equilibrados e objetivos . Criou-se até um certo clichê segundo o qual Santo Agostinho teria sido um antagonista inexorável de tudo o que se refere a sexo. Esse juízo sumário não resiste a um exame mais ponderado . Na verdade Santo Agostinho ocupou-se bastante do tema da concupiscência, sobretudo na polêmica contra os pelagianos e defendendo-se de Juliano de Eclana que o acusava de maniqueísmo e de proibir as núpcias. Para o Bispo de Hipona, a concupiscência não é nem o sexo nem o prazer, mas uma desordem causada pelo pecado original.
Santo Agostinho foi um escritor fecundo e longevo. Desde a sua conversão, em 386, até sua morte, ocorrida em Hipona a 28 de agosto de 430, escreveu continuamente sobre tudo ou quase tudo. Por isso, o estudo de seu pensamento deve levar em conta não só a evolução de uma reflexão que se desenvolve por mais de quarenta anos, mas também ênfases que dependem de circunstâncias provisórias. As obras mais conhecidas em nosso tema são De bono coniugali (400) e De nuptiis et concupiscentia (418-419) . A doutrina de Santo Agostinho sobre a sexualidade se completa, porém, nas suas últimas obras, sobretudo em De civitate Dei, Opus imperfectum contra Iulianum e Contra duas epistulas pelagianorum.
Santo Agostinho foi o primeiro Padre da Igreja a elaborar uma teologia completa dos bens do matrimônio: bonum prolis, bonum fidei, bonum sacramenti (filhos, fidelidade, indissolubilidade). Com ele se afirma a doutrina dos fins do matrimônio, segundo a qual a fecundação não é a única razão para o ato conjugal, mas ocupa o primeiro lugar, porque a geração dos filhos objetiva não tanto encher a terra de pessoas mas fazer crescer a Igreja e a povoar os Céus até o completamento do número dos eleitos.
Eis dois exemplos do pensamento de Santo Agostinho, nos quais se evidencia a importância do aspecto procriativo, o papel da união carnal para promover o amor entre os esposos e o caráter essencialmente desordenado do pecado:
«Deve-se considerar que Deus nos concede alguns bens que são desejáveis por si mesmos, como a sabedoria, a saúde, a amizade; outros que são necessários para uma meta diversa deles mesmos como a doutrina, o alimento, a bebida, o sono, o matrimônio, a união carnal. Entre os bens desse segundo tipo, alguns são necessários para alcançar a sabedoria, como a doutrina; alguns para conservar a saúde, como o alimento, a bebida, o sono; outros para cultivar a amizade, como as núpcias ou as relações carnais: desses relacionamentos deriva efetivamente a continuação do gênero humano, para o qual a unidade criada pelo afeto (do marido e da esposa) é um tão grande bem. Então, se utilizando esses bens que são necessários para se conseguir outros, alguém os endereça a uma meta diferente para a qual foram criados, peca, às vezes de maneira venial, às vezes de maneira mortal» (De bono coniugali 9,9).
Para Santo Agostinho o perigo promana da sede de prazer voluptuoso e, portanto, a união dos corpos é boa sob a condição de que a vontade racional domine sobre a libido:
«O ato conjugal cumprido com a intenção de gerar filhos não é, por si mesmo, pecaminoso, porque a boa orientação da vontade consegue guiar o prazer corporal que daí brota, sem ser guiado por ele e sem que o arbítrio humano seja subjugado e conduzido pelo pecado e, nesse caso, a ferida produzida pelo pecado é reconduzida, como é justo, a serviço da procriação» (De nuptiis et concupiscentia 1,12,12).
Nas suas últimas obras, Santo Agostinho distingue, com maior propriedade, entre tendência sexual e desordem da concupiscência, e se reconhece um papel positivo ao prazer, sempre que este seja regulado pela vontade.
Santo Agostinho aborda também o problema da contracepção e a condena severamente. O uso de anticoncepcionais (venena sterilitatis), diz, é conseqüência de uma «voluptuosa crueldade» ou de uma «cruel volúpia» (De nuptiis et concupiscentia 15,17).
4. Conclusão
Como conclusão deste capítulo, pode-se fazer notar de novo que os Padres da Igreja guiam a uma concepção da moral sexual cristã que é caracterizada pelos seguintes traços:
a) funda-se sobre o princípio de fé de que a sexualidade é criação de Deus;
b) esta pode ser exercida licitamente somente dentro do matrimônio e sob determinadas condições;
c) não se concebe uma união de corpos que, ao menos na intenção dos cônjuges, não seja procriativa.
Capítulo VII: A contribuição teológica do período patrístico até à Idade Média
A Igreja, no seu dinamismo vital assistido pelo Espírito Santo, marcou os séculos com datas e acontecimentos que são como a memória de sua história e o testemunho d fé e da vida dos crentes. Os Concílios – tanto os ecumênicos como os particulares – a Liturgia, e as Normas ou Cânones emanados para guiar segundo o direito o Povo de Deus, constituem exemplos dos mais significativos.
1. Doutrina dos Concílios do IV ao XIV século.
Sendo a sexualidade um tema de primeira importância doutrinal e pastoral, o esforço para combater as heresias e os desvios dos costumes na vida sexual não foi uma missão sustentada isoladamente pelos Padres da Igreja a título pessoal. A Igreja interveio com a sua própria autoridade para dirimir questões nodais, seja do ponto de vista da fé como da disciplina. Os documentos que chegaram até nós representam uma parte reduzida dos decretos aprovados em inúmeras assembléias conciliares ou sinodais no período que vai do IV ao XIII século; mas constituem uma amostra significativa da qualidade do empenho magisterial.
