Por uma semiologia bíblica
Introdução
Embora
a Bíblia seja um livro bastante antigo, nunca como em nossos dias, foi
tão estudado. Para grande parte dos povos do Ocidente, ele representa
uma obra sagrada, ligada às suas religiões. Para outros, trata-se
apenas de uma obra antiga, ligada às raízes da nossa cultura. Há
outras formas de ver a Bíblia: como literatura, como registro histórico
e social de uma época, sob o ponto de vista da ética e tantos outros
aspectos. Cabe distinguir, basicamente, duas abordagens nos estudos
bíblicos, sendo a primeira, mais antiga, a religiosa, e a segunda, mais
recente, a científica. E, embora se costume ver oposição entre ciência
e religião em muitos campos da atividade humana, nesse caso não é
obrigatoriamente assim, pois, muitos religiosos costumam estudar o
texto bíblico recorrendo a métodos científicos.
Tradicionalmente,
o estudo cientifico da Bíblia costuma ser chamado de Crítica Bíblica,
embora não se trate propriamente de uma crítica literária, mesmo porque
envolve outras ciências. A
Semiologia por ser uma ciência nova, cujas primeiras manifestações
ocorrem no final do século XIX com os estudos do filósofo Charles
Peirce, não ainda não se constitui numa área do estudo científico da
Bíblia, embora tenha uma grande contribuição a oferecer como se
discutirá neste artigo.
1.
A origem dos estudos científicos sobre a Bíblia
O
primeiro estudioso a buscar uma visão mais crítica do estudo bíblico
foi o filósofo inglês Thomas Hobbes, em 1651, em O
Leviatã.
Tratava-se de um estudo de importância secundária no todo da obra, mas
ele levantou questões que se sustentam até hoje, como a intervenção de
Esdras na forma final de alguns livros bíblicos.
Pouco
depois, Spinoza, que era judeu e possuía conhecimentos aprofundados da
religião e dos métodos rabínicos de análise do texto bíblico, conseguiu
extrair do próprio texto as provas de que o autor da Torá (ou
Pentateuco) não poderia ser o próprio Moisés, e sim alguém que teria
vivido em época bastante posterior, e que também ele acreditava que
fosse Esdras.
Em
1678, um padre francês de nome Richard Simons desenvolveu o estudo das
diferenças de estilo do Pentateuco, verificando a hipótese da origem
múltipla ou autoria múltipla.
Na
França, quase um século depois, em 1753, Jean Astruc, médico da corte
de Luís XV, prosseguiu esse trabalho investigativo e estabeleceu duas
fontes básicas para o texto da Torá: a fonte javista, que
designa a Deus pelo tetragrama sagrado, e que corresponderia à redação
original das tribos do sul que vieram a formar o reino de Judá, e a
fonte eloísta, que designa a Deus pelo substantivo plural Elohim,
e cujo texto teria sido produzido pelas tribos do norte, o reino de
Israel.
Com
a destruição do reino do norte pelos assírios em 722 antes da era
cristã, sacerdotes teriam fugido para o sul trazendo a versão eloísta
das tradições religiosas, que mais tarde teriam sido fundidas num único
texto com a versão redigida pelo reino do sul.
Os
primeiros estudiosos não religiosos da Bíblia tinham medo de
perseguições, que realmente podiam acontecer, de modo que Astruc só
publicou seus estudos quando já tinha setenta anos de idade e o fez
anonimamente em Bruxelas e, secretamente, em Paris.
Já
em 1711, o alemão Henning Bernhard Witter observara a possibilidade das
duas fontes em razão do nome de Deus, mas não chegara a desenvolver uma
teoria conhecida e ficou esquecido até que sua obra fosse redescoberta
em 1924.
Johann
G. Eichhorn, acadêmico alemão e filho de um pastor protestante,
publicou um estudo em 1780, denominando as duas fontes como “E” e “J”,
ou seja, eloísta e javista, respectivamente.
Outros
estudiosos descobriram então que havia uma terceira fonte do
Pentateuco, e a denominaram de sacerdotal, do alemão priest
(sacerdote) conhecida como fonte “P”. Em seguida, o alemão W.M.L. De
Wette, um jovem doutorando observou que o quinto livro do Pentateuco, o
Deuteronômio, o último dos cinco cuja autoria costuma ser atribuída a
Moisés “era impressionantemente diferente na sua linguagem dos quatro
livros que o precediam”.Como nenhuma das outras três fontes já
conhecidas — eloísta, javista e sacerdotal — tinha continuidade de
estilo, “De Wette levantou a hipótese de que o Deuteronômio era uma
fonte separada, a quarta”(Friedmann: 1989, p. 23).