Um exemplo das medidas disciplinares que se tomavam para impedir a divulgação entre os cristãos de comportamentos contrários ao Evangelho é a Traditio Apostolorum, escrita em meados do século III e atribuída a Santo Hipólito . Mesmo que não pertença propriamente ao magistério oficial, gozava de grande autoridade. No cânon 2 lê-se que, para admitir candidatos ao catecumenato, se deverá «investigar sobre as ocupações e profissões daqueles que se apresentam para serem instruídos. Se algum possui um prostíbulo, deverá deixá-lo ou não será admitido» (Traditio Apostolorum, 16 (SCh 11bis, p. 71). No Concílio de Elvira, pelo ano 300, foram promulgados mais de 20 cânones referentes a essa matéria. Para o delito de fornicação foi estabelecida a mesma penalidade que para a idolatria e para o homicídio, isto é, a excomunhão vitalícia.
Relevo maior ainda que estas medidas disciplinares tiveram os “anátemas” promulgados contra os erros assinalados no capítulo precedente. No Ocidente, por exemplo, o I Concílio de Toledo, pelo ano 400, e o Concílio de Braga, celebrado pela metade do século VI, condenaram diversas afirmações da heresia dos maniqueus e dos priscilianistas, e entre essas, algumas que negavam a bondade da sexualidade e do matrimônio e atribuíam a origem do corpo, não a Deus, mas a um espírito satânico.
Em Toledo foi aprovado o seguinte anátema:
«Se alguém afirmar ou crer que os matrimônios, os quais segundo a lei divina devem ser considerados lícitos, são, ao contrário, execráveis, seja excomungado» (DS 206).
Em Braga foram emanados três cânones . O primeiro afirma:
«Se alguém condena os matrimônios humanos e aborrece a procriação, como Manes e Prisciliano, seja excomungado» (cf. DS 461).
No Oriente, pela metade do século IV, o Concílio de Gangra condenou os sequazes de Eustácio de Sebaste, entre outras coisas porque rejeitavam o matrimônio e ensinavam que os casados não poderiam ser salvos.
Esses erros foram propostos sempre de novo em épocas sucessivas, especialmente no século XII, quando nasceu a mais importante heresia medieval: o movimento dos cátaros e dos albigenses. Nascido como um movimento reformista para o retorno da Igreja ao estilo de vida apostólico, o movimento cátaro teve muitos seguidores na Alemanha, França, Espanha e norte da Itália; logo degenerou tornando-se uma seita de matriz maniquéia, encabeçada por uma elite que se autodenominava “os puros” ( significa, justamente, “puro”). Os albigenses (da cidade francesa de Albi) tiveram grande difusão, sobretudo na Provença. Como os cátaros, professavam o dualismo maniqueu. Contra cátaros e albigenses, o IV Concílio de Latrão (XII ecumênico, ano 1215) definiu que não só os virgens e continentes merecem alcançar a felicidade eterna, mas também os esposados, os quais são agradáveis a Deus por causa de sua fé reta e das boas obras . Bento XII, em um opúsculo que recolhe alguns supostos erros dos Armenos (1341), reafirma a liceidade seja do matrimônio, seja do ato conjugal (cf. DS 1012).
Um século depois, o Concílio de Viena (XV ecumênico, celebrado nos anos 1311-1312) censurou alguns erros das seitas dos begardos e dos beguinos, cuja concepção sobre a sexualidade transparece na excêntrica afirmação – condenada pelo Concílio – segundo a qual o beijo é sempre um pecado mortal porque se trataria de uma ação contra a natureza, enquanto o coito, sendo um ato natural, seria indiferente, ainda mais se consumado sob o influxo da tentação (cf. DS 897). Assim como os cátaros, essas seitas distinguiam dois tipos de fiéis: os simples e aqueles já perfeitos. Estes últimos se consideravam impecáveis e, por isto, asseguravam que ações que eram pecado nos simples, para os perfeitos eram completamente lícitas, mesmo no campo da sexualidade.
Desses textos e de outros similares que, por brevidade deixamos de citar, brota com clareza a linha doutrinal da Igreja, que se pode condensar em duas proposições:
1) As promessas da vida cristã são iguais para todos e, portanto, não se pode sustentar que os fiéis que não vivam em continência perfeita por isto devam ser considerados de segunda categoria, ou que por isso não possam atingir a perfeição cristã.
2) Paralelamente ninguém é impecável e ninguém está isento da obrigação de observar os mandamentos: a fornicação constitui, portanto, um pecado mortal para quem a comete com plena advertência e consenso.
2. A teologia escolástica sobre a castidade
A partir do século XII, a escolástica iniciou a sistematização da doutrina sobre a sexualidade, definindo tecnicamente os conceitos e introduzindo divisões e distinções que permitiam precisar sempre mais o juízo moral. Enquanto ciência, a escolástica procura progredir na intelecção dos planos de Deus a partir da fé, segundo a famosa fórmula anselmiana: fides quaerens intellectum.
Junto a esse esforço, que se traduzia nas rationes convenientiae, teve um notável desenvolvimento a interpretação das fontes – as assim chamadas auctoritates – que procuravam conciliar onde não eram concordes, ou propor novas soluções que superassem as aparentes divergências.
No que diz respeito à moral, a escolástica traçou um quadro esquemático das virtudes e dos vícios, das relações entre eles e da gravidade específica dos diferentes pecados. Os limites deste tratado não permitem traçar um panorama nem mesmo sumário das diversas posições teológicas que se configuraram. Trata-se de um elenco impressionante de autores, desde os primeiros grandes escolásticos – Santo Anselmo (1033-1109), Pedro Abelardo (1079-1142), São Bernardo (1090-1153) e Pedro Lombardo (1100-1160), o mestre das sentenças – a Santo Alberto Magno (1205-1280), São Boaventura (1217-1274), São Tomás de Aquino (1224-1274) e Duns Scoto (1265-1308).
Todos estes autores estavam conscientes da urgência, seja no plano científico seja no plano pastoral, de oferecer respostas convincentes contra as correntes maniquéias de seutempo – das quais já falamos acima – mas também contra as tendências supersticiosas e o neo paganismo que assinalou boa parte da Idade Média; um paganismo modelado idealisticamente segundo o estilo do herói cavalheiresco, mas que conquistou também formas fortemente erotizadas, como testemunha a literatura da época. Pense-se, por exemplo, nos livros de cavalaria que exaltavam o amor cortesão, as paixões «impossíveis», as relações adulterinas, o recurso à magia para conquistar o amor etc. Não faltam nem obras-primas literárias sobre as técnicas de sedução.
O esforço principal da teologia escolástica, ao menos no que toca à doutrina sobre a sexualidade, endereçou-se no sentido de oferecer uma explicação racional do ensino recebido da sagrada Escritura e dos Padres da Igreja acerca de três argumentos principais:
o sexo , na origem, foi criado bom, mas após o pecado dos primeiros progenitores ficou contaminado pela concupiscência;
qualquer forma de atividade sexual fora do matrimônio é ilícita;
a rejeição do fim natural do ato conjugal, ou seja, do fim procriativo, é sempre pecado grave.
A propósito desse último princípio, leve-se em conta que a procriação não era entendida de modo redutivo, como somente a geração de filhos, mas estende-se também à sua educação humana e cristã: o fim principal da união entre os esposos não é «fazer filhos» mas formar homens e mulheres que possam tornar-se filhos de Deus.
Tal conceito do fim natural é particularmente importante na teologia escolástica, porque constituía a chave hermenêutica para interpretar a lei natural (lei da natureza) que é, ao mesmo tempo, a lei sobrenatural conhecida pela Revelação, o critério de discernimento para ajuizar a validade moral de qualquer comportamento, também o sexual.
Referindo-se à Revelação os escolásticos falam da lei divino-positiva, emanada pela Sabedoria de Deus, escrita e promulgada em livros sagrados. Na natureza humana, por seu lado, esta «inscrita» a lei divino-natural – também esta é participação da Sabedoria Divina – segundo a qual cada coisa é orientada para um fim próprio, que ninguém pode manipular. A razão humana descobre essa ordenação e, confrontando as exigências fundamentais do homem (por exemplo, a necessidade de nutrir-se e a necessidade de preservar a saúde, de trabalhar e de repousar, de dizer a verdade e de defender a vida privada etc.) delibera como harmonizá-las e dita então a conduta a seguir em ordem ao bem integral da pessoa. Ao exprimir tal juízo, a razão deve sempre respeitar o fim próprio de cada coisa, de modo particular no campo da sexualidade.
Há muitos outros aspectos que não podemos examinar aqui. Não se pode porém deixar de anotar que um dos grandes méritos da escolástica é ter aprofundado o estudo da sacramentalidade do matrimônio.
3. O pensamento de São Tomás de Aquino na Summa Theologica e na Summa Contra Gentiles.
Para tornar mais concreta a idéia do estilo e da densidade conceitual da teologia escolástica, nada melhor do que analisar, ainda que sumariamente, o pensamento do mais autorizado entre os teólogos medievais, que ainda constitui ponto de referência constante para o estudo de questões fundamentais da ciência sagrada.
Em relação a outros estudiosos, seus contemporâneos, São Tomás apresenta uma sistematização das virtudes bastante original – veja tabela anexa – ainda que inspirada na Ética a Nicômaco, de Aristóteles e na Summa de Creaturis, de Santo Alberto Magno.
Além da idéia de virtude, a filosofia aristotélica permitia, através dos conceitos de matéria e forma, uma compreensão mais unitária da pessoa humana, e portanto, melhor aparelhada para evitar os dualismos e as contraposições dialéticas entre o corpo e o espírito. É importante frisar que o elemento decisivo da doutrina de São Tomás sobre a sexualidade não é o instrumental aristotélico, mas o Livro do Gênesis.
As principais afirmações doutrinais do Aquinate podem condensar-se nos pontos seguintes:
1) O ato sexual não pode ser em si mesmo pecaminoso, porque é um comportamento necessário para o bem da espécie humana em seu conjunto. Requer-se, porém, que seja realizado na medida e com a ordem devida, segundo quanto estabelece a reta razão:
«Entre os atos humanos é pecaminoso o que vai contra a ordem da razão. Ora, a ordem da razão exige que tudo seja bem ordenado ao próprio fim. Por isso não é pecado que o homem se sirva de determinadas coisas para o seu fim, na medida e na ordem conveniente, uma vez que o fim seja algo verdadeiramente bom. Mas como é um verdadeiro bem a conservação da vida física de um indivíduo, assim também é um bem superior a conservação da espécie humana. E como à conservação do indivíduo é ordenado o uso dos alimentos, do mesmo modo à conservação de todo o gênero humano é ordenado o uso dos prazeres venéreos; segundo as palavras de Santo Agostinho: ‘O que é o alimento para a conservação do indivíduo, o é a cópula para a conservação da espécie’. Portanto, como se pode usar dos alimentos sem pecado, se se o faz na medida em que o exige a saúde do corpo, assim também o uso dos prazeres venéreos pode ser sem pecado se se o faz no modo devido, como o exige a finalidade da geração humana» (S. Th. II-IIae, q.153, a.2 c).
2) Diante da objeção fundamentada de que a razão não pode agir durante o orgasmo por causa da intensidade do prazer, o Santo responde afirmando ad absurdum que em tal caso seria também ilícito dormir. Um ato ordenado segundo a razão não pode tornar-se mau só por causa da intensidade da experiência sensível, porque para a virtude importa não a ausência do prazer mas o comportamento da vontade em relação ao prazer.