No
século XIX, Karl Heinrich, Graf e Wilhem Vatke estudaram a questão da
datação dos livros do Pentateuco. Julius Wellhausen, que viveu entre
1844 e 1918, fez a síntese das pesquisas anteriores, tornando-se um
marco na crítica bíblica. Ele aceitou a divisão histórica que Vatke
fizera da religião de Israel em três estágios, e, comparando-os às
fontes bíblicas, conclui que haveria uma correlação entre estas e as
fases da religião. A primeira fase, ligada às histórias e às leis da J
e E refletiria um tipo de vida ligado à natureza e à fertilidade. Uma
segunda fase teria produzido as leis do Deuteronômio e seria ligada à
religião ética e espiritual. A redação de P corresponderia ao terceiro
estágio da religião, quando esta se tornou sacerdotal e legalista. O
modelo de Wellhausen inovou no sentido de começar a buscar uma razão
para a existência de várias fontes. A partir de seus estudos, a crítica
bíblica parte das posições de Wellhausen para concordar ou discordar
delas.
Naturalmente,
essas descobertas despertaram reações apaixonadas de grupos religiosos.
Até o século XX, perduraram julgamentos religiosos, condenações,
proibições de publicar as obras de Wellhausen e dos que nele se
baseassem. Mas, a partir da metade do século XX, tanto cristãos
(incluindo os católicos) como os judeus reformistas aceitaram a crítica
bíblica. Hoje, a maioria dos grupos religiosos, embora nem todos vejam,
ainda, a pesquisa de autoria e de datação dos livros bíblicos como uma
importante e útil fonte de conhecimento.
Estudos
mais recentes colocam a fonte sacerdotal como anterior à fonte
deuteronomista e incluem um quinto elemento, um editor ou compilador
final, que teria sido Esdras, um sacerdote e líder do povo judeu que
retornou do exílio da Babilônia. Esse retorno teria sido autorizado
pelo rei da Pérsia, a nova potência dominadora da região, que
destituíra o poder babilônico, libertando os judeus exilados e
autorizando seu retorno e a reconstrução do templo de Jerusalém. Esdras
foi também autor de um livro bíblico que leva seu nome.
2.
A Bíblia e as bíblias
Quando
dizemos “A Bíblia” podemos estar nos referindo a três diferentes
coletâneas de textos sagrados. Isso, é claro, se levarmos em conta
apenas as edições contemporâneas e não contarmos as versões da
Antigüidade e suas variações nos livros que seriam ou não incluídos no
cânone bíblico.
Em
primeiro lugar, é preciso lembrar que os livros antigos não se
assemelhavam aos atuais, no que se refere à sua forma física. Foi
somente a partir da descoberta dos tipos móveis metálicos por
Gutenberg, na metade do século XV, e com a popularização do uso do
papel, que surgiram as primeiras edições impressas da Bíblia, chamadas
de “bíblia dos pobres”. Até então, elas eram manuscritas, copiadas à
mão, individualmente, por monges, sobre pergaminhos, o que tornava seu
custo proibitivo.
O
pergaminho, sobretudo em forma de rolos, era usado desde a Antigüidade
como suporte para a escrita. Anteriormente, usou-se o papiro,
originário do Egito, que era menos duradouro, bem como placas
metálicas, pedras e argila. Durante muitos séculos, os livros da Bíblia
eram escritos em separado. A Tora, por exemplo, recebeu o nome de
Pentateuco porque ocupava cinco rolos (embora hoje seja escrita em um
só) ou seja, cinco livros. Os doze profetas “menores” (em extensão do
texto e não, obrigatoriamente, em importância) — Oséias, Joel, Amós,
Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e
Malaquias — por terem textos mais curtos, eram escritos em um único
rolo.
Em
razão de todas essas dificuldades, existem hoje três tipos de edições
de Bíblia: a Bíblia Hebraica, a Bíblia Cristã na versão católica e a
Bíblia Cristã na versão reformada. A Bíblia Hebraica corresponde ao
Antigo Testamento das Bíblias cristãs das Igrejas reformadas, embora a
ordem dos livros seja diferente. Nas bíblias católicas, existem outros
livros, que são de redação anterior ao período cristão, considerados
apócrifos pelos judeus, e que foram incluídos pela Igreja, no início do
cristianismo. Muitos séculos depois, quando as Igrejas reformadas foram
organizar sua Bíblia, e traduzi-la, já se sabia que os judeus não
consideram parte da sua Bíblia os seguintes livros: Judite, Tobias,
Macabeus I e II, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, além de acréscimos aos
livros de Ester e Daniel. Assim sendo, adotaram a seleção da Bíblia
Hebraica, mas, não sua organização, que seria uma ordem cronológica de
redação, ou, pelo menos, o que os antigos acreditavam que fosse a ordem
cronológica, influenciada também pelo grau de sacralidade dos livros.
Já os conceitos para organização dos livros das bíblias cristãs são
outros.
O
que interessa particularmente é saber que a Bíblia (seja qual for a
edição) é uma coletânea de livros escritos ao longo de aproximadamente
mil anos e não um único livro escrito de uma só vez. Isto é muito
importante para que se compreenda a importância da crítica bíblica.
3.
A contribuição da história, da arqueologia, da antropologia, dos
estudos literários e da lingüística histórica
É
através do estudo do texto nas línguas originais (hebraico para a maior
parte, grego para o Novo Testamento e aramaico para o livro de Daniel)
que os lingüistas podem datar a redação dos mesmos, podendo assim fazer
a contextualização histórica do conteúdo.
As
pesquisas arqueológicas vão permitir a confirmação de alguns dos fatos
citados na Bíblia, quer como acontecimentos específicos, quer apenas
como costumes dos habitantes da região de Canaã em épocas
correspondentes aos períodos mencionados em alguns textos bíblicos, em
especial aqueles que pretendem ser um registro histórico.
É
preciso ressaltar que o sentido de história do homem antigo é muito
diferente do nosso. Nada parecido com objetividade, métodos
científicos, distanciamento do objeto de estudo passava pela mente
desses autores. O que pretendiam era registrar os grandes feitos dos
reis e dos reinos.
No
caso da Bíblia, há uma característica muito especial, que é a leitura
da história a partir da visão monoteísta já estabelecida por ocasião da
redação dos livros chamados históricos, em especial Reis, Crônicas e
Esdras e Neemias. O autor bíblico julga os reis a partir de sua
fidelidade (real ou atribuída) ao Deus de Israel. É em função dessa
fidelidade, que o seu reinado terá ou não sucesso. Nem sempre o que se
afirma na Bíblia é confirmado pelas fontes extrabíblicas. A dinastia de
Omri, assim, era respeitada fora de Israel, mas o autor bíblico
desmerece esses reis como idólatras e merecedores da ira divina.
A
antropologia tem auxiliado a compreensão sobre o modo de vida das
pessoas no longo período de aproximadamente dez séculos que durou a
redação da Bíblia Hebraica, em especial nos períodos mais antigos, a
respeito dos quais existe menos documentação extrabíblica. Os próprios
textos bíblicos, outros textos da mesma época e os achados
arqueológicos vêem permitindo recriar o ambiente social em que teria
sido redigida a Bíblia.
Mais
recentemente, os estudos literários têm buscado dar uma contribuição
aos estudos bíblicos, já que se trata, sem sombra de dúvida, de um
texto literário. Cabe então perguntar, como poderia a Semiologia dar
sua contribuição. Para tal, inicialmente, é necessário melhor
compreender o que seja a Semiologia e qual a sua relação com a
Lingüística.
4.
O que é semiologia?
A
relação entre Semiologia e Lingüística poderia ser entendida como uma
dupla dominação. Enquanto Pierce (1995) e Saussure (1970) entendem que
a Lingüística é uma parte da Semiologia, a qual seria uma ciência geral
abrangendo o estudo de todas as linguagens, Roland Barthes (1999)
assume a posição contrária, afirmando que o único código completo e
perfeito é a língua, falada e escrita, e que, portanto, esta deve ser o
modelo, e a Lingüística a ciência abrangente, na qual se inseriria o
estudo das demais linguagens: visual, musical. Para ele:
(...)