«A medida justa da virtude não é medida pela quantidade, mas pela conformidade com a reta razão. Por isso, a superabundância do prazer que está no ato venéreo ordenado segundo a razão não exclui a medida justa da virtude. Além do mais à virtude não importa quão grande seja o prazer dos sentidos externos, que depende mais das disposições físicas; mas quanto o apetite interior, ou vontade, esteja preso a tal prazer. E nem mesmo o fato de que a razão não seja livre de considerar coisas espirituais durante um dado prazer demonstra que tal ato seja contrário à virtude. De fato, não é contra a virtude interromper razoavelmente as funções da razão por um pouco de tempo; do contrário seria contra a virtude abandonar-se ao sono.
Porém o fato de que a concupiscência e o prazer venéreo não se submetem ao comando e ao governo da razão deriva como castigo do primeiro pecado: porque a razão rebelde a deus, explica Santo Agostinho (De Civitate Dei, c. 13), mereceu a rebelião da própria carne» (S. Th. II-IIae, q.153, a.2 ad 2m).
De fato, no artigo seguinte, São Tomás explica que a essência do pecado da luxúria está em «transgredir a norma da razão a propósito dos prazeres venéreos» (S. Th. II-IIae, q.153, a.3c).
3) Particularmente interessantes são os dois argumentos desenvolvidos para mostrar a malícia intrínseca da fornicação. Na Summa Theologica, depois de ter mostrado no sed contra por meio de autoridade o caráter gravemente pecaminoso da união carnal fora do matrimônio, São Tomás procura tornar mais evidente racionalmente como a fornicação se torna uma injustiça contra a criança que eventualmente venha a ser concebida:
«Para bem esclarecer o tema – diz – deve-se notar que são mortais todos os pecados cometidos diretamente contra a vida do homem. Ora, a fornicação implica uma desordem nociva à vida de quem pode nascer de um tal ato. (…) Ora, é evidente que para educar um homem não se requer somente o cuidado materno, que deve aleitá-lo, mas ainda mais premente se exige o cuidado paterno que deve instruí-lo e defendê-lo, e provê-lo seja dos bens externos, seja dos bens interiores. Portanto é contra a natureza do homem a cópula ocasional, mas é necessária a união de um homem com uma determinada mulher, com a qual ele deve conviver não por algum tempo, mas por toda a vida. Eis porque na espécie humana, por natureza, o homem preocupa-se de conhecer seguramente a sua prole, porque a ele compete o dever de educá-la. Mas esta segurança se perderia no uso da cópula ocasional. Bem, a orientação determinada a uma determinada mulher chama-se matrimônio. E é por isso que este diz-se ser de direito natural. Mas uma vez que a cópula é ordenada ao bem comum de todo o gênero humano e os bens comuns são objeto das determinações das leis, como vimos acima (cf. S. Th. I-IIae, q. 90, a. 2), é evidente que essa união do homem e da mulher, denominada matrimônio, deve ser determinada por alguma lei. Mas disso falaremos na Terceira Parte desta obra (a Summa Theologica, cf. Suplemento, q. 1ss), ao tratar do sacramento do matrimônio. Enfim, como a fornicação é uma cópula ocasional, porque feita fora do matrimônio, é contrária ao bem da prole. Daí ser pecado mortal.» (S. Th. II-IIae, q. 154, a. 2 c).
À objeção dos casos em que a mãe fornicadora disponha de abundantes meios ou o pai fornicador sustente a criança, São Tomás responde que o que cai sob a determinação da lei deve ser julgado segundo o caso comum, não segundo os casos particulares das condições especiais de cada um (cf. S. Th. II-IIae, q. 154, a. 2). De fato se a união carnal é para o bem comum da espécie humana, sua lei é “comunitária” e não admite exceções por condições extrínsecas dos que infringem essa lei natural.
Na Summa Contra Gentiles, São Tomás parte do axioma de que o esperma é necessário para a sobrevivência da espécie, que forma parte do bem do homem. Conseqüentemente, a emissão voluntária de esperma, feita de modo a evitar a concepção (masturbação, contracepção, sodomia etc.) ou não se garantir a conveniente educação da prole (fornicação) é contrária ao bem do homem, e portanto gravemente pecaminosa (cf. C.G. 13, c. 122).
O Santo usa tal argumentação ao enfrentar certo aspecto do problema da contracepção, que em sua época coincidia com a prática do coitus interruptus. Uma vez que o ato contraceptivo supõe a vontade de tolher à união dos corpos a capacidade procriativa, e portanto fica excluída qualquer conseqüência danosa para a prole (que não há), pareceria que o argumento contra a fornicação neste caso não seria válido . A isto responde:
«Não se deve reputar pecado não grave provocar a emissão do esperma fora do ato próprio da geração e do fim da educação da prole, pelo fato de que é pecado não grave e até mesmo não é pecado servir-se de outras partes do corpo para usos diversos daqueles preestabelecidos pela natureza, como, por exemplo, caminhar sobre as mãos ou fazer por meio dos pés o que normalmente se faz com as mãos. Porque de tal subversão de usos não é prejudicado gravemente o bem do homem. Contrariamente, a emissão desordenada de esperma humano é incompatível com o bem da natureza que é a conservação da espécie. Eis porque depois do pecado de homicídio, com o qual se destrói uma natureza humana já existente, este gênero de pecados que compromete a geração humana ocupa o segundo lugar» (C.G. 13, c. 122).
Como conseqüência, a fornicação deve ser sempre considerada como uma desordem grave que, ao contrário dos outros pecados contra a temperança, como a gula e a ebriedade etc., não admite parvidade de matéria:
«Um homem pode ser gerado por uma só cópula. Por isso a desordem da cópula, que impede o bem da eventual prole, é pecado mortal no seu gênero; e não somente pela desordem da concupiscência…» (S. Th. II-IIae, q. 153, a. 2 ad 6m).
Isto não exclui, no entanto, que possa haver faltas veniais contra a castidade, como, por exemplo, a união entre esposos motivada apenas pela concupiscência:
«E não é verdade que a fornicação seja o menor dos pecados de luxúria. De fato, o menor é a união entre cônjuges feito só pelo prazer (físico)» (ibidem).
Finalmente, aplicando a doutrina da ordenação aos fim contida na lei natural, São Tomás estabelece uma gradação entre as diversas espécies de pecado contra a castidade, colocando no ponto mais alto as desordens contra a natureza (cf. S. Th. II-IIae, q. 154, a 12 c).

Esquema do tratado sobre a virtude da castidade na Summa Theologica (II-IIae) de São Tomás de Aquino

Questão 151 Castidade 1. Se é uma virtude
2. Se é uma virtude geral
3. Se é distinta da abstinência
4. Se o pudor se refira à castidade

Questão 152 Virgindade 1. Se consiste na integridade física
2. Se é lícita
3. Se é uma virtude
4. Se é superior ao matrimônio
5. Se é a maior virtude

Questão 153 Luxúria 1. Se matéria da luxúria são só os atos venéreos
em geral 2. Se há um ato venéreo sem pecado
3. Se deve ser considerada pecado
4. Se é um vício capital
5. Quais são os vícios que provoca

Questão 154 Luxúria 1. Se se divide em seis espécies
em particular 2. Se a fornicação é pecado mortal
3. Se a fornicação é o pecado mais grave
4. Se os beijos podem ser pecados mortais
5. Se a polução noturna é pecado
6. Se o estupro é uma espécie de luxúria
7. Se o rapto é distinto do estupro
8. Se o adultério é uma espécie de luxúria
9. Se o incesto é uma espécie de luxúria
10. Se o sacrilégio é uma espécie de luxúria
11. Se o vício contra a natureza é uma espécie de luxúria
12. Se o mesmo vício é o mais grave dos pecados de luxúria


Capítulo VIII: A contribuição teológica desde a Idade Média até nossos dias
1. A evolução da Teologia Moral até Santo Afonso
O desenvolvimento da teologia moral, no que tange à sexualidade, da época medieval até o Concílio Vaticano II é caracterizada por uma evidente convergência sobre os princípios basilares dos teólogos mais autorizados. Concordância que não é... nem pelo fato de que muitos autores limitam-se quase que só a repetir, com ligeiras variações o que outros já haviam dito, nem pelas profundas divergências em outras questões, como na questão dos assim chamados ‘sistemas morais’. A impressão é de que muitos teólogos consideravam – não sem motivo – que os pontos essenciais da moral sexual cristã são tão coerentes com o depositum fidei a ponto de não poder ser objeto de discussão sem colocar ao mesmo tempo em discussão algumas questões de natureza dogmática, como o valor da Tradição, a missão do Magistério, o dogma do pecado original etc.
Muito oportunamente valorizou-se o fato de que ‘por cerca de oitocentos anos, a tradição católica afirmou unanimemente que o matrimônio é bom; a atividade sexual genital fora do matrimônio, isto é, o adultério, a fornicação, a masturbação, o comportamento homossexual e a bestialidade, é gravemente pecaminosa; e que, até dentro do matrimônio, algumas ações – especialmente a contracepção e a busca de orgasmo sem consumar o coito – são intrinsecamente maus .
Esta unanimidade quase monolítica nas “conclusões”, apresenta-se, porém, menos compacta quando se considera a fundamentação fornecida pelos vários teólogos. De fato, entre os séculos XIV e XVI, por motivos cuja explicação transcende este texto (a queda da escolástica e o nominalismo), na ciência moral afirma-se uma orientação que se propunha não mais propor ao homem um sentido e um fim último pelo qual valia a pena despender a vida sem reservas, mas mais simplesmente indicar o limite entre o lícito e o proibido, de modo que o homem pudesse regular a sua conduta fazendo o bem, ou, ao menos, evitando o mal.
Desse modo, enquanto na impostação de São Tomás o comportamento moral é ordenado ao bem do homem, na perspectiva inaugurada por Guilherme de Ockam (1280-1349) ordenado ao respeito da norma moral. Essas posições podem parecer complementares; ao contrário, assumidas coerentemente até suas últimas conseqüências, resultam radicalmente contrárias, porque se a primeira afirma que um bem torna-se matéria de uma norma moral justamente porque é bom (posição metafísica – o fundamento está no ser e no conhecimento do ser – consoante como Novo Testamento), a segunda sustenta que algo é um bem moral somente se existe uma lei que ordena considerá-lo assim (posição jurisdicista, legalista, idealista – o fundamento está na autoridade e não na realidade, a qual não se conhece nem se considera – posição mais consoante com o Antigo Testamento).
Segundo esse voluntarismo ético, na ausência de um mandamento ou uma proibição as coisas não seriam nem boas nem más, e não teriam nenhum significado moral. Ainda mais: a bondade ou malícia de algo depende da vontade do legislador. Isto significa que Deus poderia fazer ou mandar coisas contraditórias. Por exemplo, todas as coisas criadas são boas porque Deus assim estabeleceu, mas com um outro decreto de sua vontade poderia torná-las más.
No campo de virtude da castidade, essa tendência desembocou em uma dupla e aparentemente contraditória versão laxista e rigorista . Mas, enquanto o rigorismo se exprimia sobretudo em um comportamento de excessiva, e às vezes quase patológica, apreensão e meticulosidade, o laxismo chegou a firmar algumas teses em flagrante contraste com a Tradição, o que motivou a intervenção do Magistério da Igreja.
O representante mais característico do laxismo foi o bispo João Caramuel (1606-1682), autor de uma Theologia moralis fundamentalis, que passou à história como princeps laxistarum. Caramuel sustentou posições que suscitaram uma forte reação polêmica, sobretudo na França e na Bélgica. Em perfeita aderência ao princípio voluntarista, ensinava que o ato de fornicar, em si mesmo não comportaria nenhum mal para a pessoa, ainda que, na prática, a fornicação deva ser evitada porque há um mandamento que veta este tipo de ação . Levando avante esse modo de pensar, afirmava que a masturbação não é proibida pela lei natural. Daí que, se Deus não a houvesse proibido, em muitos casos seria uma coisa boa e às vezes até obrigatória .