a Semiologia é que é uma parte da Lingüística; mais precisamente, a
parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do
discurso. (Barthes, 1999, p.13)
Em
comum as duas linhas apresentam a definição do objeto de estudo:
enquanto a Lingüística se dedica exclusivamente ao estudo da linguagem
verbal, oral e escrita, a Semiologia abrange também as demais
linguagens. Entretanto, dentro da Lingüística existiria uma área
específica da Semiologia que seria o estudo dos processos de
significação (Borba, 1991, p. 313-314 e Blikstein, 1983). Não obstante,
exista quem conteste ser do campo da Semiologia e da Lingüística o
estudo do significado, que estaria no âmbito da Psicologia, da Física
ou da Filosofia, conforme o caso, há uma tendência a aceitar que embora
o objeto representado possa estar fora do objeto de estudo da
Semiologia, a representação mental faz parte da mesma. (Barthes, 1999,
p.46-47; Blisktein, 1983; Eco, 1999)
Na
Semiologia existe uma diversidade de nomenclaturas para as mesmas
funções. Para Peirce, “símbolo” designa aquilo que Saussure chama de “signo”,
ou seja, quando a relação entre o significado e o significante (na
linguagem saussureana) é arbitrária, distinguindo-se do ícone que
apresenta uma relação de semelhança entre o que é representado e o que
o substitui, e do índice, que possui uma relação causal entre o objeto
e o signo:
Um
Símbolo é um Representâmen cujo caráter representativo consiste
exatamente em ser uma regra que determinará seu Interpretante. Todas as
palavras, frases, livros e outros signos convencionais são Símbolos.
(Peirce, 1995, p.71)
Na
semiótica de Peirce, o signo é aquilo que representa outra coisa, e não
o conjunto do que é representado e daquilo que o representa, como para
Saussure. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre a teoria dos signos,
pois fugiria ao objeto de estudo deste trabalho, mas é importante
ressaltar que, o termo “símbolo” pode ser entendido de
outra
maneira do que o emprego que lhe dá Peirce, e, embora Eco seja um
semiologista de linha peirciana, ele utiliza o termo “signo” para
designar a função de significado na linguagem:
Um
signo não é uma entidade semiótica fixa, mas antes o local de encontro
de elementos mutuamente independentes, oriundos de dois sistemas
diferentes e associados por uma correlação codificante. (...) Assim, os
signos são o resultado provisório de regras de codificação que
estabelecem correlações transitórias em que cada elemento é, por assim
dizer, autorizado a associar-se com outro elemento e a formar um signo
somente em certas circunstâncias previstas pelo código. (Eco, 1991c,
p.40)
Quando
dentro do universo da linguagem verbal, a linguagem simbólica costuma
ser classificada a partir dos recursos utilizados em cada segmento do
texto: alegoria, metáfora, metonímia, parábola, hipérbole,
personificação. Essa lista, contudo, não dá conta de explicar a
linguagem simbólica, pois os símbolos possuem uma grande carga
emocional, eles ultrapassam as fronteiras do racional. E aí se encontra
sua especificidade, pois permitem a expressão de realidades humanas que
não podem ser comunicadas pela linguagem referencial. É importante a
relação entre a estrutura da linguagem poética e da obra de arte em
geral e o símbolo, embora um não possa ser usado como sinônimo do
outro. Mesmo porque, o símbolo pode ser usado em mensagem que não sejam
artísticas. Esse uso, contudo, tende a desgastá-lo, esvaziá-lo de sua
riqueza, na medida em que procura limitar seus significados. Já a
linguagem poética tende a criar permanentemente novos símbolos.
Epstein
(1997, p.68) considera que os símbolos sejam um subgrupo dos signos. Um
símbolo não seria “nunca
completamente 'esclarecido' explicitamente, isto é, sempre há um
resíduo implícito”. E existiria entre ele e o que representa um certo
grau de semelhança, contudo essa iconicidade ou semelhança que existe
entre o símbolo e a coisa simbolizada seria fruto de uma maneira comum
de refletir e que subsiste nas duas coisas”. Sendo assim,
Os
símbolos são concentrações de idéias expressas taquigraficamente, numa
imagem, numa expressão. Sua característica mais geral é que envolvem
sempre uma operação semelhante à metáfora, pois os símbolos são objetos
sensíveis que são aplicáveis a entidades abstratas e não sensíveis.
(...) Expandir um símbolo, interpretá-lo, tornar explícitos os seus
significados equivale, no entanto, a descaracterizá-lo como símbolo. O
pensamento simbólico, ao contrário do pensamento científico, não é
analítico, mas condensa em um significante um punhado de significados.