No século XVIII impôs-se a figura providencial de Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787). A sua Theologia Moralis dá uma orientação equilibrada e fiel à Tradição. Mas já estava muito consolidada entre os moralistas a orientação prevalentemente normativa, e a teologia moral era concebida sobretudo como instrumento a serviço do confessor em ordem a estabelecer um juízo moralmente seguro sobre a liceidade das ações singulares dos penitentes. As questões eram estudadas não mais em vista das virtudes, mas segundo o esquema dos mandamentos. O escopo principal era capacitar o estudante a julgar se determinado comportamento era pecado ou não, se era grave ou leve, de que espécie ínfima, um ou múltiplo, se seria lícito absolver etc.
No que tange à sexualidade, Santo Afonso dedica ao estudo do 6.º e do 9.º Mandamentos um capítulo dividido em 4 seções – ou “dúvidas” – compreendendo ao todo 73 questões.
O teor do tratado pode-se captar bastante bem pelo elenco dos argumentos da primeira seção, que apresentamos a seguir:
Dubium I: An at quanta peccata sint oscula, amplexus, tactus, verba obscoena, et simila, extra matrimonium.
413 – Quae sit delectatio venerea, quae sensitiva – do que seja deleitação venérea ou sensível.
414 – Quomodo sit malus omnis actus venereus – em que sentido é mau todo ato venéreo.
415 – An detur parvitas materiae in re venérea – se há parvidade de matéria em assuntos venéreos.
416 – An detur in delectatione sensitiva – idem na deleitação sensível.
417 – An oscula aliquando sint licita – em que caso o beijo é lícito.
418 – Et quando excusentur a mortali – e quando não é pecado mortal.
419 – De tactu et aspectu turpi proprii corporis, aut commixtionis brutorum – do tocar e do olhar torpe ao próprio corpo ou
420 – De tactu et aspectu turpi corporis alieni: ac de tactu genitalium brutorum –
421 An sit semper mortale aspicere pudenda sexus diversi. Vel pulcri adolescentis. Et an aspectus isti induant speciem objecti –
422 – An liceat aspicere partes honestas diversi sexus –
423 – An sit mortale aspicere pectus, crura, etc. mulieris –
424 – An sit mortale aspicere picturas turpes –
425 – An liceat mulieri se ornare et faciem fucare. – Quid se detegat ubera vel utatur veste virili –
427 – Quando peccent graviter proferentes verba turpia –
427 – An semper graviter peccent audientes comoedias turpes. An, ad eas cooperantes pecúnia vel plausu –
428 – An, illas repraesentantes et componentes –
429 – An, liceat choreas ducere –
430 – An peccet mulier permittens se tangi. – An mulier, ad vitandos tactus impudicos, teneatur clamare –
431 – An liceant tactus, etc., inter coniuges aut sponsos –

Diante de tais questões, parece muito lógico que Santo Afonso, antes de iniciar propriamente a tratação, aconselhe aos leitores que “elevem a mente freqüentemente a Deus e se recomendem à Virgem Imaculada, para que enquanto tentam conquistar para Deus as almas dos outros, não percam a própria” (Theologia Moralis, I, III, t. IV, c. II, n.º 413).
2. O problema da parvidade de matéria (“parvitas materiae”)
Talvez as duas questões de moral sexual mais debatidas na teologia pós-tridentina sejam as que se referem ao prazer venéreo e a formulação do princípio parvitas materiae, parvidade de matéria.
Segundo a tradição católica, três são as condições que caracterizam o pecado mortal: a matéria grave, a plena advertência e o consenso voluntário perfeito.
No que se refere à matéria, uma vez que ordinariamente existe uma graduação de intensidade no bem e, em conseqüência, também no mal (que não é senão a ausência do bem), só uma séria e importante deformação moral pode dar lugar ao pecado mortal. Ora, há ações pecaminosas que tem sempre matéria grave, por exemplo, o ódio contra Deus, a heresia, o homicídio, o genocídio etc. Este gestos geram pecados que, na terminologia técnica, chamam-se mortais ex toto genere suo. Entre estes pecados era normalmente incluída a luxúria, até que alguns autores (por exemplo, Martin de Azpilcueta (1495-1586) e Tommaso Sanchez (1550-1610) são os mais autorizados, ainda que o mais famoso seja o já citado Caramuel) levantaram dúvidas sobre isto, sobretudo em função do Sacramento da Penitência.
A questão foi suscitada não tanto por um interrogativo de estampo teorético sobre a interpretação da doutrina exposta anteriormente, mas pelas dificuldades surgidas pelos modos diferentes com que cada confessor concebia a matéria da luxúria, as ocasiões de pecado etc. Se, por exemplo, se confunde a sensualidade com a sexualidade ou o ato físico com o ato moral, pode-se ampliar injustificadamente a matéria da luxúria, e alguns sinais de afetividade e gestos quase inocentes podem acabar sendo considerados pecados mortais, a menos que haja falta de advertência ou de consenso.
Uma antiga declaração do Magistério confirmou a doutrina da Tradição sem no entanto entrar no mérito da definição da matéria da luxúria. O Santo Ofício, à questão se um penitente poderia abster-se de denunciar um confessor que lhe houvesse feitos propostas desonestas, supondo sempre o caso de tais propostas constituírem matéria leve, deu a seguinte resposta:
Cum in rebus venereis non detur parvitas materiæ, et, si daretur, in re præsenti non dari, consuerunt esse denuntiandum, et opinionem contrariam non esse probabilem (Responsum S. Officii 11-II1661 (DB 2013)).