Ao contrário dos signos da ciência, que demarcam um campo contínuo e
claro, os símbolos pressupõem uma ruptura de plano, uma
descontinuidade, uma passagem a uma outra ordem. O paradoxo do símbolo
consiste em que para interpretarmos o sentido do símbolo precisamos
expandi-lo, e isto é feito em termos de sentenças literais. Aí perdemos
o sentido do símbolo enquanto símbolo. (Epstein, 1997, p.70-71)
Essa
impossibilidade de esclarecer e explicitar completamente um símbolo
decorre da sua riqueza de significados. Para explicar uma relação
simbólica em linguagem referencial, faz-se necessário um texto muito
longo, o qual, por sua vez, não tem o poder de representação do
original. Uma das características do símbolo é, pois, a densidade de
significados, ou, visto de outro modo, seu poder de síntese.
Neste
artigo utilizamos o termo “símbolo”
como um signo ou grupo de signos que adquiriram uma amplitude e uma
quantidade de significados muito acima do padrão normal. Um símbolo
acumula tal carga de significados num processo social e histórico, no
qual também influi nossa vida psíquica. Os símbolos estão ligados ao
conhecimento dos conteúdos do inconsciente, mas também ao estudo das
culturas, da arte, e, das religiões. “Signo” designaria, (de acordo com
a teoria de Saussure), a união entre um significante (forma sonora ou
gráfica) e um significado (representação mental daquilo que está sendo
representado).
4.
Funções da linguagem
A
função referencial e a função emotiva da comunicação relacionam-se,
respectivamente, com a função denotativa
e conotativado código lingüístico. A conotação consiste numa ampliação
dos significados. Na Bíblia, por exemplo, a designação geográfica
“Monte Sião” tem alto valor conotativo, porque ali se está no alto e no
centro da cidade de Jerusalém, a qual adquiriu uma conotação de
sacralidade porque, historicamente, a religião centralizou-se nas
práticas do templo, o qual significava também independência política
(ou pelo menos, autonomia) e a presença do povo judeu na terra
identificada como sua por dádiva divina. Mas, antes de adquirir todos
esses significados, essas conotações, o termo “Monte Sião” designou um
acidente geográfico, uma elevação situada no deserto da Judéia.
A
conotação só pode existir a partir da existência da denotação e nela
estando apoiada. Não se pode pensar em um sentido figurado para uma
palavra antes que ela possua um sentido próprio, a denotação. “O
que constitui a conotação enquanto tal é o fato de que ela se institui
parasitariamente”(Eco, 1991c, p.46). Por outro lado, é preciso
reconhecer que, em alguns casos, os usos conotativos de uma palavra ou
expressão se ampliam tanto que ela passa a ser muito mais utilizada com
esses sentidos do que com o original.
Na
mensagem estética, categoria em que se inclui a linguagem poética (a
qual tem certamente também uma função emotiva) as conotações se
organizam como um sistema, determinado pela estrutura da mensagem.
Nesse caso, existe uma intenção do emissor da mensagem de que haja uma
ambivalência de significados e que se estabeleça a função emotiva da
linguagem.
A
função conotativa também pode se estabelecer a partir do contexto de
decodificação do receptor: seu ambiente cultural, experiências
pessoais, interesses. Eco (1991, p.77-78) usa o exemplo de uma cidade
do Iraque, cuja menção a um habitante do país levará a mensagem para
uma decodificação denotativa. Entretanto, para um europeu que ouve o
nome pela primeira vez, podem surgir conotações de mistério, de viagens
e aventuras ou outros elementos que o receptor relacione à idéia de
Oriente. Entra-se no campo da sugestão, da evocação. Muitos textos
bíblicos, tal como ocorre em outros textos de poesia ou de prosa
poética, utilizam esse campo de sugestão. A função conotativa do código
lingüístico também está presente com freqüência. Entretanto, é um erro
pensar na Bíblia como uma coletânea de conotações, sem nenhum texto de
uso puramente referencial. Embora a Bíblia Hebraica contenha numerosos
textos poéticos (ou de prosa poética), também utiliza a função
referencial da linguagem em livros inteiros e em partes de livros, como
nas descrições sobre o tempo e as funções sacerdotais, por exemplo. Não
por acaso, esses trechos são os menos lidos fora do contexto específico
da sinagoga, pois não apresentam uma grande possibilidade de
interpretações, na medida em que não utilizam linguagem poética.
5.
A estrutura da linguagem poética
A
mensagem poética organiza-se em função de si própria. Embora pretenda
atingir o receptor ou destinatário, seu objetivo não é meramente de
transmitir um conteúdo, mas, tem como elemento essencial o como
transmitir esse conteúdo. Assim, se na função referencial, o emissor
busca organizar sua mensagem da maneira mais unívoca possível para que
não haja ruídos na sua comunicação, a mensagem poética “surge, ao
contrário, caracterizada por uma ambigüidade fundamental” (Eco, 1993,
p.95). Esta ambigüidade nasce da organização inusitada da mensagem, de
modo que não foi previsto pelo código. Assim, o receptor, colocado
diante de uma mensagem que foge às regras conhecidas, vê-se na posição
de decifrador, concentra-se na mensagem propriamente dita e não apenas
em seu conteúdo:
(...) o decodificador, ante a mensagem poética, coloca-se na característica situação de tensão interpretativa, justamente porque a ambigüidade, realizando-se como ofensa ao código, gera uma surpresa. A obra de arte propõe-se-nos como uma mensagem cuja decodificação implica uma aventura, precisamente porque nos atinge através de um modo de organizar os signos que o código consueto não previa. Desse ponto em diante, no empenho de descobrir o novo código (típico, pela primeira vez, daquela obra — e todavia ligado ao código consueto, que, em parte, viola e, em parte, enriquece), o receptor introduz-se, por assim dizer, na mensagem, fazendo convergir para ela toda a série de hipóteses consentidas pela sua particular disposição psicológica e intelectual; à falta de um código externo a que recorrer globalmente, elege como código hipotético o sistema e inteligência. A compreensão da obra nasce dessa interação. (Eco, 1993, p.98-99)
A
mensagem referencial busca ser transparente, conduzindo à compreensão
dos significados, enquanto que a mensagem poética é opaca, obrigando o
receptor a concentrar-se nela, pois ela não consiste somente num
sistema de significados, mas, os significantes também importam em si
mesmo, constituindo matéria que permite a provocação de estímulos. A
poesia é uma forma de uso inusitado da linguagem. Ao formar estruturas
de significado inusitadas, o poema apresenta um sentido aberto, pois,
dentre seus múltiplos significados possíveis, ainda não foi
estabelecido, naquele momento, quais os significados serão adotados por
aquela cultura. Possivelmente nunca se dê um sentido usual àquela
estrutura de significado.
O
poeta utiliza palavras conhecidas (embora também possa criá-las) de um
modo tal que cria novas conotações que não as já usuais no seu meio
social.1 Esse é o ponto fundamental, pois como o
poeta usa uma estrutura de significado pela primeira vez, “o
destinatário deve inferir do contexto o uso conotativo proposto”. (Eco,
1991, p. 118)
Dentro
de uma determinada cultura, em momento específico, é possível que as
conotações gerassem uma decodificação aproximadamente uniforme. Mas,
isso raramente acontece com a obra de arte. Normalmente ela provoca,
confunde, choca, alerta, abre perspectivas, desperta amores e ódios.
Isto porque, ao apresentar novas possibilidades, quebra o arranjo
socialmente montado de um modelo perceptivo para aqueles significantes.
A
poesia e arte existem porque nem tudo pode ser manifesto num discurso
organizado.2
Se assim não fosse, nada explicaria sua existência após o
desenvolvimento do pensamento racional e científico. O ser humano não é
apenas racional. Defini-lo com tal, já se compreendeu, não corresponde
à realidade. Para Cassirer (1977, p. 49), o homem é um ser simbólico. A
ciência, assim como a arte também é um pensamento simbólico. Mas,
enquanto a ciência busca o máximo de univocidade na relação entre
significado e significante, a arte, ao contrário, busca o máximo de
significados para cada significante.
Se
considerarmos que tanto a arte quanto a religião lidam com realidades
do inconsciente, poderíamos dizer que elas desenvolvem linguagens que
se referem aos conteúdos do inconsciente. Eco, na sua obra teórica
sobre a estrutura da linguagem e a semiologia menciona essa
inexplicável relação entre a obra artística e o fruidor.
Estruturando-se
ambiguamente em relação ao código e transformando continuamente suas
denotações em conotações, a mensagem estética compele-nos a
experimentar sobre si léxicos e códigos sempre diferentes. Nesse
sentido, fazemos continuamente, confluir para dentro da sua forma vazia
novos significados, controlados por uma lógica dos significantes que
mantém tensa uma dialética entre a liberdade da interpretação e a
fidelidade ao contexto estruturado da mensagem. E só assim se
compreende por que, em todo o caso, a contemplação da obra de arte
suscita em nós aquela impressão de riqueza emotiva, de conhecimento
sempre novo e aprofundado, que impelia Croce a falar em cosmicidade.