Dado que no que se refere à sexualidade não há nunca parvidade de matéria e, no caso houvesse, não se dá nesse caso, decreta-se de ser denunciado e a opinião contrária não é provável.
A resposta, como se vê, não é decisiva, porque não enfrenta a questão de se pode haver em matéria sexual parvidade de matéria. Apenas nega, sem argumentar.
Uma segunda intervenção do Magistério foi mais explícita. De fato, no já citado decreto de 18 de março de 1666, no número 40 condenava-se a seguinte proposição:
Est probabilis opinio, quaæ dicit, esse tantum veniale osculum habitum ob delectationem carnalem et sensibilem, quaæ ex osculo oritur, escluso periculo consensus ulterioris et pollutionis (DB 2060).
É opinião provável a que afirma que é apenas pecado venial o beijo dado para (sentir) o prazer carnal e sensível que provém do beijo, uma vez evitado o perigo de um envolvimento posterior e da polução.
Ora, se não se aceita que possa ser pecado leve um beijo dado para obter um prazer carnal e sensível, não se vê como possam ser matéria leve outras ações bem mais empenhativas que tenham o mesmo objetivo. Segundo Santo Afonso, a razão seria
‘quia quævis carnalis delectatio, sive commotio spirituum generationi deservientium, est quædam inchoata pollutio, seu motus ad pollutionem’ (Theologia Moralis, 1, III, t. IV, c. II, n. 415).
“que qualquer deleitação carnal provoca um movimento do espírito, que mesmo sem provocar polução, tem na polução seu termo natural”.
A doutrina católica sobre a ausência de matéria leve baseia-se sempre na Tradição e na reta compreensão do significado e da importância da sexualidade, como em 1975 nos recordou a sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, na declaração Persona Humana:
“segundo a tradição cristã e a doutrina da Igreja, e como reconhece também a reta razão, a ordem moral da sexualidade comporta para a vida humana valores tão altos, que toda violação direta dessa ordem é objetivamente grave” (PH 10).
O breve debate suscitado nos séculos XVI e XVII contribuiu, porém, para esclarecer a distinção entre sensualidade e sexualidade genital, entre sentir e consentir ou entre placentia e complacentia, entre delectatio venerea directe volita e delectatio venerea indirecte tantum volita, entre ocasião próxima e ocasião remota de pecado etc.
O núcleo central de toda esta questão foi condensado na manualística da época nos dois princípios seguintes:
1. A procura voluntária do prazer venéreo em si mesmo fora do matrimônio legítimo é sempre pecado mortal ex toto genere suo, porque não admite matéria leve.
2. O prazer venéreo querido não em si mesmo, mas que sobrevém unido a uma certa ação (por exemplo, ler), não é pecado mortal ex toto genere suo, porque admite parvidade de matéria .
Esses dois princípios devem ser interpretados no sentido em que, no primeiro caso existe uma vontade de realizar uma ação luxuriosa ou ao menos o perigo imediato de realizá-la; no segundo caso falta tal vontade, de modo que o comportamento moral se configura em tudo similar às ocasiões de pecado. Ora há ocasiões de pecado tanto graves como leves.
Na terminologia atual, a doutrina sobre a gravidade de matéria poderia formular-se assim: fora do matrimônio válido, a atividade genital voluntária (isto é, querida e procurada, desejada, consentida etc.) é sempre objetivamente grave, e, portanto, se realizada com plena advertência e perfeito consentimento constitui pecado mortal.
3. O efeito do prazer no juízo moral sobre a atividade sexual desordenada
Acabamos de ver como, na formulação manualística dos dois princípios sobre a gravidade de matéria no campo da sexualidade, a ênfase foi colocado na busca do prazer venéreo. Santo Tomás, ao contrário, mesmo reconhecendo a importancia da voluptuosidade na origem do pecado de luxúria, destacava mais a malícia da desordem objetiva presente na própria ação.
A relação entre volúpia e pecado é muito estreita. O fato que o luxurioso pretenda obter um certo prazer não significa que o pecado consista em alcançare essa meta.
Sobre esse ponto se acendeu um não pequeno debate entre os maoralistas – sempre nos séculos XVI e XVII – uma vez que alguns, baseando-se no princípio de que a presença também da voluptuosidade não destrói por si mesma a bondade do ato conjugal, passaram a afirmar erroneamente que a união entre os esposos realizada somente por prazer físico era isenta de toda malícia e deformidade . Ora, o erro está justamente na quase despercebida substituição do também pelo somente, o que muda radicalmente o significado da ação. Unir-se somente por prazer físico significa que é excluída qualquer outra motivação, inclusive implícita, e, portanto, o próprio amor entre os esposos é completamente excluído, o que comporta uma grave deformidade na relação entre os esposos.
Por outro lado, um ato conjugal realizado exclusivamente por prazer físico, se não encontra pleno consenso também no outro cônjuge, deverá valer-se de alguma forma de pressão ou violência, física ou psicológica. Como sublinhou Paulo VI, “um ato conjugal imposto ao cônjuge sem atenção às suas condições e aos seus legítimos desejos não é um verdadeiro ato de amor e nega assim uma exigência da reta ordem moral na realação entre os esposos” (HV 13).