(Eco, 1991b, p. 68)
Embora
discorde da afirmação de que a fruição artística se encontre num nível
intuitivo, Eco considera que o prazer estético pode ser entendido a
partir da estrutura da obra, a qual é complexa.
5.
A riqueza simbólica da Bíblia como objeto de estudo para a Semiologia
Jung
estudou longamente os símbolos como construções mentais, enquanto
Cassirer e Malinowski buscaram entender a construção simbólica e
religiosa de determinadas culturas. São também caminhos produtivos para
a análise das elaborações simbólicas. Finalmente, pode-se dizer que a
riqueza dos símbolos de uma obra contribui para seu grau de abertura.
Essa seria uma característica da literatura contemporânea, no entender
de Eco (1991, p.46), que utiliza “o símbolo como
comunicação do indefinido, aberta a reações e compreensões sempre novas”.
Sob esse prisma, a Bíblia Hebraica tornou-se uma obra com
características bastante atuais, pois, perdidas ao longo da história as
primeiras “chaves simbólicas” que levariam a uma interpretação mais
exata da sua linguagem simbólica, cada época viu-se diante da
possibilidade de reinterpretá-los, decodificando-os a partir de sua
ótica. A inesgotável capacidade do texto bíblico de sobreviver ao longo
do tempo tem permitido que novas leituras sejam acrescentadas às
anteriores, enriquecendo seu valor simbólico, em vez de esgotá-lo.
6.
Bíblia e Linguagem Simbólica
Girard
(1997) estudou os símbolos da Bíblia cristã-católica, a qual inclui
toda a Bíblia Hebraica. Ele dividiu a simbologia da Bíblia em quatro
grandes grupos “ancorados cada um numa experiência humana
fundamental e universal (manifestação divina, relação com o útero
materno, hostilidade das forças do mal, aspiração à transcendência)”.
(Girard, 1997, p.789)
A
figura simbólica, de acordo com seu estudo, pode ser interpretada
diferentemente, de acordo com o contexto em que aparecem. O fogo, a
chama, tanto pode ser um símbolo teofânico, uma manifestação de Deus,
como um símbolo matricial. A água também pode ser um símbolo matricial,
mas igualmente pode representar as forças do mal. O mesmo ocorreria com
as trevas, que, embora costumem estar associadas ao mal, aparecem na
Bíblia ligadas ao momento anterior à criação. O vento geralmente está
presente como símbolo teofânico, entretanto, podem ocasionalmente
aparecer como sinal de punição divina ou purificação. A imagem da nuvem
estaria presente como um símbolo teofânico, mas também de verticalidade
cósmica. Já a pedra, que aparece como verticalidade cósmica, também
pode ser um símbolo matricial, o mesmo acontecendo com a madeira. O
trovão e o sismo são símbolos teofânicos. A terra, naturalmente, é um
símbolo matricial, mas igualmente seria o peixe. Os animais aparecem em
simbolizações de hostilidade, mas também de reprodução e proteção.
Contudo, no entender de Girard, a simbologia animal ocupa na Bíblia um
lugar de importância relativa. Como símbolos de verticalidade cósmica,
estão presentes as asas, o arco-íris e a escada (os dois últimos seriam
“pontes cósmicas entre o céu e a terra”). Já os anjos, apresentariam
diversas funções simbólicas podendo representar a presença divina, a
verticalidade cósmica, ou forças terríveis, destruidoras.
Essa
classificação não é, naturalmente definitiva, mas, talvez seja a
primeira tentativa de se buscar uma unidade simbólica nos textos
bíblicos. Pelo menos, o autor tem essa intenção. De fato, embora o povo
hebreu2 tenha herdado e utilizado símbolos das
culturas com
as quais convivia, ele sempre reelaborou esse simbolismo numa
perspectiva monoteísta, sendo esta o grande fator de unidade de toda a
Bíblia.
4.2
Alguns estudiosos da simbologia e da linguagem da Bíblia
Chabrol
aborda exclusivamente os evangelhos,3
analisando algumas passagens dos mesmos; o trabalho de Marc Girard
sobre a simbologia da Bíblia, emprega uma abordagem antropológica,4
sendo considerado teologia por seu autor e editores; a obra do biblista
Schökel5
é uma obra de cunho teológico que utiliza a lingüística em alguns de
seus capítulos. Nenhum desses trabalhos apresenta uma análise da Bíblia
Hebraica tendo como referencial teórico alguma linha da semiologia.