4. O magistério da Igreja no século XX
O século XX teve grande importância no desenvolvimento da Teologia Moral sobre a sexualidade, seja porque floresceram e se afirmaram diversos movimentos de espiritualidade que reivindicaram o pleno valor cristão da vida matrimonial (Equipes de Nossa Senhora, do Pe. Henri Caffarel, Movimento dos Focolares, de Chiara Lubich, Opus Dei, de S. Josemaria Escrivá, entre outros), seja porque – sobretudo com e depois do Concílio Vaticano II – o Magistério da Igreja publicou importantes documentos nesse sentido, entre os quais destacamos:
a) a Constituição pastoral Gaudium et Spes (1965), que dedica um capítulo inteiro (o Cap. 1 da II Parte, GS 47-52) à promoção da dignidade do matrimônio e da família e à sua valorização. Além do mais, o documento conciliar recorda que “o matrimônio e o amor conjugal são ordenados por sua própria natureza à procriação e à educação da prole” (GS 48 e 50) e que “os atos com os quais os cônjuges se unem em casta intimidade são honrosos e dignos e, realizados de forma verdadeiramente humana, favorecem a mútua doação que significam e enriquecem em alegre gratidão recíproca os próprios esposos” (GS 49);
b) a Encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI (1968) onde é reafirmada a competência do Magistério em matéria de sexualidade e onde são expostos os pressupostos doutrinais sobre a paternidade responsável, e sobre a natureza e finalidades da união matrimonial. Em continuidade com o Magistério precedente, e em particular com o ensinamento de Pio XI na Encíclica Casti Connubii e de Pio XII em diversos discursos e alocuções, a Encíclica proclama que “todo ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida” (HV 11) e que essa exigência fundamenta-se “conexão inseparável que deus quis e que o homem não pode romper por sua iniciativa entre os dois significados do ato conjugal: o significado unitivo e o significado procriativo” (HV 12). Consequentemente confirma-se seja o caráter gravemente pecaminoso da contracepção (“exclua-se toda ação que, em previsão do ato conjugal ou durante sua realização, ou mesmo no desenvolvimento de suas consequências naturais proponha-se como escopo ou como meio, de tornar impossível a procriação” (HV 14. Essa Encíclica envia ao ensino seja do Catecismo Romano, seja das Encíclicas Casti Connubii e Mater et Magistra), seja a liceidade do recurso aos períodos infecundos;
c) a Declaração Persona Humana sobre Algumas Questões de Ética Sexual (1975), da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, na qual se reafirma que “a Igreja, no curso de sua história, constantemente considera um certo número de preceitos da lei natural como tendo valor absoluto e imutável” (PH 4), como por exemplo, a norma segundo a qual “o uso da função sexual tem o seu verdadeiro sentido e a sua retidão moral somente no matrimônio legítimo” (PH 5; este documento resgata as Cartas Encíclicas Casti Connubii e Humanae Vitae). Daí a Declaração reafirma a ilicitude das relações pré-matrimoniais, das relações homossexuais e da masturbação, que aí é definida como “um ato intrinsecamente e gravemente desordenado” (PH 9). Um importante parágrafo, o n.º 10, confirma a doutrina tradicional sobre o pecado mortal (“uma opção cujo objeto é gravemente desordenado” (PH 10)) e sobre o caráter objetivamente grave de todos os pecados de luxúria;
d) a Exortação Apostólica Familiaris Consortio (1981), de João Paulo II, publicada como conclusão do Sínodo dos Bispos (1980) sobre o papel da família cristã no mundo atual. Particularmente importantes para a nossa matéria são a Parte II (O Desígnio de Deus sobre o Matrimônio e a Família) e a Parte III (As Responsabilidades da Família Cristã), onde são desenvolvidos os conceitos fundamentais sobre o matrimônio e sobre o amor conjugal, em relação à relação interpessoal e à transmissão da vida;
e) a Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o “Cuidado Pastoral das Pessoas Homossexuais” (1986), da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Nesse documento, partindo do princípio que “só na relação conjugal o uso da faculdade sexual pode ser moralmente reto” (CP 7), confirma-se quanto é dito na Declaração Persona Humana, isto é, os atos homossexuais são “intrinsecamente desordenados” e, portanto, que “a particular inclinação da pessoa homossexual, ainda que em si mesma não seja pecado, constitui todavia uma tendência, mais ou menos forte, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral” (CP 3);
f) a Instrução Donum Vitae sobre o Respeito à Vida Humana Nascente e à Dignidade da Procriação (1987), da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. A Instrução trata das intrevenções sobre o embrião humano e dos procedimentos de reprodução assistida, lembrando alguns princípios essenciais da moral sexual, e mais concretamente isto: “a união conjugal deve acontecer no respeito à abertura para a procriação, e a procriação de uma nova pessoa humana deve ser o fruto e a meta do amor esponsal” (DV 4b);
g) a Carta Apostólica Mulieris Dignitatem (1988), de João Paulo II, sobre a dignidade e a vocação da mulher, onde são reafirmados e aprofundados alguns dos princípios fundamentais da Moral Sexual Cristã, como a doutrina sobre a criação do homem e da mulher, a sua igualdade fundamental, diversidade e complementaridade, o sentido da maternidade e da virgindade etc.
h) A Declaração “Sexualidade Humana, Verdade e Significado, Orientações educativas em família” (1995), do Conselho Pontifício para a Família que traz orientações práticas para a educação sexual de crianças e jovens, defendendo que essa tarefa é essencialmente da família e não da escola, nem do estado ou da imprensa.


Conclusão
Ao longo destas oito lições examinamos, inclusive no seu desenvolvimento histórico, toda uma série de questões fundamentais de natureza teorética, que fundamentam e se traduzem nas normas morais.
Entre estas, tem lugar relevante alguns critérios que, provindo da própria verdade sobre a sexualidade humana, constituem as condições necessárias para um exercício verdadeiramente humano da sexualidade, e sem os quais seria impossível um discurso legítimo sobre o significado e sobre a dignidade do sexo humano.
Essas normas ou pontos de referência essenciais, que se mantêm sempre e em toda circunstância, são os seguintes:

1) Somente dentro de uma relação conjugal legítima pode ser moralmente reta a atividade sexual genital.

2) No ato matrimonial não é nunca lícito separar intencionalmente o aspecto unitivo daquele procriativo.

3) Toda violação direta da ordem moral da sexualidade é objetivamente grave.