Tosaurus Abadia (2000, p. 101-148) faz um levantamento das linhas da
lingüística e da semiologia e sua aplicação aos estudos bíblicos. Com
relação ao estruturalismo ou análise estrutural (p. 147-148) afirma que
a teoria mais utilizada até hoje para a análise bíblica é a de Greimas
e faz a crítica dos estudos resultantes da mesma. Ressalte-se que estes
estudos são escassos e ainda pouco difundidos.
Umberto
Eco é um semioticista italiano que, desde a década de 1960 vem
estudando a estrutura da linguagem poética e das linguagens artísticas
em geral, tomando por base as obras de Peirce, Saussure, Jakobson e
Abraham Moles. Ele desenvolveu o conceito de “obra aberta” para
designar a obra de arte, que resiste ao tempo porque sua estrutura
lingüística ou simbólica é extremamente rica e inovadora, de modo que
permite sempre novas decodificações e interpretações:
Nesse
sentido, o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma
em questão seja compreendida e fruída tal com a produziu; todavia, no
ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações,
cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade
particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos,
tendências, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma
originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual.
(...) No fundo, a forma torna-se esteticamente válida na medida em que
pode ser vista e compreendida segundo multíplices perspectivas,
manifestando riqueza de aspectos e ressonâncias, sem jamais deixar de
ser ela própria. (Eco, 1991, p. 40)
A
Bíblia tem sido através dos séculos um texto que desperta o interesse
de leitores sempre numerosos. Essa capacidade de comunicação do texto
bíblico justificaria seu estudo à luz da teoria da “obra aberta”, o que
permitira analisar sua riqueza estrutural, sobretudo nas partes
poéticas e simbólicas, todas aquelas que utilizem a estrutura da
linguagem poética e a função poética da linguagem.
Conclusão
É
cabível, portanto, propor o estudo da Bíblia tendo por instrumento a
Semiologia, tal como se faz com a Teoria Literária, a História, a
Sociologia, a Lingüística Histórica e as disciplinas específicas do
estudo bíblico, a Exegese e a Teologia. Não se pretende, é claro,
substituir a contribuição de nenhuma das áreas citadas (nem de outras
igualmente importantes que tenham sido esquecidas), mas simplesmente,
propor mais um instrumento válido e importante para o estudo científico
da Bíblia.
***
*
Eliana Branco Malanga
é doutora em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, e pós-doutoranda em Análise do Discurso no Programa de
Pós-Graduação em Lingüística da Faculdade de Letras da UFMG. É
coordenadora geral dos cursos de pós-graduação da Faculdade Paulista de
Artes, em São Paulo, SP.
Notas
1
ECO (1991, p. 113) esclarece que “Em
alguns sistemas semânticos indica-se como denotação
de um símbolo a classe das coisas reais à qual se estende o uso do
símbolo (...) e como conotação o conjunto das propriedades que devem
ser atribuídas ao conceito indicado pelo símbolo. (...) Nesse sentido,
a denotação identifica-se com a extensionalidade e conotação com a
intencionalidade do conceito”. PEIRCE (1995, p. 146)
prefere os
termos significação e aplicação, por considerar que o uso do termo
conotar havia sido distorcido. Para ele: “a aplicação de um termo é a
coleção de objetos com os quais ele se refere; a aplicação de uma
proposição é os casos em que ela se mantém válida. A significação de um
termo são todas as qualidades que são por ele indicadas; a significação
de uma proposição são todas as suas diferentes implicações”.
2
Neste
trabalho se utilizará “hebreu” ou “povo de Israel” para designar a
nação resultante da união das tribos que saíram do Egito e formaram um
país unificado durante o reinado de Davi. A religião que se forma
anteriormente a esse período e que nele se solidifica será geralmente
designada como monoteísmo hebreu ou religião bíblica. O termo “judeu”
será reservado para o habitante da nação do sul após a divisão, o reino
de Judá, e para o povo que retornou do exílio da Babilônia (embora
entre estes pudesse haver alguns indivíduos ou famílias que fugiram do
norte, do reino de Israel, por ocasião da destruição do mesmo pelos
assírios), bem como para o seguidor da religião que se formou a partir
de então e que existe até a atualidade, o judaísmo.
3
CHABROL, 1980.
4
GIRARD, 1997.
5
SCHÖKEL, 1992.
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